Ricardo Nunes pagou R$ 16,5 milhões a jornais de bairro de aliados,
ex-dono de creche e até de políticos de fora de SP
O prefeito Ricardo Nunes, do MDB, comanda uma
grande operação para tentar vencer as eleições municipais do ano que vem em São
Paulo. Com o maior orçamento para gastos em publicidade dos últimos 12 anos,
uma das apostas de Nunes tem sido jorrar dinheiro em jornais de bairro.
Em 2021, a prefeitura investiu R$ 4,3 milhões em
publicações do tipo. No ano seguinte, quase dobrou o valor, subindo para R$ 8,5
milhões. Só de janeiro a julho de 2023, já foram R$ 3,7 milhões. Desde o início
da atual administração municipal, o valor é de R$ 16,5 milhões, pagos a pelo
menos 48 jornais de bairro da cidade. Em contrapartida, a imagem do prefeito
tem sido promovida em publicações distribuídas gratuitamente pela capital
paulista – em anúncios, publieditorais e reportagens elogiosas.
As informações são resultado de um levantamento do
Intercept com base no Portal da Transparência e nas prestações de contas de
dois contratos da prefeitura, assinados com as agências de publicidade Propeg e
a Mworks – também responsáveis por intermediar a verba dos publieditoriais na
Folha de S.Paulo. Os acordos tinham valor inicial de R$ 160 milhões, mas
saltaram para R$ 200 milhões cada após um aditamento feito em abril – e que
está sob investigação do Ministério Público de São Paulo, que busca explicações
que justifiquem o aumento do valor.
O montante investido em jornais de bairro chama a
atenção porque boa parte das publicações faz a divulgação de ações da
prefeitura e promovem a imagem do prefeito. Na prática, os veículos funcionam
como um panfleto eleitoral de Nunes no ano em que antecede as eleições
municipais.
O Intercept localizou 36 capas de jornais ligados
às empresas que receberam verba da prefeitura – todas elas foram publicadas
desde o início do ano. Entre elas, 30 capas são positivas para a gestão Nunes –
o que corresponde a 88% das publicações analisadas –, sendo 21 a matéria
principal ou alguma referência sobre entregas ou eventos da administração
municipal, nove textos com fotos do prefeito e uma com um publieditorial com o
logo da prefeitura. Os jornais de 10 empresas não foram encontrados.
Ricardo Nunes é bastante familiarizado com o setor.
Ele fundou, nos anos 1980, então com 18 anos, o jornal “Hora da Ação”, de
Interlagos, zona sul da capital. Agora, várias das empresas que publicam os
jornais têm forte ligação com Nunes – e, dos sócios aos colunistas, evidente
atuação política. Em alguns casos, filiação partidária.
A falta de detalhamento e comprovação de audiência
dos veículos é alvo de representações apresentadas no Tribunal de Contas do
Município, no MPSP e no Ministério Público Eleitoral pelo vereador Celso
Giannazi, pelo deputado estadual Carlos Giannazi e pela deputada federal
Luciene Cavalcante, todos do Psol.
Segundo os parlamentares, na prestação de contas do
uso dos recursos de cada contrato, a prefeitura apenas anexou comprovantes de
pagamento, sem apresentar qualquer justificativa, contrato com os veículos ou
mesmo sinalização sobre espaço ou horário de veiculação das propagandas.
• Campeão
de anúncios tem aliados do prefeito como colunistas
Aempresa JBA, a Jornais de Bairro Associados, foi a
que recebeu o maior valor da prefeitura de Ricardo Nunes nos últimos dois anos:
R$ 969 mil, sendo R$ 643,7 mil apenas de janeiro a julho de 2023. Fundada em
1977 pelo empresário Ronaldo Goncalves Cortes, a empresa chegou a publicar
jornais impressos em mais de 10 bairros da cidade.
O empresário morreu em 2012. Quem assumiu o negócio
foi seu filho Marco Cézar G. Côrtes, que edita as oito publicações que seguem
ativas, de acordo com o site da JBA: Brooklin News, Butantã-Pinheiros, Campo
Belo, Higienópolis News, Jornal dos Jardins-Itaim Bibi-Rua Augusta, Jornal do
Morumbi, Jornal da Zona Sul e Moema News.
Apesar da diversidade no nome dos jornais, o
conteúdo é exatamente o mesmo, variando apenas uma pequena reportagem
personalizada da parte superior da capa – essa sim, ligada à região onde a
publicação é distribuída. Entre os colunistas publicados nos jornais da JBA,
estão o deputado federal Celso Russomano, do Republicanos, e o deputado
estadual paulista Coronel Camilo, ex-comandante geral da Polícia Militar de São
Paulo, do PSD. As siglas dos dois políticos integram a base aliada do prefeito
Ricardo Nunes.
