Um alerta na medicina: o ambiente tóxico durante os anos no ensino
superior
Registrados em abril, mas divulgados no início da
semana passada, os vídeos que mostram estudantes de medicina da Universidade
Santo Amaro (Unisa), de São Paulo, abaixando as calças para provocar rivais de
outra faculdade, durante jogos universitários, escancaram um dos principais
problemas na formação de médicos do Brasil: o ambiente tóxico durante os anos
no ensino superior.
As imagens mostram cerca de 20 jovens homens
abaixando as calças e segurando seus órgãos genitais. Na quadra, era disputada
uma partida de vôlei feminino. Um outro trecho mostra eles correndo nus pelo
ginásio, enquanto outros, que estavam na arquibancada, respondem mostrando as
nádegas.
Na última sexta-feira, o Ministério da Educação
deixou claro que o problema não está localizado apenas na Unisa. O MEC cobrou
explicações do Centro Universitário São Camilo, da Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo e da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), por vídeos com conteúdo de teor semelhante ao que viralizou na
segunda-feira.
As imagens chocam, mas o uso de força física,
coerção e humilhação extrema como parte dessas atividades estão longe de serem
uma novidade. Em 1999, o calouro Edison Tsung Chi Hsueh, de 22 anos, foi
encontrado morto dentro da piscina da associação atlética ligada ao diretório
acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O caso
não teve desfecho na Justiça até hoje, e os principais acusados de afogarem o
jovem não só se formaram como estão exercendo a medicina.
A violência nos trotes e no ambiente estudantil não
apenas prejudica fisicamente os estudantes, mas também causa danos psicológicos
profundos. Na sequência da divulgação dos vídeos, diversos veículos de imprensa
detalham como muitos estudantes enfrentam traumas duradouros após passar por
tais experiências humilhantes e assustadoras. Esses traumas não desaparecem
magicamente após a formatura: eles se arrastam para a prática médica,
potencialmente afetando a maneira como esses futuros médicos tratam seus
pacientes e colegas.
A jornada rumo à formação de um médico é
desafiadora por natureza. Requer dedicação, conhecimento, empatia e, acima de
tudo, um compromisso inabalável com a vida e o bem-estar dos pacientes. Por
isso, o caso levanta o questionamento: que tipo de médicos estamos formando
quando a primeira lição que eles aprendem é a de que a violência e a crueldade
são aceitáveis?
É hora de as universidades reavaliarem os ambientes
em que seus estudantes de medicina estão, principalmente extraclasse, e
implementarem medidas rigorosas para eliminar a violência e a humilhação dessas
práticas. É das instituições de ensino a responsabilidade de garantir que os
ambientes acadêmicos sejam seguros, inclusivos e respeitosos. Os coordenadores
das faculdades de medicina, em particular, devem liderar pelo exemplo, enfatizando
a importância dos valores éticos e humanitários desde o primeiro dia de aula.
Também é fundamental que as autoridades policiais e
os órgãos reguladores da educação se envolvam para investigar e punir de forma
adequada qualquer ato de violência relacionado a trotes universitários e ações
do tipo. Afinal, a medicina requer mais do que conhecimento técnico: exige
empatia, respeito e compromisso com o bem-estar dos pacientes. É hora de
reformular a abordagem à formação médica e garantir que os futuros médicos
sejam moldados por valores humanitários, não pela crueldade dos ambientes em
que estão. A vida e a saúde de seus pacientes dependem disso.
Ø A Medicina de Família dá seu recado ao Brasil. Por Gabriel Brito
Terminou neste sábado, 23/9, o 17º Congresso da
Sociedade Brasileira de Medicina de Família (SBMFC) e Comunidade. Realizado em
Fortaleza, no Centro de Convenções da cidade, o evento reuniu milhares de
inscritos e recebeu mais de mil trabalhos de pesquisa. Iniciado no dia 20/9,
também realizou diversas atividades com temáticas como racismo no SUS, aborto,
saúde digital e determinantes sociais do acesso à saúde.
Categoria em ascensão na medicina, a Medicina de
Família e Comunidade é chave na promoção da atenção primária em saúde e foco do
Mais Médicos, que oferece oportunidades de titulação na área – como explicou a
presidente da SBMFC, Zeliete Zambon, em
entrevista ao Outra Saúde no
início do ano. Em Fortaleza, ela voltou a defender o peso desta especialidade
ainda pouco assimilada pelo público como linha de frente do SUS e da política
pública do setor.
“Nossa especialidade deve coordenar o sistema.
Temos de formar mais e melhores médicas e médicos de família e comunidade.
Precisamos de uma saúde forte. Só seremos um país forte economicamente se
tivermos uma saúde forte. Uma saúde forte tem de estar onde o povo está. Essa é
a meta de nossa especialidade.”
O Congresso contou com a presença de nomes
importantes da área da saúde, a exemplo de Nésio Fernandes, secretário de
Atenção Primária do Ministério da Saúde. Em sua palestra, ele não apenas
detalhou a complexidade da Atenção Básica (como já havia feito nesta
entrevista ao Outra Saúde) como
antecipou mais investimentos do governo federal.
“O primeiro ano é fundamental para organizar
políticas que podem ser mais difíceis de fazer nos anos seguintes. Por isso,
prefeitos e governadores têm que pedir expansão das equipes, pois poderemos
fazer juntos a maior expansão de equipes de saúde da família. O mesmo vale para
saúde bucal. Para 2024 conquistamos mais R$ 10,5 bilhões para a atenção
primária, suficiente para garantir aquela que possivelmente será sua maior
expansão já vista.”
Nesse sentido, Fernandes fez referência a outras
políticas recém-lançadas, no caso, o programa
Brasil Sorridente, que visa expandir a odontologia no SUS, e as
chamadas equipes
multiprofissionais, nova versão dos Núcleos de Atenção à Saúde da
Família, que ampliam para até 22 especialidades as Equipes de Atenção à Saúde
da Família.
O secretário também reconheceu pontos críticos, a
exemplo do número ainda baixo de médicos de família no país. São cerca de 7 mil
profissionais em atividade e, de acordo com a SBMFC, são necessários ao menos
dez vezes mais para dar conta das exigências de um sistema de saúde do tamanho
do brasileiro.
“Nos acostumamos a padronizar as equipes com grupos
de 4 mil pessoas e a Política Nacional de Atenção Básica determina que o certo
seriam grupos 2 mil pessoas para cada equipe de saúde.”
Suas falas foram endossadas por pesos-pesados da
área, como Inez Padula, ex-presidente da SBMFC, e Luiz Facchini, professor da
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e coordenador da Rede APS, a Rede de
pesquisa de atenção primária em saúde, entidade associada à Associação
Brasileira de Saúde Coletiva, ao Conselho Nacional de Saúde e à Organização
Pan-Americana da Saúde. Ambos foram taxativos em afirmar o avanço da atenção
primária como eixo central da promoção da saúde no país. Mais que isso, eixo da
própria organização do SUS.
Já a mexicana Viviana Martinez elucidou o caráter
global do debate. Como destacado em fóruns internacionais, a pandemia atualizou
a discussão da saúde e mostrou como praticamente todos os países falharam na
garantia deste direito. “Temos realmente a vontade política? Haverá apoio para
a formação de mais médicas e médicos de família? Os países de fato consideram a
saúde como direito do ser humano?”, indagou.
Num momento em que a privatização dos sistemas de
saúde é questionada, e de certa forma o próprio setor privado passou a
reconhecer a importância de bons sistemas públicos, Nésio Fernandes atacou o
que chama de “pirataria sanitária”. Isso porque a absorção de conhecimentos de
integralidade e longitudinalidade, essenciais à promoção da atenção básica,
podem ser absorvidos por profissionais que em seguida aplicam tais conceitos na
saúde privada. Esta, por sua vez, se vê em dilemas econômicos e passou a
entender a Medicina de Família e Comunidade e seu caráter preventivo como meios
de viabilização de seu negócio.
“O sanitarismo não pode cair em pirataria
intelectual. Não pode virar um serviço sem vínculo. É o vínculo que qualifica e
interfere na vida das pessoas. Não é uma consulta avulsa que muda a saúde das
pessoas. Precisamos absorver as revoluções tecnológicas, mas isso não quer
dizer abdicar do cuidado real, presencial”, explicou o secretário.
Como não poderia deixar de ser, os chamados
determinantes sociais de saúde foram ponto central do evento e diversas mesas.
Palestrantes como Denize Ornelas, médica de Família e Comunidade e especialista
em Medicina Preventiva e Social, destacaram os gargalos em assistência à saúde
das populações negras e indígenas.
“O diagnóstico demora muito mais para as populações negras. Nas escolas de
medicina houve aulas sobre saúde dos negros? Não há dados sobre o perfil racial
dos médicos negros brasileiros nos conselhos regionais e federal de medicina”,
afirmou Ornellas. Em sua palestra, fez uma longa análise da construção do
racismo no Brasil e como isso afeta inclusive o tratamento à população negra no
SUS. “Precisamos assumir que o sistema olha de forma diferente para seus
usuários e ignora as condições cotidianas que afetam a saúde negra.”
No entanto, momentos como este também representam
congraçamento e união de forças. No caso, o 17º Congresso da SBMFC, foi um
momento de convergência na direção do fortalecimento do SUS e dos investimentos
públicos em saúde.
“Enfrentamos tempos turbulentos e estivemos o tempo
todo presentes na construção de uma linha para a saúde e de boas políticas para
a área. Em quatro anos, queremos chegar a R$ 20 bilhões de investimentos na
medicina de família e comunidade. Nós vamos transformar essa especialidade, será
uma revolução. Aposto na juventude, nos novos médicos e médicas. Uma saúde
forte tem de estar onde o povo está. Essa é a meta de nossa especialidade”,
resumiu Zeliete Zambon.
Fonte: Correio Braziliense/Outra Saúde
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