Lula colhe mais sucesso do que fracassos no primeiro ano do terceiro
mandato
Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
escolheu o slogan "Reconstrução" para marcar o início de seu terceiro
mandato na Presidência da República, ele mirou a herança herdada do antecessor,
Jair Bolsonaro (PL), que desmontou boa parte das políticas públicas voltadas ao
atendimento da população mais pobre e aos setores ligados à educação, cultura,
meio ambiente e desenvolvimento social. Havia ainda a pretensão de retomar as
relações com outros países e a defesa do multilateralismo, esgarçadas pela
opção isolacionista do governo anterior.
Os atos de 8 de janeiro, porém, deram um novo norte
ao governo: reconstruir o diálogo democrático, as relações institucionais e a
convivência social em um país marcado pela divisão política. Ao fim deste
primeiro ano à frente do governo, Lula colhe mais sucessos do que fracassos,
mas carrega para 2024 um futuro de incertezas.
"A questão, hoje, não é se Lula é o cara ou
não, mas o momento em que se encontra o campo progressista no mundo. O próprio
governo brasileiro assumiu essa posição e influenciou demais as forças
progressistas em adotar uma linha mais técnica e mais moderada, muitas vezes
desconsiderando a existência de conflitos reais. Isso tem gerado derrotas que,
muitas vezes, não são do governo brasileiro, mas impostas pela condição
internacional objetiva", avalia Hugo Albuquerque, especialista em relações
internacionais da Editora Alternativa Literária.
A votação do Orçamento da União para 2024, na
semana passada, foi o desfecho de um ano complicado para o governo na relação
com o Congresso Nacional, majoritariamente conservador e ainda muito
contaminado pela polarização política dos últimos anos. O principal programa de
investimentos do governo, o Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento),
perdeu R$ 6 bilhões para emendas parlamentares e para o Fundo Eleitoral por
imposição dos parlamentares, de olho nas próximas eleições municipais, em
outubro. Poderia ter sido ainda pior, se o Planalto não tivesse entrado em
campo na reta final do ano legislativo para recompor alguns desses recursos.
Nem mesmo a aprovação da reforma tributária, depois
de quase três décadas de debates, pode ser creditada integralmente na conta do
novo governo. Os louros foram repartidos com os presidentes da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O que garantiu a
governabilidade neste ano foi a aprovação, ainda na transição de 2022, após as
eleições presidenciais, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que deixou
145 bilhões do Orçamento de 2023 fora do teto de gastos — política fiscal em
vigor desde o governo de Michel Temer, substituída pelo novo Marco Fiscal,
aprovado em agosto. Esses recursos foram usados para bancar despesas com o
Bolsa Família, o Auxílio Gás e a Farmácia Popular, entre outras políticas
públicas.
"Diferentemente do que a gente viu no primeiro
mandato de Lula, agora ele precisou, inicialmente, normalizar as relações
(políticas), acalmar a opinião pública. É um contexto mais polarizado, e isso
tem um peso importante", disse ao Correio a doutora em relações
internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) Tamya Coutinho.
Apesar das dificuldades de negociação com o
Congresso, Lula ainda teve que enfrentar um delicado processo de pacificação
das Forças Armadas, contaminadas pela relação política com o ex-presidente Jair
Bolsonaro. Para o trabalho, escalou como ministro da Defesa o experiente
político pernambucano José Múcio Monteiro, que já foi parlamentar e presidente
do Tribunal de Contas da União.
O mês de janeiro mostrou que a tarefa não seria
simples. O almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha no governo
Bolsonaro — investigado por suposto apoio a uma minuta de decreto de
intervenção golpista descoberta pela Polícia Federal — criou constrangimento ao
atual governo ao não comparecer à posse do seu sucessor, Marcos Sampaio Olsen,
em um gesto inédito de descortesia.
Com apenas 21 dias de governo, Lula demitiu o
general Júlio Cesar de Arruda do comando do Exército, por considerar que ele
não estava cumprido a determinação de identificar e punir os militares
envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Foi substituído pelo comandante militar do
Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, um dos poucos que defenderam
publicamente a manutenção da ordem democrática.
A partir daí, o ministro da Defesa se concentrou na
recomposição de verbas para o aparelhamento das Forças Armadas e a manutenção
de programas estratégicos de investimentos, como o desenvolvimento dos jatos de
combate Grippen (Aeronáutica) e o Programa de Submarinos (Prosub) da Marinha.
Missões de apoio às operações humanitárias e de retirada de garimpeiros da
Terra Indígena Yanomami, de repatriação de brasileiros que viviam na Faixa de
Gaza e na Cisjordânia, e, mais recentemente, de garantia da lei e da ordem
(GLO) nas rodovias federais e em portos e aeroportos no Rio de Janeiro ajudaram
a restaurar a imagem de agentes do Estado às Forças Armadas.
A interlocutores, o ministro da Defesa já admite
deixar o governo no ano que vem por considerar que a missão que lhe foi dada
pelo presidente Lula está cumprida. Mas ele permanecerá no cargo até, pelo
menos, o próximo dia 8 de janeiro, quando Lula reunirá toda a equipe de
ministros em uma cerimônia para marcar a passagem de um ano dos ataques
golpistas que destruíram as sedes dos Três Poderes.
• Agenda
internacional
A restauração da imagem do Brasil no exterior foi
uma das principais preocupações do presidente Lula, após quatro anos de
isolamento diplomático imposto pelo então presidente Bolsonaro e seu primeiro
chanceler, o diplomata Ernesto Araújo. Da negação da emergência climática ao
desprezo do multilateralismo, o Brasil se viu alijado dos principais fóruns de
debate globais. Por isso, o Itamaraty foi reorientado a restabelecer as pontes
com os principais atores da geopolítica atual, priorizando as negociações com a
União Europeia em torno do acordo de abertura comercial — que vem sendo
negociado há 30 anos —, a liderança do Brasil na América do Sul e entre os
emergentes, por meio do Banco do Brics, e o fortalecimento da Organização das
Nações Unidas (ONU) como centro de solução de controvérsias.
No caso da ONU, o Brasil tem outra demanda
histórica: participar como membro permanente do Conselho de Segurança. A
proposta brasileira é ampliar o número de membros e acabar (ou limitar) o poder
de veto dos cinco países vencedores da Segunda Guerra Mundial — Estados Unidos,
Reino Unido, França, Rússia e China.
Ao longo do ano, o presidente Lula fez 15 viagens
internacionais, visitou 24 países e totalizou 62 dias fora do Brasil. O saldo,
porém, ficou aquém do que Lula esperava. Por um lado, conseguiu, sem muita
dificuldade, recuperar boa parte do prestígio perdido. Foi recebido pelos
principais chefes de Estado e de governo do mundo e se fez presente nos
principais fóruns internacionais e organismos multilaterais. Mas não conseguiu
firmar-se como líder global.
"O brilho da pretensa liderança do Sul Global
começou a ser empanado, justamente, em função da guerra de agressão da Rússia
contra a Ucrânia, em que o presidente chegou a sugerir a cessão de território
por parte da nação agredida. A recepção dessas ideias no G7 de Hiroshima, em
maio, foi a pior possível e um esperado encontro com o presidente ucraniano,
Vladimir Zelensky, foi sorrateiramente evitado", avalia o embaixador
aposentado e professor Paulo Roberto de Almeida.
A diplomacia brasileira comemorou a reunião de
todos os chefes de Estado da América do Sul, em Brasília, pela primeira vez em
oito anos. Mas o encontro de cúpula ficou marcado pela tentativa de reabilitar
o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, no cenário continental. Maduro foi
recebido com pompa e circunstância, sob o olhar desconfiado da comunidade
internacional.
No mês passado, porém, Maduro ameaçou invadir a
Guiana para tomar o estado de Essequibo, que representa mais de 70% do pequeno
país amazônico. A região interessa menos pelas densas florestas do que pelo
rico subsolo marinho, cheio de petróleo, que já começou a ser explorado pela
Guiana. Maduro e o presidente guianês, Irfaan Ali, se encontraram pessoalmente
em São Vicente e Granadinas, pequeno país insular no Caribe, com a presença do
assessor internacional de Lula, Celso Amorim. Os dois pactuaram que iriam discutir
diplomaticamente a questão territorial sem ações militares. Por via das
dúvidas, as Forças Armadas brasileiras reforçaram a presença na fronteira de
Roraima com os dois países.
• Conselho
de Segurança
Quando o Brasil assumiu a presidência rotativa do
Conselho de Segurança da ONU, em outubro, havia a expectativa de que poderiam
avançar no debate sobre a ampliação do grupo. Lula sempre acalentou o desejo de
fazer do Brasil um membro permanente no mais importante órgão das Nações
Unidas. Mas o ataque terrorista do Hamas a vilas israelenses, que deixou um
saldo trágico de mais de 1,2 mil mortes — incluindo três brasileiros —, seguido
por uma brutal reação das forças armadas israelenses, nublou o cenário. O Brasil
não conseguiu aprovar uma resolução de cessar-fogo, vetada pelos Estados
Unidos.
Paralelamente, o Itamaraty armou a maior operação
de repatriação da história. De Israel, voltaram 1,4 mil brasileiros, na
maioria, turistas. Da Cisjordânia, mais 32. A repatriação dos brasileiros que
viviam em Gaza foi mais delicada e envolveu, também, o governo do Egito, que
controla a única saída de Gaza fora do controle israelense. Três grupos,
totalizando 80 pessoas, conseguiram autorização para voltar ao Brasil — o
último chegou no sábado à Base Aérea de Brasília.
Após
ruídos na articulação, reforma ministerial deve sair no começo de 2024
Este não foi um ano fácil para o governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Após a grande festa da posse, em 1º
de janeiro, a depredação das sedes dos Três Poderes, uma semana depois, seria o
prenúncio da polarização política que a equipe de governo teria de enfrentar
para dar corpo à reconstrução do país prometida ainda na campanha de 2022. Para
tentar contornar o cenário adverso e remontar a base de apoio no Congresso, uma
reforma ministerial pode acontecer em janeiro.
Os obstáculos foram reconhecidos por Lula ao longo
de todo o ano e, fechando a agenda presidencial no ano, no evento de Natal com
os catadores, na sexta-feira, o presidente admitiu as dificuldades de aprovar
matérias no Congresso. "A gente não tem maioria".
Ele citou como exemplo os vetos presidenciais ao
projeto de lei do Marco Temporal para a demarcação das terras indígenas,
aprovado pela Câmara e pelo Senado, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF)
tenha declarado a inconstitucionalidade da tese. Os vetos foram derrubados pelo
Congresso, por força, principalmente, da poderosa Frente Parlamentar da
Agropecuária (FPA), que conta com 303 deputados e 50 senadores. "Vocês
viram o que aconteceu. Foi aprovada a questão do Marco Temporal. Vocês estão lembrados
de que já tinha uma decisão da Suprema Corte. Aí, a Câmara aprovou uma coisa
totalmente contrária àquilo que o movimento queria, que os indígenas
queriam", lamentou o presidente.
"Quando chegou na minha mão, vetei tudo. Mas
voltou para o Congresso, e o Congresso derrubou meu veto. Agora, se a gente
quiser, a gente vai ter que voltar a brigar na Justiça, porque a gente não tem
maioria. Apesar de muitas coisas, o Congresso tem contribuído para a gente
conquistar coisas e avançar", disse Lula.
Com a iminente votação da reforma tributária, em
debate há pelo menos três décadas, a base governista teve de reconhecer a
derrota e costurar o apoio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC), ao mesmo
tempo em que tentou manter alguns dos vetos de Lula. Foram mantidos, assim, a
retomada de terra indígena por alteração de traços culturais; o plantio de
transgênicos em terras indígenas; e o contato com povos isolados, que deve ser
evitado ao máximo, salvo para prestação de auxílio médico ou para intermediar ação
estatal de utilidade pública.
Ainda que a promulgação da reforma tributária
represente uma vitória para o governo, o saldo está longe do ideal. Para se ter
uma ideia, até mesmo o desenho da Esplanada dos Ministérios foi usado como
alerta do Legislativo ao Executivo. Ainda na comissão mista, os parlamentares
esvaziaram as atribuições do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), devolvendo à
pasta da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a responsabilidade pelas
demarcações dos territórios dos povos originários.
Lula segue tentando apaziguar ânimos e vem adotando
uma postura otimista. Na quarta-feira, ele afirmou que o país chega ao fim do
ano em "uma situação muito boa" e que a articulação política foi, por
vezes, "mal-interpretada".