A relação com a política não é novidade na família
Côrtes, da JBA. Em 1990, Ronaldo e sua esposa, Helena Iacopi Goncalves Cortes,
junto ao filho Marco Cézar, se filiaram ao Partido Liberal, o PL. Na época, a
sigla apoiava a candidatura de Paulo Maluf, do PDS, contra Luiza Erundina, do
PT, candidata à reeleição. Hoje, o PL abriga o ex-presidente Jair Bolsonaro,
cortejado por Nunes para ser seu cabo eleitoral no pleito de 2024.
• Ricardo
Nunes ganhou prêmio de ONG de jornalista
Asegunda empresa no ranking de jornais comunitários
que receberam verba da prefeitura é a GSN Jornais e Publicidade, o Grupo Sul News. Foram R$ 541,52 mil, sendo R$
342 mil nos últimos seis meses. O jornal pertencia a Rafael Henrique Rodrigues
Pistori, que hoje é funcionário comissionado do gabinete do prefeito, onde
recebe um salário mensal de R$ 12 mil, conforme revelou a Folha de S.Paulo.
Pistori deixou a sociedade em 2015, mas grupo segue na família: desde março de
2022, a única sócia do Grupo Sul News é Andrea Pistori Rodrigues, de 45 anos,
esposa do assessor do prefeito.
Na página de Instagram do veículo, até a
segunda-feira, 18, dos últimos seis posts, quatro eram divulgação de ações da
prefeitura. No site, a maior parte das reportagens reproduz na íntegra o
conteúdo de releases da prefeitura ou de organizações da sociedade civil. Na
aba de política, é possível obter algumas pistas de quem está por trás da
publicação. Além das reportagens elogiosas a Nunes – como “Prefeito Ricardo
Nunes visita obras pelo M’Boi Mirim” –, ela também produz conteúdo favorável a
seus aliados.
Um deles é o líder do partido do prefeito, o MDB,
na Câmara Municipal de SP, o vereador Marcelo Messias. “A trajetória de Marcelo
Messias até se tornar o primeiro cirurgião-dentista Vereador em São Paulo”, diz
o título. “Grupo Sul News visitou seu gabinete para apresentar a pessoa Marcelo
Messias por trás do mandato”, conta o subtítulo. Outro político bem quisto pelo
GSN é Rodrigo Goulart, vereador de SP e filho do ex-deputado federal Goulart,
aliado de Nunes na zona sul da capital.
Como no caso das publicações da JBA, os diferentes
jornais de bairro do Grupo Sul News são praticamente iguais um ao outro. A
única variação, quando ocorre, é uma pequena reportagem personalizada na capa.
OAs publicações exageram ainda mais no tom panfletário pró-Nunes: apresença do
prefeito e entregas da prefeitura dominam o noticiário.
O Grupo Sul News também teve como sócio José Carlos
Rodrigues Jr., que segue atuando como diretor da Gazeta de Santo Amaro, jornal
que seu pai fundou nos anos 1960. O herdeiro acumula a função com a diretoria
do Centro das Tradições de Santo Amaro, o Cetrasa, uma ONG com forte ligação
com Ricardo Nunes há mais de uma década. Em 2014, quando ainda era vereador, o
atual prefeito foi premiado com o Troféu Botina Amarela,, uma das principais
ações da organização, por sua contribuição ao bairro.
“Fui homenageado pelo Cetrasa com uma das
personalidades da região. E isso muito me orgulha!”, disse Nunes na ocasião. Em
2017, o então vereador publicou um anúncio de seu próprio mandato em uma edição
especial do Troféu Botina Amarela, publicada pelo Grupo Sul News como um
encarte da Gazeta de Santo Amaro. “Sempre farei jus de fazer parte desse grupo
de benfeitores”, escreveu.
O Grupo Sul News também publica outros dois
jornais, o Ver a Cidade e o Unicidade. São os únicos que a empresa informa a
tiragem: 20 mil exemplares semanais cada. Apesar de não terem a segmentação de
bairro, têm a mesma linha editorial, alternando notícias elogiosas à gestão com
a presença de Nunes em eventos oficiais. Assim como no caso dos jornais de
bairro, a única diferença entre os dois é uma das chamadas de capa. De resto,
Ver a Cidade e Unicidade são iguais.
Apesar de se afirmar uma publicação do Grupo
SulNews, entre as empresas pagas com dinheiro público, há um outro CNPJ com o
nome Jornal Ver a Cidade, para o qual foram destinados R$ 270,8 mil.
Considerando o total recebido pelas duas empresas – o GSN e o Ver a Cidade –, o valor chega a
R$ 643,2 mil.
• Jornal-fantasma
de ex-dono de creche recebeu R$ 316,8 mil
Na lista de pagamentos, aparece a Empresa
Jornalística Folha de Guaianases, que recebeu um valor total de R$ 193,88 mil
desde janeiro do ano passado. O caso é ainda mais curioso. Sem site oficial, a
última versão impressa do jornal localizada pelo Intercept é de 2011. Nas redes
sociais, a única página da Folha de Guaianases é um grupo no Facebook, com
pouco mais de mil membros.
