Lula e os riscos do imobilismo
Há exatamente um ano a república afastava de sua
intimidade a ameaça do projeto protofascista, representada pela possibilidade
concreta da reeleição do capitão Bolsonaro.
Como a república de 1946 com seu liberalismo
weimariano era a resposta lógica da democracia à ditadura do “Estado Novo”, o
retrocesso encaminhado em 2018 (desdobramento, por seu turno, do golpe de
2016), seria o reverso da plenitude democrática oferecida pelo regime da
Constituição de 1988, vencidos os 21 anos da ditadura militar instaurada em 1º
de abril de 1964, cuja ideologia, contudo, renascera como chorume.
Em 2022 o fantasma que nos rondava como presságio
de uma tragédia iminente era a promessa do aprofundamento do regime
autocrático, de índole militar e reacionária, intrinsecamente autoritário e
antinacional que haviam sido os quatro anos do bolsonarismo, doravante – e isso
nos atordoava os democratas de todos os matizes – referendado pelo
pronunciamento da soberania popular.
E sabemos todos como foi difícil transpor o Rubicão
do dia 30 de outubro de 2022!
Ao fim e ao cabo logramos proclamar a vitória da
institucionalidade democrática (que assim muito fica a dever à esquerda
brasileira), e ao invés da conservação autoritária temida, no 1º de janeiro
quem subiu a rampa foi a promessa de um governo nascido nas lutas sociais e
marcadamente comprometido com a centro-esquerda brasileira que começou a se
articular a partir das memoráveis jornadas de 1989.
Temos, pois, o que comemorar, mas esta não é a
história toda, pois na difícil vitória eleitoral, fecho de uma campanha
despolitizada em país já naquela altura tanto ou mais polarizado quanto em
1964, não houve espaço para o debate ideológico, de modo que não se ensejou às
forças socialistas e de esquerda em seu painel mais amplo a exposição de suas
críticas ao sistema capitalista e a defesa de suas teses fundamentais.
Pôde assim disputar o voto (a despolitização foi a
um tempo uma imposição das condições da campanha e uma opção tática), e fê-lo
bem, mas não lhe foi possível conquistar “corações e mentes”.
O objeto, afinal, não era a construção de uma nova
sociedade, mas impedir a continuidade do bolsonarismo na presidência. E,
certificaram os fatos, não se tratava de tarefa fácil.
Ademais, os sucessos eleitorais a partir de 2002 se
mostraram mais concretos e desfrutáveis que as vitórias políticas, como a de
1989, e logo a esquerda trocou o proselitismo de longo prazo pelos frutos do
imediato ensejados pelo eleitoralismo.
Por todas as razões demonstráveis, o fato objetivo
que se oferece à análise é que, vencidos o pleito, a intentona de janeiro e as
primeiras tentativas de desestabilização do novo governo, e nada obstante o que
as investigações policiais e judiciárias vêm revelando da domesticidade do
bolsonarismo, a direita fascista e golpista, seu campo, permanece forte,
organizada e politicamente ativa, mantendo vínculos os mais estreitos com a
caserna, a Faria Lima, o agronegócio e o neopentecostalismo atrasado, enquanto
partilha o controle do Congresso com o Centrão e todas as catervas de
assaltantes do erário, e por seu intermédio manipula o Orçamento da União.
Governa Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul.
Nada menos de 67%do PIB nacional! (Dados do IBGE
para 2020). Esta é a república em que se transformou o sonho dos constituintes
de 1988, e, nas contingências presentes, ponderadas as ilusões e os pesadelos,
ainda devemos saudar sua sobrevivência e protestar o compromisso de defendê-la.
Eleito, Lula é jungido a governar em um regime
transformista, que, se não é mais o presidencialismo da ordem constitucional,
ainda não é um parlamentarismo de fato, ou consensual (como foi o do Segundo
Reinado), embora o presidente da república de hoje, para governar ou
simplesmente conservar a faixa, seja obrigado a compartilhar o poder executivo
com o presidente da Câmara dos Deputados, como se fôra este um
primeiro-ministro, funções nas quais se investe (exercendo-as de fato), diante
da fragilidade parlamentar da base governista.
Mas não o faz por espírito republicano, senão para
mercadejar votos de curral inominável em troca do acesso à máquina pública que
enseja ao administrador desonesto o acesso às tetas do erário.
Como lembrava o sábio Conselheiro Acácio, as
consequências vêm depois, mas, em nosso caso, elas já marchavam a galope no
rasto das negociações dos feiticeiros do Planalto.
Incumbidos de adquirir votos na câmara e no senado
ao preço da cessão de ministérios (e verbas) e bancos sociais como a Caixa
Econômica Federal ao Centrão, terminaram pondo em jogo a própria alma do
governo, mergulhado em crise existencial.
O ministério de hoje – um caleidoscópio de forças
de esquerda, centro, direita e uma caterva de parasitas dos mais diversos
matizes e especialidades – é, já, um ministério velho e envilecido pelas
aquisições bastardas.
