quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Bíblia: privatização ou leitura crítica?

O Magistério da Igreja sempre teve zelo pela Bíblia desde os inícios da Igreja, cujos escritos eram conservados e guardados com o maior cuidado, em continuidade à tradição judaico-semita-palestina. Com as crises que a Igreja viveu no tempo da reforma protestante, no início do século XVI, arrefeceu o estudo bíblico e, gradativamente, foi dada maior atenção à devoção e à piedade popular, por meio de novenas, trezenas, procissões, embora nunca abandonasse as Escrituras Sagradas, porque elas sempre estiveram presentes nas celebrações litúrgicas. Porém, não houve grande incentivo para o estudo e a leitura da Bíblia em meio ao povo.

Ainda antes do Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, com a fundação do Pontifício Instituto Bíblico, que nasceu em 1909, a pedido do Papa Pio X, que deu um novo impulso à Igreja para promover com eficácia o estudo bíblico e todos os estudos afins, entre eles, os estudos não só das línguas bíblicas: hebraico, aramaico e grego, mas também das línguas orientais que colaboram na transmissão e ensino da Bíblia. O papa confiou à Companhia de Jesus, ou seja, aos Jesuítas, esta responsabilidade.

A finalidade para a qual nasceu Pontifício Instituto Bíblico, sediado em Roma, na Itália, pode ajudar-nos a entender a sua importância: cultivar e promover a pesquisa científica, as disciplinas bíblicas e orientais; oferecer aos estudantes as disciplinas, em particular as línguas bíblicas, uma adequada preparação de pesquisa científica para o ensino e a difusão da Bíblia e de disciplinas afins; favorecer à Sagrada Escritura que tenha uma função sempre mais ativa no estudo da teologia, no ministério pastoral, no Diálogo Ecumênico, na Liturgia e na vida dos cristãos.

A Bíblia de Jerusalém é fruto deste esforço da Igreja; a sua primeira edição de 1956 foi primeira obra exegética que pôde falar abertamente, e com imprimatur da Hipótese Documentária na Igreja Católica, fruto dos estudos bíblicos. Pouco a pouco, foi-se fazendo estrada a ideia de que a interpretação crítica e científica da Bíblia não ameaçava o depositum fidei, como já tinha constatado Julius Wellhausen: “Tornei-me um teólogo porque me interessava por uma abordagem científica da Bíblia. Só com o passar do tempo fui compreender que um professor de teologia também possui o dever de preparar os estudantes para o ministério pastoral na igreja protestante de forma prática. Compreendi também que eu não era o mais indicado para tal incumbência, mas que, ao contrário, apesar de toda a cautela da minha parte, acabava desqualificando meus ouvintes para seu futuro ofício” (WELLHAUSEN, citado por ODEN JÚNIOR, 1987).

Pelo contrário, a interpretação crítica da Bíblia, acolhendo o avanço da pesquisa bíblica, arqueológica, histórica e o que há de melhor nas ciências humanas, promove a compreensão adulta e responsável dos textos bíblicos sobre os quais se fundam a comunidade eclesial. Vários documentos pontifícios importantes estimulam o estudo crítico da Bíblia. São eles: as encíclicas: Deus Providentíssimo, do Papa Leão XIII, de 1893, e Divino sopro do Espírito, do Papa Pio XII, de 1943; o Documento Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, de 18/11/1965; A interpretação da Bíblia na Igreja, documento da Pontifícia Comissão Bíblica, de 1993.

Nestes documentos, a Igreja Católica reconhece o ‘direito de cidadania’ à leitura crítica da Bíblia. A Encíclica Divino Aflante Spiritus, a Dei VerbumO Sopro Divino do Espírito e a Palavra de Deus falam, sobretudo, da legitimidade de uma leitura baseada nos gêneros literários. O documento da Pontifícia Comissão Bíblica A interpretação da Bíblia na Igreja enumera uma longa série de métodos que permitem uma compreensão sensata dos textos bíblicos. Esse documento critica, com firmeza, um único tipo de leitura: a interpretação fundamentalista e literalista da Bíblia.

A centralidade da Palavra desde as Primeiras Comunidades Cristãs é inquestionável. Na liturgia, sobretudo, ela sempre teve um lugar primordial, mesmo quando houve a Reforma Protestante com Lutero, por volta de 1521. Porém, quando Lutero proclamou o lema sola Scriptura, relativizam toda a tradição dos pais e mães da fé cristã, ou seja, toda a patrística.

A Igreja católica optou, então, por não fazer a autocrítica que Lutero propunha, e, temendo que a ignorância existente no meio do povo pudesse levar a interpretações equivocadas dos textos bíblicos, deixou a Bíblia de lado e dedicou-se mais a cultivar nos fiéis as devoções aos santos, novenas, terço e outras expressões da religiosidade popular. Assim, após o Concílio de Trento (1545-1563), a Bíblia ficou privatizada nas mãos dos padres e bispos. Interrompeu-se o movimento de democratização e de acesso à Bíblia empreendido por São Jerônimo que, antes de morrer em 420 da era cristã, a traduziu para o Latim, a Vulgata, colocando-a na língua do povo. Do mesmo modo, também nos estudos teológicos, a Bíblia ocupava um lugar periférico até o Concílio Vaticano II (de 1962 a 1965).

O primeiro documento oficial da Igreja Católica admitindo e animando a leitura crítica da Bíblia surgiu no final do século XIX, em 1893, o que denota que durante muitos séculos houve pouco incentivo ao seu estudo por parte da Igreja em relação aos seus fiéis. O problema é que incentivar uma leitura crítica da Bíblia leva à formação de pessoas cristãs críticas e criativas, não infantilizadas, e que certamente irão exigir a partilha do poder religioso e o exercício de cidadania nos destinos da Igreja. Manter o outro na ignorância ou na ingenuidade é também uma forma de controlar e exercer poder e dominação.

 

Fonte: Por frei Gilvander Moreira, em Combate ao Racismo Ambiental

 

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