terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Lula colhe mais sucesso do que fracassos no primeiro ano do terceiro mandato

Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) escolheu o slogan "Reconstrução" para marcar o início de seu terceiro mandato na Presidência da República, ele mirou a herança herdada do antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que desmontou boa parte das políticas públicas voltadas ao atendimento da população mais pobre e aos setores ligados à educação, cultura, meio ambiente e desenvolvimento social. Havia ainda a pretensão de retomar as relações com outros países e a defesa do multilateralismo, esgarçadas pela opção isolacionista do governo anterior.

Os atos de 8 de janeiro, porém, deram um novo norte ao governo: reconstruir o diálogo democrático, as relações institucionais e a convivência social em um país marcado pela divisão política. Ao fim deste primeiro ano à frente do governo, Lula colhe mais sucessos do que fracassos, mas carrega para 2024 um futuro de incertezas.

"A questão, hoje, não é se Lula é o cara ou não, mas o momento em que se encontra o campo progressista no mundo. O próprio governo brasileiro assumiu essa posição e influenciou demais as forças progressistas em adotar uma linha mais técnica e mais moderada, muitas vezes desconsiderando a existência de conflitos reais. Isso tem gerado derrotas que, muitas vezes, não são do governo brasileiro, mas impostas pela condição internacional objetiva", avalia Hugo Albuquerque, especialista em relações internacionais da Editora Alternativa Literária.

A votação do Orçamento da União para 2024, na semana passada, foi o desfecho de um ano complicado para o governo na relação com o Congresso Nacional, majoritariamente conservador e ainda muito contaminado pela polarização política dos últimos anos. O principal programa de investimentos do governo, o Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), perdeu R$ 6 bilhões para emendas parlamentares e para o Fundo Eleitoral por imposição dos parlamentares, de olho nas próximas eleições municipais, em outubro. Poderia ter sido ainda pior, se o Planalto não tivesse entrado em campo na reta final do ano legislativo para recompor alguns desses recursos.

Nem mesmo a aprovação da reforma tributária, depois de quase três décadas de debates, pode ser creditada integralmente na conta do novo governo. Os louros foram repartidos com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O que garantiu a governabilidade neste ano foi a aprovação, ainda na transição de 2022, após as eleições presidenciais, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que deixou 145 bilhões do Orçamento de 2023 fora do teto de gastos — política fiscal em vigor desde o governo de Michel Temer, substituída pelo novo Marco Fiscal, aprovado em agosto. Esses recursos foram usados para bancar despesas com o Bolsa Família, o Auxílio Gás e a Farmácia Popular, entre outras políticas públicas.

"Diferentemente do que a gente viu no primeiro mandato de Lula, agora ele precisou, inicialmente, normalizar as relações (políticas), acalmar a opinião pública. É um contexto mais polarizado, e isso tem um peso importante", disse ao Correio a doutora em relações internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) Tamya Coutinho.

Apesar das dificuldades de negociação com o Congresso, Lula ainda teve que enfrentar um delicado processo de pacificação das Forças Armadas, contaminadas pela relação política com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Para o trabalho, escalou como ministro da Defesa o experiente político pernambucano José Múcio Monteiro, que já foi parlamentar e presidente do Tribunal de Contas da União.

O mês de janeiro mostrou que a tarefa não seria simples. O almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha no governo Bolsonaro — investigado por suposto apoio a uma minuta de decreto de intervenção golpista descoberta pela Polícia Federal — criou constrangimento ao atual governo ao não comparecer à posse do seu sucessor, Marcos Sampaio Olsen, em um gesto inédito de descortesia.

Com apenas 21 dias de governo, Lula demitiu o general Júlio Cesar de Arruda do comando do Exército, por considerar que ele não estava cumprido a determinação de identificar e punir os militares envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Foi substituído pelo comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, um dos poucos que defenderam publicamente a manutenção da ordem democrática.

A partir daí, o ministro da Defesa se concentrou na recomposição de verbas para o aparelhamento das Forças Armadas e a manutenção de programas estratégicos de investimentos, como o desenvolvimento dos jatos de combate Grippen (Aeronáutica) e o Programa de Submarinos (Prosub) da Marinha. Missões de apoio às operações humanitárias e de retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, de repatriação de brasileiros que viviam na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, e, mais recentemente, de garantia da lei e da ordem (GLO) nas rodovias federais e em portos e aeroportos no Rio de Janeiro ajudaram a restaurar a imagem de agentes do Estado às Forças Armadas.

A interlocutores, o ministro da Defesa já admite deixar o governo no ano que vem por considerar que a missão que lhe foi dada pelo presidente Lula está cumprida. Mas ele permanecerá no cargo até, pelo menos, o próximo dia 8 de janeiro, quando Lula reunirá toda a equipe de ministros em uma cerimônia para marcar a passagem de um ano dos ataques golpistas que destruíram as sedes dos Três Poderes.

•        Agenda internacional

A restauração da imagem do Brasil no exterior foi uma das principais preocupações do presidente Lula, após quatro anos de isolamento diplomático imposto pelo então presidente Bolsonaro e seu primeiro chanceler, o diplomata Ernesto Araújo. Da negação da emergência climática ao desprezo do multilateralismo, o Brasil se viu alijado dos principais fóruns de debate globais. Por isso, o Itamaraty foi reorientado a restabelecer as pontes com os principais atores da geopolítica atual, priorizando as negociações com a União Europeia em torno do acordo de abertura comercial — que vem sendo negociado há 30 anos —, a liderança do Brasil na América do Sul e entre os emergentes, por meio do Banco do Brics, e o fortalecimento da Organização das Nações Unidas (ONU) como centro de solução de controvérsias.

No caso da ONU, o Brasil tem outra demanda histórica: participar como membro permanente do Conselho de Segurança. A proposta brasileira é ampliar o número de membros e acabar (ou limitar) o poder de veto dos cinco países vencedores da Segunda Guerra Mundial — Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China.

Ao longo do ano, o presidente Lula fez 15 viagens internacionais, visitou 24 países e totalizou 62 dias fora do Brasil. O saldo, porém, ficou aquém do que Lula esperava. Por um lado, conseguiu, sem muita dificuldade, recuperar boa parte do prestígio perdido. Foi recebido pelos principais chefes de Estado e de governo do mundo e se fez presente nos principais fóruns internacionais e organismos multilaterais. Mas não conseguiu firmar-se como líder global.

"O brilho da pretensa liderança do Sul Global começou a ser empanado, justamente, em função da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, em que o presidente chegou a sugerir a cessão de território por parte da nação agredida. A recepção dessas ideias no G7 de Hiroshima, em maio, foi a pior possível e um esperado encontro com o presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, foi sorrateiramente evitado", avalia o embaixador aposentado e professor Paulo Roberto de Almeida.

A diplomacia brasileira comemorou a reunião de todos os chefes de Estado da América do Sul, em Brasília, pela primeira vez em oito anos. Mas o encontro de cúpula ficou marcado pela tentativa de reabilitar o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, no cenário continental. Maduro foi recebido com pompa e circunstância, sob o olhar desconfiado da comunidade internacional.

No mês passado, porém, Maduro ameaçou invadir a Guiana para tomar o estado de Essequibo, que representa mais de 70% do pequeno país amazônico. A região interessa menos pelas densas florestas do que pelo rico subsolo marinho, cheio de petróleo, que já começou a ser explorado pela Guiana. Maduro e o presidente guianês, Irfaan Ali, se encontraram pessoalmente em São Vicente e Granadinas, pequeno país insular no Caribe, com a presença do assessor internacional de Lula, Celso Amorim. Os dois pactuaram que iriam discutir diplomaticamente a questão territorial sem ações militares. Por via das dúvidas, as Forças Armadas brasileiras reforçaram a presença na fronteira de Roraima com os dois países.

•        Conselho de Segurança

Quando o Brasil assumiu a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU, em outubro, havia a expectativa de que poderiam avançar no debate sobre a ampliação do grupo. Lula sempre acalentou o desejo de fazer do Brasil um membro permanente no mais importante órgão das Nações Unidas. Mas o ataque terrorista do Hamas a vilas israelenses, que deixou um saldo trágico de mais de 1,2 mil mortes — incluindo três brasileiros —, seguido por uma brutal reação das forças armadas israelenses, nublou o cenário. O Brasil não conseguiu aprovar uma resolução de cessar-fogo, vetada pelos Estados Unidos.

Paralelamente, o Itamaraty armou a maior operação de repatriação da história. De Israel, voltaram 1,4 mil brasileiros, na maioria, turistas. Da Cisjordânia, mais 32. A repatriação dos brasileiros que viviam em Gaza foi mais delicada e envolveu, também, o governo do Egito, que controla a única saída de Gaza fora do controle israelense. Três grupos, totalizando 80 pessoas, conseguiram autorização para voltar ao Brasil — o último chegou no sábado à Base Aérea de Brasília.

 

       Após ruídos na articulação, reforma ministerial deve sair no começo de 2024

 

Este não foi um ano fácil para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Após a grande festa da posse, em 1º de janeiro, a depredação das sedes dos Três Poderes, uma semana depois, seria o prenúncio da polarização política que a equipe de governo teria de enfrentar para dar corpo à reconstrução do país prometida ainda na campanha de 2022. Para tentar contornar o cenário adverso e remontar a base de apoio no Congresso, uma reforma ministerial pode acontecer em janeiro.

Os obstáculos foram reconhecidos por Lula ao longo de todo o ano e, fechando a agenda presidencial no ano, no evento de Natal com os catadores, na sexta-feira, o presidente admitiu as dificuldades de aprovar matérias no Congresso. "A gente não tem maioria".

Ele citou como exemplo os vetos presidenciais ao projeto de lei do Marco Temporal para a demarcação das terras indígenas, aprovado pela Câmara e pelo Senado, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha declarado a inconstitucionalidade da tese. Os vetos foram derrubados pelo Congresso, por força, principalmente, da poderosa Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que conta com 303 deputados e 50 senadores. "Vocês viram o que aconteceu. Foi aprovada a questão do Marco Temporal. Vocês estão lembrados de que já tinha uma decisão da Suprema Corte. Aí, a Câmara aprovou uma coisa totalmente contrária àquilo que o movimento queria, que os indígenas queriam", lamentou o presidente.

"Quando chegou na minha mão, vetei tudo. Mas voltou para o Congresso, e o Congresso derrubou meu veto. Agora, se a gente quiser, a gente vai ter que voltar a brigar na Justiça, porque a gente não tem maioria. Apesar de muitas coisas, o Congresso tem contribuído para a gente conquistar coisas e avançar", disse Lula.

Com a iminente votação da reforma tributária, em debate há pelo menos três décadas, a base governista teve de reconhecer a derrota e costurar o apoio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC), ao mesmo tempo em que tentou manter alguns dos vetos de Lula. Foram mantidos, assim, a retomada de terra indígena por alteração de traços culturais; o plantio de transgênicos em terras indígenas; e o contato com povos isolados, que deve ser evitado ao máximo, salvo para prestação de auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública.

Ainda que a promulgação da reforma tributária represente uma vitória para o governo, o saldo está longe do ideal. Para se ter uma ideia, até mesmo o desenho da Esplanada dos Ministérios foi usado como alerta do Legislativo ao Executivo. Ainda na comissão mista, os parlamentares esvaziaram as atribuições do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), devolvendo à pasta da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a responsabilidade pelas demarcações dos territórios dos povos originários.

Lula segue tentando apaziguar ânimos e vem adotando uma postura otimista. Na quarta-feira, ele afirmou que o país chega ao fim do ano em "uma situação muito boa" e que a articulação política foi, por vezes, "mal-interpretada".

"Conseguimos isso apenas colocando em prática a arte da negociação. Negociação muitas vezes mal-interpretada, acusada de menor nível, dizendo que o governo estava conversando com fulano, com beltrano, com o Centrão. E eu sempre fazia questão de dizer que a gente não conversa com o Centrão, a gente conversa com partidos, com todos os partidos que têm deputados e senadores. A gente não pergunta de que partido é a pessoa. Levamos a proposta e estabelecemos as conversações necessárias", observou o presidente durante reunião ministerial.

•        Articulação

Em um ano de recomposição e planejamento, a pauta legislativa foi voltada quase exclusivamente aos temas econômicos. Do arcabouço fiscal, para substituir o teto de gastos, até as estratégias para arrecadação em 2024, o Planalto contou com três ministros que foram a campo costurar acordos: de Relações Institucionais, Alexandre Padilha; da Casa Civil, Rui Costa; e da Fazenda, Fernando Haddad.

Antes do recesso parlamentar, as últimas duas semanas foram focadas na aprovação da reforma tributária e no Orçamento de 2024. Aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ironizaram a falta de protagonismo de Padilha nas negociações e por, sequer, ter sido mencionado na solenidade de promulgação da maior mudança na estrutura de impostos do país desde a redemocratização. Líderes partidários reclamaram da tímida articulação política do ministro ao longo do ano e de não avançar em promessas feitas aos congressistas, principalmente, na liberação de emendas e cargos.

Padilha teve duas derrotas recentes creditadas, em parte, na sua conta: a derrubada do veto integral à desoneração da folha de 17 setores da economia e a diminuição da previsão orçamentária para o Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Senadores falaram ao Correio que o ministro carece de capital político para dialogar no Congresso.

Até o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), tentou defender o ministro, negando qualquer tipo de entrave com Padilha.

O senador disse, em café com a imprensa, na sexta-feira, que o fato de o nome do ministro não ter sido lembrado na solenidade de promulgação da reforma foi por erro do cerimonial e que mantém conversas constantes com o chefe da articulação política. A capacidade de negociação de Padilha também foi posta em dúvida pelo fato de Haddad ter tomado a frente das articulações da pauta econômica.

•        "Fofocas"

A queda de Padilha em uma esperada reforma ministerial é ventilada pelos parlamentares, mesmo que Lula não dê sinais de que pretenda rifar ministros próximos. "Eu não comento o que não é dito diretamente a mim, ao presidente Lula ou que não é dito em 'on'. Não vou entrar em comentários em 'off', em fofocas que são feitas pela imprensa. Tenho relação de profundo respeito com todos os deputados e senadores e, em especial, com os presidentes das duas Casas", minimizou Padilha.

Para reverter os cortes no PAC, Rui Costa, que, em junho, teria recuado da costura política para dar lugar a Padilha, foi o escolhido para negociar com a Comissão Mista de Orçamento (CMO) até os últimos instantes. O programa é voltado para obras de infraestrutura, área relevante para os petistas em 2024, ano de eleições municipais. No fim, dos R$ 17 bilhões retirados pelo relator, o deputado Luiz Carlos Motta (PL-SP), Costa conseguiu diminuir esse valor para R$ 6,3 bilhões, totalizando o montante de R$ 54 bi para o programa de investimentos.

O corte custou um valor histórico em emendas parlamentares, R$ 53 bilhões, com um aditivo nas chamadas emendas de comissão, que foram de R$ 11,3 bilhões (piso determinado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024) para R$ 16,6 bi. O Congresso fechou o ano destinando ao Fundo Eleitoral voltado para o pleito municipal cerca de R$ 5 bilhões, uma diferença de R$ 4 bilhões em relação ao proposto pelo governo (R$ 939,3 milhões). O valor é mais que o dobro do que foi liberado na última eleição municipal, em 2020, de R$ 2 bilhões.

Após a aprovação do Orçamento para o próximo ano, o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), resumiu o clima entre Legislativo e Executivo. "Não aprovamos o orçamento ideal, mas teremos o Orçamento possível".

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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