Para onde vai a América Latina?
No fim de 2015, o bolivarianismo foi reduzido a minoria
parlamentar na Venezuela, enquanto Macri chegou à presidência na Argentina. No
ano seguinte, Evo Morales perdeu o referendo por um quarto mandato enquanto o
sim à paz, foi derrotado na Colômbia. Entre uma coisa e outra, Rousseff foi
golpeada no Brasil: a onda progressista sul-americana, entrava em refluxo.
Em 2020, a vitória eleitoral de Luis Arce na
Bolívia foi celebrada como uma derrota do golpismo. No ano seguinte, Pedro
Castillo chegou à presidência no Peru e Gabriel Boric no Chile. Na sequência,
Gustavo Petro se elegeu na Colômbia enquanto Lula foi reeleito no Brasil.
Estaríamos diante de uma segunda onda progressista?
Ou é a extrema-direita que nos espera? Qual o papel do imperialismo neste
contexto?
Este texto pensa estas e outras questões, sem
pretender respondê-las.
1.
Houve uma espécie de “dança das cadeiras” na
América do Sul. No começo do século Chile, Peru e Colômbia foram os únicos
países que não penderam para a esquerda. Mas em anos recentes, estes países
concentraram as expectativas de mudança.
Porque mesmo onde o progressismo se segurou no
poder (como na Venezuela) ou voltou à presidência (como no Brasil), as
expectativas que encarnam são muito distintas. O voto em Arce ou em Lula foi
movido menos por esperança, do que pelo medo de algo pior. Um voto que olha
mais para o passado do que para o futuro.
A expectativa de mudança bandeou para os países de
que menos se esperava há poucos anos.
2.
O impulso vital desta “dança” foram as ruas que
destamparam na pandemia. No Chile, a peste foi insuficiente para desmobilizar a
população. Na convulsão colombiana, viralizaram cartazes dizendo que o Estado é
mais perigoso do que o vírus. No Peru, as ruas derrubaram um presidente, em
reação a mais um impeachment ilegítimo na região.
Rebeliões eclodiram nos países em que o
progressismo era mais débil como alternativa eleitoral, enquanto nos países que
foram ou eram presididos por esta política, não houve rebelião. Insinuou-se uma
relação antitética entre progressismo e rebelião: parece que onde o
progressismo estava mais vivo como alternativa, mais velas se acenderam no
altar eleitoral, e menores as chances de as ruas destamparem.
Mais do que uma esperança política, o progressismo
teria se convertido em uma política da espera?
3.
Os acontecimentos no Chile, na Colômbia e no Peru
foram produzidos por uma rebeldia que não cabe em urnas progressistas. Mas
paradoxalmente, o encaminhamento das fraturas expostas nas ruas mimetizou as
formas do progressismo: um novo presidente e quem sabe, uma nova constituição.
É indiscutível a importância da eleição de Petro ou
de Boric. Também é certo que uma constituição virando a página do pinochetismo
teria um significado transcendental no Chile. O mesmo se pode dizer do Peru e
da Colômbia, países em que o neoliberalismo se constitucionalizou nos anos
1990.
No entanto, quando recordamos que Venezuela,
Bolívia e Equador também reescreveram constituições em conjunturas
efervescentes, é inevitável o sabor amargo da reprise. Nestes países, a
política foi reordenada para estabelecer um novo padrão de dominação – uma
hegemonia progressista poderíamos dizer. E seus limites do ponto de vista da
mudança, estão evidentes.
4.
Porém, a margem de manobra do progressismo se
estreitou desde a onda original. Isso é fácil de ver com lentes brasileiras: o
Brasil que Lula encontra em 2023 é diferente de 2003, e para pior. Por quê?
Porque o progressismo deve ser compreendido como
uma tentativa de conter uma crise que lhe antecede no tempo (desde os anos
1970) e lhe transcende no espaço (é global). A erosão dos pilares de uma
cidadania salarial (a carteira assinada e um Estado de Bem-Estar) é um processo
mundial que o progressismo não pode reverter, mas procura mitigar.
Entretanto, a contenção da crise não impede a sua
aceleração. Conforme argumentamos no livro “O médico e o monstro” (1), a
política da contenção implica fortalecer atores sociais, que corroboram a
aceleração que se pretende conter. No caso brasileiro, os bancos, o PMDB,
Michel Temer, os militares, o neopentecostalismo, as empreiteiras, foram
alimentados em seu momento pelos governos petistas. Não se trata de engano nem
traição, mas de uma racionalidade de governo.
Por exemplo: foi para conter a crise desatada pelo
mensalão que se ampliou o espaço do PMDB na base do governo. Foi assim que
Temer chegou à vice-presidência. Anos depois, o vice protagonizou uma reversão
política: a contenção foi sucedida pela aceleração da crise, que descambou em
Bolsonaro.
5.
Se a contenção não impede a aceleração,
argumentamos que a aceleração pode demandar contenção. Com apoio das elites,
Bolsonaro acelerou tendências destrutivas que se tornaram contraproducentes ao
bom funcionamento do capitalismo brasileiro. Por exemplo: queimar a Amazônia
dificultou um acordo com a União Europeia, enquanto que a difamação dos
chineses prejudicou o agronegócio.
Neste quadro, a configuração tardia de uma frente
pela democracia com apoio significativo da elite, da mídia corporativa e com o
aval dos Estados Unidos, se confundiu com a defesa de negócios. Será que, em
nome do combate ao golpismo, tratava-se suspender esta dinâmica autodestrutiva,
ao menos provisoriamente? Por trás da frente que sustentou a eleição de Lula,
haveria uma nova tentativa de contenção da crise brasileira?
6.
No entanto, esta dinâmica de contenção e aceleração
não é um movimento pendular, mas uma espiral corrosiva. E na medida em que a
corrosão atravessa o continente, o espaço da política progressista se estreita.
No começo do século, Venezuela, Bolívia e Equador
escreveram novas constituições que anunciaram novas hegemonias. Nestes e nos
demais países, os progressismos se reelegeram e/ou fizeram seus sucessores, com
exceção do Paraguai. E seguem politicamente competitivos, seja no governo ou na
oposição. A legitimidade da política sul-americana foi reconstituída pelo
progressismo.
Na atualidade, esta via parece não estar aberta. O
processo constituinte chileno capotou e agora é liderado por neo-pinochetistas
(ainda que a Constituição proposta pela direita também tenha acabado de sofrer
derrota em plebiscito). Petro enfrenta todos os problemas de um país
atravessado pela parapolítica, além de uma máquina de desinformação. E
Castillo, que não é exatamente progressista mas gozou do seu apoio, foi
derrubado em meio a intrigas e contradições.
7.
Evidentemente, a contenção da crise é melhor do que
a sua aceleração, como descobrimos sob Bolsonaro. Mas ela é impotente para
modificar o sentido do movimento histórico. A dinâmica social que coloca cada
um por si e todos contra todos, não é votada.
Neste quadro, a corrosão social se aprofunda e a
violência também. A ordem exige cada vez mais força e menos consenso para ficar
de pé. Estas tendências ajudam a entender porque o espaço para o progressismo
se estreitou. E porque a guinada antidemocrática também atravessa as sociedades
que o progressismo governa.
Na Bolívia, o barco virou quando Morales driblou a
constituição para se eleger pela quarta vez. Na Venezuela, Maduro desencanou da
institucionalidade que o próprio bolivarianismo forjou, se apoiando cada vez
mais em militares. O caso extremo é a Nicarágua sob Ortega e Murillo, que
edificou o regime mais próximo de uma ditadura tal como se conheceu no século
XX.
8.
Os velhos progressismos são cada vez menos
progressistas, enquanto o espaço para os novos se estreita. Não seria indício
de que os ventos da política sopram em outra direção?
O terceiro governo Lula sequer teve o primeiro
domingo para descansar. Mas o PT teve três mandatos e meio para se erigir como
alternativa hegemônica, antes de ser desafiado pelo bolsonarismo. Já Boric se
defrontou com Kast na primeira eleição presidencial da sua vida.
Para ver onde os ventos sopram?
9.
A América Central exibe de modo concentrado os
traços da política continental. Por isso, pode revelar tendências. Analisando
esta região, o futuro do autoritarismo não parece estar na Nicarágua, mas em El
Salvador.
Profissional da política do espetáculo, Nayib
Bukele costurou punitivismo e bitcoin para construir um regime antidemocrático
com uma brisa “cool”. Enquanto Ortega cassa instituições, prende opositores e
fecha o país, Bukele não faz nada disso - ainda. Por meio de um sofisticado
manejo das redes sociais, o salvadorenho controla a agenda política do país.
Enquanto isso, renovou dezessete vezes o estado de exceção, prendeu mais de 70
mil pessoas e assegurou sua candidatura à reeleição, que a constituição proíbe.
O bukelismo encarna o desejo de uma violência que
ordena, presente em toda a região. Mas as grades que protegem, são as mesmas
que prendem. Já não se sabe ao certo quem está dentro e quem está fora. Bukele
goza das taxas de aprovação popular mais altas do continente. Mas como saber
onde termina a adesão ao regime, e começa o medo?
10.
O autoritarismo se modifica, mas o imperialismo
também.
Em 2009, os Estados Unidos apoiaram o golpe que
derrubou Manuel Zelaya em Honduras para conjurar o espectro do bolivarianismo
na região. Porém, o golpe pavimentou o caminho para a narcopolítica capturar o
Estado. Sob a liderança de Juan Orlando Hernandez (JOH), Honduras se converteu
em território do narcotráfico e em produtora massiva de migrantes.
Treze anos depois, os Estados Unidos viram com bons
olhos a vitória eleitoral da esposa de Zelaya, Xiomara Castro. A expectativa é
que este governo implemente políticas sociais, contendo o narcotráfico e a
migração. Também em Honduras a aceleração foi sucedida pela contenção.
Ao mesmo tempo, o narcopolítico que comandou o país
por dois mandatos está em vias de ser preso nos Estados Unidos. Enquanto isso,
quadros próximos a JOH são acolhidos na Nicarágua de Ortega, que os protege da
extradição. Neste antiimperialismo de cabeça para baixo, a tirania “de
esquerda” protege da justiça estadunidense os narcocriminosos “da direita”.
11.
Faz sentido pensar a América Latina do século 21
com olhos do século 20?
Na última campanha presidencial, bolsonaristas
alardeavam o risco de o país virar uma Venezuela comunista. Porém, diante da
degradação do tecido social venezuelano atravessado por militares e milicianos,
poucos aventaram a hipótese de que a Venezuela se aproximava do Brasil
bolsonarista.
No outro lado da moeda, lulistas exortaram o risco
de golpe. No entanto, não se tem notícias de golpe contra os Estados Unidos na
região. Pois quando aconteceram, atenderam pelo nome de “revolução”.
Efetivamente, um golpe bolsonarista poderia se
assemelhar a uma revolução, como o fascismo um dia foi. Neste caso, estaria o
progressismo avalizado pelos Estados Unidos no campo da contrarrevolução? Não
estou dizendo que isso é certo. Mas é preciso cuidado para o alarmismo não
interditar o pensamento, de um lado e de outro.
12.
Na atualidade, o progressismo latino-americano
seria um aliado estadunidense na tentativa de salvar o mundo dos brancos na
atualidade? Isso significa defender instituições e valores liberais, que a
própria dinâmica do neoliberalismo erode.
Evidentemente, trata-se de uma dinâmica
contraditória que se movimenta entre a aceleração da crise e as tentativas de
contê-la: a subversão dos valores liberais, ou a sua defesa. Em um mundo em que
a subversão está pautada pela direita, quem pautará a emancipação?
Enquanto progressistas convergem com liberais em
defesa de um passado idealizado, a extrema direita se posiciona a favor do
movimento da história, que nos conduz à barbárie. Como fazer que o futuro deste
presente não lhes pertença?
Fonte: Correio da Cidadania
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