O dono da firma é Stephenson Jorge Teixeira da
Costa, político com quatro candidaturas a cargos eletivos em São Paulo (duas
vezes candidato a vereador de Poá, na região metropolitana de São Paulo; uma a
deputado estadual; outra a deputado federal). Costa também ocupa o cargo de
presidente da Sociedade dos Amigos de Guaianases. A organização geriu, com aval
da administração municipal concedido em 2011, o Centro de Educação Infantil
Vitalina Pires Rodrigues. A creche foi fechada em 2019.
Nunes tem forte influência no setor das creches, o
que chegou a motivar uma investigação do Ministério Público de São Paulo.
Segundo o MPSP, o atual prefeito foi favorecido por sua relação com
organizações gestoras de creches, como a Sociedade Beneficente Equilíbrio de
Interlagos, a Sobei e a Nikkey, contratada pela prefeitura sem licitação para
prestar serviços de dedetização em oito creches – essa última, de propriedade
da esposa e da filha de Nunes.
• Farra
da publicidade tem ‘branded content’ e jornal de fora de SP
Por meio de duas empresas, a Publicidade Em Dia
Ltda e a Publicidade Em Dia ME, o jornal ZN Mais Notícias recebeu R$ 114 mil em
de janeiro de 2022 a julho de 2023. Na sua edição mais recente, de setembro, a
publicação tinha propagandas em mais de 60% de suas 12 páginas. A prefeitura
ocupava meia página. Assim como nas outras publicações, não há informações
sobre tiragem.
Já a Editora Jornalística Bairros Unidos, que
mantém o site Ipiranga News desde 1997,
recebeu R$ 233,7 mil desde janeiro do ano passado. Na aba do site em que
convida o leitor a acessar sua “versão digital”, não há nenhuma informação.
Com a Gazeta de Interlagos, que recebeu R$ 74,1
mil, a prefeitura repetiu o modelo de “branded content” feito com a Folha de
S.Paulo, cujo valor foi revelado em reportagem do Intercept. Como se
precisasse: o jornal, mesmo quando não é pago para fazer publieditorial, conta
com um noticiário evidentemente elogioso à gestão municipal e com grande
exposição de Nunes.
Outro caso que chama a atenção é o de José Osório
Filho, que recebeu em uma microempresa homônima o total de R$ 57 mil, em seis
pagamentos, todos eles feitos de março a agosto de 2023, como demonstram os
recibos disponíveis no Portal de Processos Administrativos. O jornalista é
responsável pelo Jornal Comunicação Ativa. Apesar de ganhar dinheiro da
Prefeitura de São Paulo, Osório Filho e seu jornal não são da cidade. Morador
de Itaquaquecetuba, Osório foi até candidato a vereador em 2020, e também a
deputado estadual em 2022, pelo Partido da Mobilização Nacional, o PMN, sempre
representando Itaquá, como é conhecido o município da Grande São Paulo.
Mas, pelo menos no Facebook, agora publica capas de
jornais cobrindo a capital. Uma delas coloca Nunes com um capacete para proteção
em obras e o título: “Prefeito Ricardo Nunes anunciou o investimento de R$ 190
milhões [em letras garrafais] no Autódromo de Interlagos para grandes eventos
culturais e esportivas”.
Em nota, a prefeitura afirmou que as contratações
de veículos de comunicação respeitam critérios técnicos e de mercado e que são
“acompanhadas de comprovação de circulação ou exibição”. Segundo a gestão
Nunes, “os jornais de Bairro têm importante papel na disseminação de informação
de inúmeras comunidades do município”. “As veiculações de campanhas e demais
conteúdos, dizem respeito às ações de utilidade pública, realizadas pela
Prefeitura de SP e são elaboradas por agências especializadas selecionadas por
meio de licitação regulamentada”, finalizou.
Questionada, a MWorks afirmou que os jornais de
bairros “são utilizados pela Prefeitura, assim como qualquer outro veículo e/ou
meio de comunicação, para prestar contas, dar publicidade para a população
sobre as ações da gestão, oferecer informações e serviços de utilidade pública
para os cidadãos paulistanos — especificamente aos do bairro atendido por cada
jornal regional”. Sobre a visibilidade à imagem do prefeito nas publicações, a
agência afirmou que “não existem orientações específicas para a promoção da
imagem do prefeito em qualquer veículo ou meio de comunicação”.
A Propeg também foi procurada e afirmou que “não há
qualquer orientação da Prefeitura para promoção da imagem do prefeito, uma vez
que o contrato veda expressamente a promoção pessoal de agentes públicos”. A agência
disse ainda que os jornais de bairros são veículos utilizados de maneira
semelhante aos de grande circulação “para buscar melhor visibilidade e alcance,
incluindo o uso do formato branded content, tipo de conteúdo publicitário
consolidado no Brasil e no mundo, visando eficiência na prestação de contas à
população”.
O Intercept procurou o JBA, Grupo Sul News, Empresa
Jornalística Folha de Guaianases, ZN Mais Notícias, Editora Jornalística
Bairros Unidos e José Osório Filho. Nenhum deles respondeu.
Fonte: The Intercept
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