Sem unidade política, ideológica ou programática,
sem unidade de princípios, será sempre um ministério pro tempore,
aberto a implantes e transplantes sempre que uma votação decisiva atiçar o
ânimo chantagista do Centrão e seu Capo dei capi, que acumula essas
relevantes funções com as de presidente da Câmara dos Deputados.
Na insegurança tática, a alternativa presente
parece ser adiar as decisões estratégicas. Fica para outros tempos menos
severos, por exemplo, a decisão hamletiana entre arrocho fiscal ou déficit zero
(cobrado pela banca e seus porta-vozes na grande imprensa), ou o investimento
visando ao desenvolvimento econômico, de cujo pleito Lula fez uma razão de
vida.
Este é o lado mais visível da crise do poder
institucional, mas o presidente precisa ouvir, e ouvir com muita atenção, e em
seguida ceder generosos espaços de interesse a outros agentes consócios do
sistema, embora alheios à soberania popular: a caserna, a Faria Lima, o Banco
Central e os grandes meios de comunicação, aparelhos ideológicos do grande
capital.
Ou seja, o Palácio do Planalto repousa tão-só
naqueles dias em que deveria receber as centrais sindicais, os movimentos
sociais de modo geral.
Mas se esse vácuo enseja um pouco de distensão,
consideradas as pautas sempre pesadas do dia a dia, a ausência dos
trabalhadores, ademais de indicar as limitações de nosso pacto democrático,
deixa o presidente mais distante das forças populares, o único instrumento de
que dispõe para vencer o círculo de giz caucasiano no qual o sistema pretende
retê-lo, como se a correlação de forças hoje desfavorável fosse ora uma
fatalidade decretada pelo Olimpo, ora um determinismo histórico, em todo caso
irremovível pela força humana.
Quando não é nem uma coisa nem outra, senão uma
contingência que sempre pode ser enfrentada por um governo originário da
mobilização das grandes massas populares.
Muitas podem ser as razões do erro, do nosso
governo, nas relações com o castro, que por fim estimulam a indisciplina e
favorecem o espírito de corpo que caracterizam o papel do militar brasileiro,
desafeito aos seus deveres constitucionais e funcionalmente desaparelhado para
a única função que justifica o alto custo da caserna: a defesa nacional.
Mas é difícil entender a decisão política de
legitimar o abominável art. 142 da Constituição, ao invocá-lo para uma vez mais
levar as forças armadas – repetindo erros crassos – a atuarem no Rio de Janeiro
como auxiliares da polícia fluminense no combate ao crime organizado, no
contrapelo de sua destinação precípua, que é a defesa da soberania nacional.
E o faz em momento o mais grave do cenário
internacional, conturbado pelas disputas hegemônicas que acentuam a crise
geopolítica internacional, com guerras localizadas, guerras de conquista e
violações de soberania que podem estar anunciando um conflito generalizado, em
face do qual as forças armadas de hoje, peças do Estado brasileiro, não têm
condições, sejam politicas e ideológicas (é notória a dependência do pensamento
de nossos oficiais em relação ao Pentágono), sejam de treinamento, qualificação
e domínio tecnológico de armas e munições
O fascismo cresce no mundo. No Brasil, avança
contando com o apoio das instituições estatais, da omissão das esquerdas de um
modo geral, o que se revela na renúncia à ação e ao combate ideológico,
tendência que se vem consolidando desde os avanços eleitorais de 2002, que
ainda hoje servem de defesa para os fracassos políticos de 2016 e 2018, que
tanto contribuíram para o desastre eleitoral que foram as últimas eleições
proporcionais, levando o atual governo pagar o preço que se conhece e o preço
que se pode estimar.
O quadro conhecido de nosso continente — vivemos as
angustiantes dúvidas quanto ao pleito argentino — indica uma quase reversão de
expectativas, se considerarmos o mapa político contemporâneo face os dois
primeiros governos Lula e o mandato de Dilma.
Vale lembrar o desastre que foi Pedro Castillo no
Peru, e o fiasco que vai se mostrando o governo do jovem e promissor Boric, um
e outro exemplos fracassados de tentativa de composição pelo alto com a direita
vencida nas urnas, o que parece ser, até aqui, nossa perigosa estratégia, mais
que uma contingência.
Em contraste, Petro vai se firmando na Colômbia com
uma postura de enfrentamento, mesmo sem maioria no Congresso.
A inclinação pela direita indica o curso presente
do Uruguai, do Equador e da Bolívia, sugerindo dificuldades para o Mercosul,
para o BRICS e para a política integracionista de Lula e Amorim, da maior
relevância para nosso país.
É importantíssimo participar do processo eleitoral
(até porque trata-se, igualmente, de um processo político que abre espaço à
politização), mas seu objetivo não pode esgotar-se na pura e simples disputa do
voto, pois seu objeto é enfrentar a batalha política e ideológica.
Assim deve ser entendida a memorável eleição de
2022, e assim se coloca para os socialistas a defesa do governo Lula: o
contingente necessário que não encerra a luta toda, que deve ser a revolução social,
o objetivo que não pode ser descartado.
Fonte: Por Roberto Amaral, em Viomundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário