terça-feira, 26 de setembro de 2023

Um alerta na medicina: o ambiente tóxico durante os anos no ensino superior

Registrados em abril, mas divulgados no início da semana passada, os vídeos que mostram estudantes de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa), de São Paulo, abaixando as calças para provocar rivais de outra faculdade, durante jogos universitários, escancaram um dos principais problemas na formação de médicos do Brasil: o ambiente tóxico durante os anos no ensino superior.

As imagens mostram cerca de 20 jovens homens abaixando as calças e segurando seus órgãos genitais. Na quadra, era disputada uma partida de vôlei feminino. Um outro trecho mostra eles correndo nus pelo ginásio, enquanto outros, que estavam na arquibancada, respondem mostrando as nádegas.

Na última sexta-feira, o Ministério da Educação deixou claro que o problema não está localizado apenas na Unisa. O MEC cobrou explicações do Centro Universitário São Camilo, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por vídeos com conteúdo de teor semelhante ao que viralizou na segunda-feira.

As imagens chocam, mas o uso de força física, coerção e humilhação extrema como parte dessas atividades estão longe de serem uma novidade. Em 1999, o calouro Edison Tsung Chi Hsueh, de 22 anos, foi encontrado morto dentro da piscina da associação atlética ligada ao diretório acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O caso não teve desfecho na Justiça até hoje, e os principais acusados de afogarem o jovem não só se formaram como estão exercendo a medicina.

A violência nos trotes e no ambiente estudantil não apenas prejudica fisicamente os estudantes, mas também causa danos psicológicos profundos. Na sequência da divulgação dos vídeos, diversos veículos de imprensa detalham como muitos estudantes enfrentam traumas duradouros após passar por tais experiências humilhantes e assustadoras. Esses traumas não desaparecem magicamente após a formatura: eles se arrastam para a prática médica, potencialmente afetando a maneira como esses futuros médicos tratam seus pacientes e colegas.

A jornada rumo à formação de um médico é desafiadora por natureza. Requer dedicação, conhecimento, empatia e, acima de tudo, um compromisso inabalável com a vida e o bem-estar dos pacientes. Por isso, o caso levanta o questionamento: que tipo de médicos estamos formando quando a primeira lição que eles aprendem é a de que a violência e a crueldade são aceitáveis?

É hora de as universidades reavaliarem os ambientes em que seus estudantes de medicina estão, principalmente extraclasse, e implementarem medidas rigorosas para eliminar a violência e a humilhação dessas práticas. É das instituições de ensino a responsabilidade de garantir que os ambientes acadêmicos sejam seguros, inclusivos e respeitosos. Os coordenadores das faculdades de medicina, em particular, devem liderar pelo exemplo, enfatizando a importância dos valores éticos e humanitários desde o primeiro dia de aula.

Também é fundamental que as autoridades policiais e os órgãos reguladores da educação se envolvam para investigar e punir de forma adequada qualquer ato de violência relacionado a trotes universitários e ações do tipo. Afinal, a medicina requer mais do que conhecimento técnico: exige empatia, respeito e compromisso com o bem-estar dos pacientes. É hora de reformular a abordagem à formação médica e garantir que os futuros médicos sejam moldados por valores humanitários, não pela crueldade dos ambientes em que estão. A vida e a saúde de seus pacientes dependem disso.

 

Ø  A Medicina de Família dá seu recado ao Brasil. Por Gabriel Brito

 

Terminou neste sábado, 23/9, o 17º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina de Família (SBMFC) e Comunidade. Realizado em Fortaleza, no Centro de Convenções da cidade, o evento reuniu milhares de inscritos e recebeu mais de mil trabalhos de pesquisa. Iniciado no dia 20/9, também realizou diversas atividades com temáticas como racismo no SUS, aborto, saúde digital e determinantes sociais do acesso à saúde.

Categoria em ascensão na medicina, a Medicina de Família e Comunidade é chave na promoção da atenção primária em saúde e foco do Mais Médicos, que oferece oportunidades de titulação na área – como explicou a presidente da SBMFC, Zeliete Zambon, em entrevista ao Outra Saúde no início do ano. Em Fortaleza, ela voltou a defender o peso desta especialidade ainda pouco assimilada pelo público como linha de frente do SUS e da política pública do setor.

“Nossa especialidade deve coordenar o sistema. Temos de formar mais e melhores médicas e médicos de família e comunidade. Precisamos de uma saúde forte. Só seremos um país forte economicamente se tivermos uma saúde forte. Uma saúde forte tem de estar onde o povo está. Essa é a meta de nossa especialidade.”

O Congresso contou com a presença de nomes importantes da área da saúde, a exemplo de Nésio Fernandes, secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde. Em sua palestra, ele não apenas detalhou a complexidade da Atenção Básica (como já havia feito nesta entrevista ao Outra Saúde) como antecipou mais investimentos do governo federal.

“O primeiro ano é fundamental para organizar políticas que podem ser mais difíceis de fazer nos anos seguintes. Por isso, prefeitos e governadores têm que pedir expansão das equipes, pois poderemos fazer juntos a maior expansão de equipes de saúde da família. O mesmo vale para saúde bucal. Para 2024 conquistamos mais R$ 10,5 bilhões para a atenção primária, suficiente para garantir aquela que possivelmente será sua maior expansão já vista.”

Nesse sentido, Fernandes fez referência a outras políticas recém-lançadas, no caso, o programa Brasil Sorridente, que visa expandir a odontologia no SUS, e as chamadas equipes multiprofissionais, nova versão dos Núcleos de Atenção à Saúde da Família, que ampliam para até 22 especialidades as Equipes de Atenção à Saúde da Família.

O secretário também reconheceu pontos críticos, a exemplo do número ainda baixo de médicos de família no país. São cerca de 7 mil profissionais em atividade e, de acordo com a SBMFC, são necessários ao menos dez vezes mais para dar conta das exigências de um sistema de saúde do tamanho do brasileiro.

“Nos acostumamos a padronizar as equipes com grupos de 4 mil pessoas e a Política Nacional de Atenção Básica determina que o certo seriam grupos 2 mil pessoas para cada equipe de saúde.”

Suas falas foram endossadas por pesos-pesados da área, como Inez Padula, ex-presidente da SBMFC, e Luiz Facchini, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e coordenador da Rede APS, a Rede de pesquisa de atenção primária em saúde, entidade associada à Associação Brasileira de Saúde Coletiva, ao Conselho Nacional de Saúde e à Organização Pan-Americana da Saúde. Ambos foram taxativos em afirmar o avanço da atenção primária como eixo central da promoção da saúde no país. Mais que isso, eixo da própria organização do SUS.

Já a mexicana Viviana Martinez elucidou o caráter global do debate. Como destacado em fóruns internacionais, a pandemia atualizou a discussão da saúde e mostrou como praticamente todos os países falharam na garantia deste direito. “Temos realmente a vontade política? Haverá apoio para a formação de mais médicas e médicos de família? Os países de fato consideram a saúde como direito do ser humano?”, indagou.

Num momento em que a privatização dos sistemas de saúde é questionada, e de certa forma o próprio setor privado passou a reconhecer a importância de bons sistemas públicos, Nésio Fernandes atacou o que chama de “pirataria sanitária”. Isso porque a absorção de conhecimentos de integralidade e longitudinalidade, essenciais à promoção da atenção básica, podem ser absorvidos por profissionais que em seguida aplicam tais conceitos na saúde privada. Esta, por sua vez, se vê em dilemas econômicos e passou a entender a Medicina de Família e Comunidade e seu caráter preventivo como meios de viabilização de seu negócio.

“O sanitarismo não pode cair em pirataria intelectual. Não pode virar um serviço sem vínculo. É o vínculo que qualifica e interfere na vida das pessoas. Não é uma consulta avulsa que muda a saúde das pessoas. Precisamos absorver as revoluções tecnológicas, mas isso não quer dizer abdicar do cuidado real, presencial”, explicou o secretário.

Como não poderia deixar de ser, os chamados determinantes sociais de saúde foram ponto central do evento e diversas mesas. Palestrantes como Denize Ornelas, médica de Família e Comunidade e especialista em Medicina Preventiva e Social, destacaram os gargalos em assistência à saúde das populações negras e indígenas.
“O diagnóstico demora muito mais para as populações negras. Nas escolas de medicina houve aulas sobre saúde dos negros? Não há dados sobre o perfil racial dos médicos negros brasileiros nos conselhos regionais e federal de medicina”, afirmou Ornellas. Em sua palestra, fez uma longa análise da construção do racismo no Brasil e como isso afeta inclusive o tratamento à população negra no SUS. “Precisamos assumir que o sistema olha de forma diferente para seus usuários e ignora as condições cotidianas que afetam a saúde negra.”

No entanto, momentos como este também representam congraçamento e união de forças. No caso, o 17º Congresso da SBMFC, foi um momento de convergência na direção do fortalecimento do SUS e dos investimentos públicos em saúde.

“Enfrentamos tempos turbulentos e estivemos o tempo todo presentes na construção de uma linha para a saúde e de boas políticas para a área. Em quatro anos, queremos chegar a R$ 20 bilhões de investimentos na medicina de família e comunidade. Nós vamos transformar essa especialidade, será uma revolução. Aposto na juventude, nos novos médicos e médicas. Uma saúde forte tem de estar onde o povo está. Essa é a meta de nossa especialidade”, resumiu Zeliete Zambon.

 

Fonte: Correio Braziliense/Outra Saúde

 

Nenhum comentário: