Bíblia: privatização ou leitura crítica?
O Magistério da Igreja sempre teve zelo pela Bíblia
desde os inícios da Igreja, cujos escritos eram conservados e guardados com o
maior cuidado, em continuidade à tradição judaico-semita-palestina. Com as
crises que a Igreja viveu no tempo da reforma protestante, no início do século
XVI, arrefeceu o estudo bíblico e, gradativamente, foi dada maior atenção à
devoção e à piedade popular, por meio de novenas, trezenas, procissões, embora
nunca abandonasse as Escrituras Sagradas, porque elas sempre estiveram presentes
nas celebrações litúrgicas. Porém, não houve grande incentivo para o estudo e a
leitura da Bíblia em meio ao povo.
Ainda antes do Concílio Vaticano II, de 1962 a
1965, com a fundação do Pontifício Instituto Bíblico, que nasceu em 1909, a
pedido do Papa Pio X, que deu um novo impulso à Igreja para promover com
eficácia o estudo bíblico e todos os estudos afins, entre eles, os estudos não
só das línguas bíblicas: hebraico, aramaico e grego, mas também das línguas
orientais que colaboram na transmissão e ensino da Bíblia. O papa confiou à
Companhia de Jesus, ou seja, aos Jesuítas, esta responsabilidade.
A finalidade para a qual nasceu Pontifício
Instituto Bíblico, sediado em Roma, na Itália, pode ajudar-nos a entender a sua
importância: cultivar e promover a pesquisa científica, as disciplinas bíblicas
e orientais; oferecer aos estudantes as disciplinas, em particular as línguas
bíblicas, uma adequada preparação de pesquisa científica para o ensino e a
difusão da Bíblia e de disciplinas afins; favorecer à Sagrada Escritura que
tenha uma função sempre mais ativa no estudo da teologia, no ministério pastoral,
no Diálogo Ecumênico, na Liturgia e na vida dos cristãos.
A Bíblia de Jerusalém é fruto deste esforço da
Igreja; a sua primeira edição de 1956 foi primeira obra exegética que pôde
falar abertamente, e com imprimatur da Hipótese Documentária
na Igreja Católica, fruto dos estudos bíblicos. Pouco a pouco, foi-se fazendo
estrada a ideia de que a interpretação crítica e científica da Bíblia não
ameaçava o depositum fidei, como já tinha constatado Julius Wellhausen:
“Tornei-me um teólogo porque me interessava por uma abordagem científica da
Bíblia. Só com o passar do tempo fui compreender que um professor de teologia
também possui o dever de preparar os estudantes para o ministério pastoral na
igreja protestante de forma prática. Compreendi também que eu não era o mais
indicado para tal incumbência, mas que, ao contrário, apesar de toda a cautela
da minha parte, acabava desqualificando meus ouvintes para seu futuro ofício”
(WELLHAUSEN, citado por ODEN JÚNIOR, 1987).
Pelo contrário, a interpretação crítica da Bíblia,
acolhendo o avanço da pesquisa bíblica, arqueológica, histórica e o que há de
melhor nas ciências humanas, promove a compreensão adulta e responsável dos
textos bíblicos sobre os quais se fundam a comunidade eclesial. Vários
documentos pontifícios importantes estimulam o estudo crítico da Bíblia. São
eles: as encíclicas: Deus Providentíssimo, do Papa Leão XIII, de
1893, e Divino sopro do Espírito, do Papa Pio XII, de 1943; o
Documento Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, de 18/11/1965; A
interpretação da Bíblia na Igreja, documento da Pontifícia Comissão
Bíblica, de 1993.
Nestes documentos, a Igreja Católica reconhece o
‘direito de cidadania’ à leitura crítica da Bíblia. A Encíclica Divino
Aflante Spiritus, a Dei Verbum, O Sopro Divino do
Espírito e a Palavra de Deus falam, sobretudo, da
legitimidade de uma leitura baseada nos gêneros literários. O documento da
Pontifícia Comissão Bíblica A interpretação da Bíblia na Igreja enumera
uma longa série de métodos que permitem uma compreensão sensata dos textos
bíblicos. Esse documento critica, com firmeza, um único tipo de leitura: a
interpretação fundamentalista e literalista da Bíblia.
A centralidade da Palavra desde as Primeiras
Comunidades Cristãs é inquestionável. Na liturgia, sobretudo, ela sempre teve
um lugar primordial, mesmo quando houve a Reforma Protestante com Lutero, por
volta de 1521. Porém, quando Lutero proclamou o lema sola Scriptura,
relativizam toda a tradição dos pais e mães da fé cristã, ou seja, toda a
patrística.
A Igreja católica optou, então, por não fazer a
autocrítica que Lutero propunha, e, temendo que a ignorância existente no meio
do povo pudesse levar a interpretações equivocadas dos textos bíblicos, deixou
a Bíblia de lado e dedicou-se mais a cultivar nos fiéis as devoções aos santos,
novenas, terço e outras expressões da religiosidade popular. Assim, após o
Concílio de Trento (1545-1563), a Bíblia ficou privatizada nas mãos dos padres
e bispos. Interrompeu-se o movimento de democratização e de acesso à Bíblia
empreendido por São Jerônimo que, antes de morrer em 420 da era cristã, a
traduziu para o Latim, a Vulgata, colocando-a na língua do povo. Do mesmo modo,
também nos estudos teológicos, a Bíblia ocupava um lugar periférico até o
Concílio Vaticano II (de 1962 a 1965).
O primeiro documento oficial da Igreja Católica
admitindo e animando a leitura crítica da Bíblia surgiu no final do século XIX,
em 1893, o que denota que durante muitos séculos houve pouco incentivo ao seu
estudo por parte da Igreja em relação aos seus fiéis. O problema é que
incentivar uma leitura crítica da Bíblia leva à formação de pessoas cristãs
críticas e criativas, não infantilizadas, e que certamente irão exigir a
partilha do poder religioso e o exercício de cidadania nos destinos da Igreja.
Manter o outro na ignorância ou na ingenuidade é também uma forma de controlar
e exercer poder e dominação.
Fonte: Por frei Gilvander Moreira, em Combate ao
Racismo Ambiental
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