"Conseguimos isso apenas colocando em prática
a arte da negociação. Negociação muitas vezes mal-interpretada, acusada de
menor nível, dizendo que o governo estava conversando com fulano, com beltrano,
com o Centrão. E eu sempre fazia questão de dizer que a gente não conversa com
o Centrão, a gente conversa com partidos, com todos os partidos que têm
deputados e senadores. A gente não pergunta de que partido é a pessoa. Levamos
a proposta e estabelecemos as conversações necessárias", observou o
presidente durante reunião ministerial.
• Articulação
Em um ano de recomposição e planejamento, a pauta
legislativa foi voltada quase exclusivamente aos temas econômicos. Do arcabouço
fiscal, para substituir o teto de gastos, até as estratégias para arrecadação
em 2024, o Planalto contou com três ministros que foram a campo costurar
acordos: de Relações Institucionais, Alexandre Padilha; da Casa Civil, Rui
Costa; e da Fazenda, Fernando Haddad.
Antes do recesso parlamentar, as últimas duas
semanas foram focadas na aprovação da reforma tributária e no Orçamento de
2024. Aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ironizaram a falta
de protagonismo de Padilha nas negociações e por, sequer, ter sido mencionado
na solenidade de promulgação da maior mudança na estrutura de impostos do país
desde a redemocratização. Líderes partidários reclamaram da tímida articulação
política do ministro ao longo do ano e de não avançar em promessas feitas aos
congressistas, principalmente, na liberação de emendas e cargos.
Padilha teve duas derrotas recentes creditadas, em
parte, na sua conta: a derrubada do veto integral à desoneração da folha de 17 setores
da economia e a diminuição da previsão orçamentária para o Novo PAC (Programa
de Aceleração do Crescimento). Senadores falaram ao Correio que o ministro
carece de capital político para dialogar no Congresso.
Até o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), tentou defender o ministro, negando qualquer tipo de entrave com
Padilha.
O senador disse, em café com a imprensa, na
sexta-feira, que o fato de o nome do ministro não ter sido lembrado na
solenidade de promulgação da reforma foi por erro do cerimonial e que mantém
conversas constantes com o chefe da articulação política. A capacidade de
negociação de Padilha também foi posta em dúvida pelo fato de Haddad ter tomado
a frente das articulações da pauta econômica.
• "Fofocas"
A queda de Padilha em uma esperada reforma
ministerial é ventilada pelos parlamentares, mesmo que Lula não dê sinais de
que pretenda rifar ministros próximos. "Eu não comento o que não é dito
diretamente a mim, ao presidente Lula ou que não é dito em 'on'. Não vou entrar
em comentários em 'off', em fofocas que são feitas pela imprensa. Tenho relação
de profundo respeito com todos os deputados e senadores e, em especial, com os
presidentes das duas Casas", minimizou Padilha.
Para reverter os cortes no PAC, Rui Costa, que, em
junho, teria recuado da costura política para dar lugar a Padilha, foi o
escolhido para negociar com a Comissão Mista de Orçamento (CMO) até os últimos
instantes. O programa é voltado para obras de infraestrutura, área relevante
para os petistas em 2024, ano de eleições municipais. No fim, dos R$ 17 bilhões
retirados pelo relator, o deputado Luiz Carlos Motta (PL-SP), Costa conseguiu
diminuir esse valor para R$ 6,3 bilhões, totalizando o montante de R$ 54 bi
para o programa de investimentos.
O corte custou um valor histórico em emendas
parlamentares, R$ 53 bilhões, com um aditivo nas chamadas emendas de comissão,
que foram de R$ 11,3 bilhões (piso determinado pela Lei de Diretrizes
Orçamentárias de 2024) para R$ 16,6 bi. O Congresso fechou o ano destinando ao
Fundo Eleitoral voltado para o pleito municipal cerca de R$ 5 bilhões, uma
diferença de R$ 4 bilhões em relação ao proposto pelo governo (R$ 939,3
milhões). O valor é mais que o dobro do que foi liberado na última eleição
municipal, em 2020, de R$ 2 bilhões.
Após a aprovação do Orçamento para o próximo ano, o
líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), resumiu o
clima entre Legislativo e Executivo. "Não aprovamos o orçamento ideal, mas
teremos o Orçamento possível".
Fonte: Correio Braziliense
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