O cangaço de Matupi
Estradas ilegais partindo do distrito de Santo
Antônio do Matupi, no sul do Amazonas, rasgam terras indígenas e áreas
protegidas. Dois dos locais mais impactados são as Terras Indígenas Tenharim
Marmelos e Jiahui, que foram cortadas pela BR-230 (a rodovia Transamazônica),
ainda na década de 1970. Matupi, ou “180” como é mais conhecido esse trecho da
Transamazônica, fica entre Manicoré e Apuí, duas das cidades que mais desmatam
no Estado. As estradas invadem também a Área de Proteção Ambiental (APA) dos
Campos de Manicoré. Esses ramais facilitam a entrada de madeireiros, caminhões,
tratores, correntões e tudo o que pode ser útil para derrubar a floresta.
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Em 2019, o Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) registrou a destruição de 1.156 hectares de matas na área
pressionada pelas atividades madeireiras em Matupi, distrito de Manicoré. No
primeiro ano da pandemia de Covid-19, houve uma queda no desmatamento (846
hectares). Mas em 2021 voltou a crescer (1.266 hectares) e no ano passado
chegou a 1.569 hectares. O corte raso da floresta detectado pelo sistema de
Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite
(Prodes), do Inpe, é de conhecimento das autoridades locais, como os fiscais do
Ibama, da Polícia Federal e dos procuradores do Ministério Público Estadual.
Depois da devastação em Mato Grosso e Rondônia, o Amazonas, em especial a
região sul do Estado, onde está localizado Santo Antônio do Matupi, se tornou a
nova fronteira a ser espoliada, para desespero dos indígenas.
“Os próprios órgãos que deveriam fazer essa
fiscalização, não fazem. Só chegam quando há conflito”, acrescenta o
coordenador-secretário das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(Coiab), Nilcélio Jiahui.
E foi por causa de um conflito de outra natureza
que as autoridades começaram a ter mais elementos para compreender quem são os
protagonistas da destruição da floresta, com nome e sobrenome. Cleison Palharin
decidiu revelar um esquema de extração ilegal de madeira no distrito de Santo
Antônio do Matupi, que ele mesmo assume ter feito parte, depois de ter sofrido
um atentado em 2021. Ele acusa a ex-patroa Eunice Duarte, engenheira florestal
e advogada, de ser a mandante do crime. Eunice nega tudo e acusa Palharin de
ser assassino e foragido da Justiça (Veja abaixo).
Palharin conta à Amazônia Real que começou a trabalhar com Eunice em 2018,
prestando serviços de extração de madeira. Ele garante que fez diversas
retiradas de madeiras tanto das terras indígenas quanto da área de proteção
ambiental a mando da advogada. Para sua segurança, ele guardou as coordenadas
por georreferenciamento das áreas onde retirou a madeira.
Segundo Palharin, Eunice atua como “braço direito
ou laranja” de um condenado, conhecido como “Chaules”, que cumpre 94 de prisão
no Presídio Federal de Campo Grande. Ele seria um dos maiores desmatadores da
Amazônia. Na denúncia feita ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama, em outubro de 2021, Palharin não só rouba
madeira em áreas indígenas, como estaria comandando “uma milícia rural”. Esse
grupo estaria praticando outros crimes, como “tortura e sequestro”.
Ele afirma que os desentendimentos com Eunice
ocorreram por conta dos valores que deveria receber. Foi aí que descobriu que
sua ex-patroa tramava a morte dele. “Até a polícia chegou a falar comigo para
ter cuidado. Eu achava que era conversa fiada dos outros”, conta.
Em 25 de agosto de 2021, às 17h30, depois de um dia
de trabalho construindo um tanque para piscicultura na comunidade Maravilha,
localizada a 12 quilômetros de Santo Antônio do Matupi, Palharin voltava para
casa de moto e acompanhado de seu filho, à época com 13 anos. “Escutei os
primeiros tiros. Foi quando vi que meu filho bambeou na garupa e eu o segurei
com a mão esquerda e acelerei a moto de morro abaixo”, lembra. Dos sete
disparos que ouviu, um deles atingiu o pescoço e saiu pela boca do jovem.
Palharin levou o filho ao posto de Saúde do
distrito, que não tinha estrutura para atender o caso. O garoto foi levado para
Humaitá, a 180 quilômetros de Santo Antônio do Matupi (daí o nome popular), e,
de lá, foi transferido para um hospital público de Porto Velho, em Rondônia. O
jovem ficou hospitalizado por 20 dias. Depois do atentado, Palharin ainda teve
suas duas casas em Matupi, incendiadas no dia 2 de dezembro de 2021. Foi
quando passou a viver escondido.
Por meio da filha, Beatriz Teixeira Palharin, e do
publicitário Ivan Pedrosa, Cleisson passou a denunciar a exploração predatória
na região para as Polícias Civil, Militar e Federal, o MPE do Amazonas, o
Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério da Justiça. Beatriz usa a
expressão “cangaço de Manicoré” para descrever o cerco contra a sua família. Em
carta enviada ao superintendente do Ibama de Rondônia, por exemplo, envia
inclusive fotos de um caminhão (com identificação de placa) extraindo madeira de
dentro de uma terra indígena.
·
Extração
clandestina
A extração clandestina de madeira de áreas
protegidas é uma das marcas registradas do distrito de Santo Antônio do Matupi.
O modus operandi repete o ciclo destrutivo de muitas outras
regiões amazônicas: primeiro, a floresta no chão, e depois tudo é
convertido em pasto para a criação de gado.
Essa realidade ocorre também por conta da
impunidade. É nessa região que fazendeiros conseguem, na Justiça, interromper a
fiscalização. Alguns deles já receberam multas que totalizam mais de 70 milhões
de reais. Eles não pagam absolutamente nada e continuam cometendo seus crimes
impunemente, como denunciou a Agência Pública.
A origem do 180 (número do quilômetro da BR 230, a
Transamazônica), distrito que teve sua ocupação intensificada por volta de
1995, é resultado do Projeto de Assentamento Matupi, que recebeu pessoas de
Estados vizinhos, como Mato Grosso e Rondônia, e da região Sul do Brasil.
O município de Manicoré (a 332,8 quilômetros de
Manaus) está localizado estrategicamente às margens da rodovia Transamazônica.
A cidade possui 57.405 moradores, conforme dados estimados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), distribuídos em uma área
territorial de 48.315.023 quilômetros quadrados.
Jolemia Chagas, articuladora da Rede
Transdisciplinar da Amazônia (Reta), explica o que acontece quando menos de 50%
da população do município vive na zona rural. “As nossas atividades aqui são da
agricultura familiar, mas as políticas públicas não chegam. Enquanto isso, há
um discurso, não só para Manicoré, mas no interior do Amazonas, que tenta
justificar a entrada de atividades de serrarias, criação de pastos e plantações
de soja”, observa Jolemia, que diz ainda que os próprios governantes alimentam
os ataques na região.
“Os incentivos para usurparem terras públicas
nascem nesses discursos camuflados com falas vazias de ‘melhorar a economia’.
Fala-se de miséria e que precisamos ser desenvolvidos. Se não fossemos
desenvolvidos, não viveríamos no maior sistema conservado, a Amazônia. Somos
adaptados aos ecossistemas existentes aqui e as comunidades tradicionais
conhecem muito bem o que é viver com sustentabilidade”, lembra.
Quando surgiu como assentamento, Matupi tinha
34.942 hectares. Com a expansão fundiária, o local chegou aos limites que tem
hoje, com uma área de 305.150 hectares – oito vezes e meia maior. O Projeto de
Lei 10/2019, que delimitou o território do distrito só foi aprovado em 5 de
junho de 2019.
·
Dinâmica da destruição
A destruição observada e acentuada em Matupi
repete-se em municípios vizinhos como Lábrea e Apuí. Como as respectivas sedes
municipais estão distantes, a gestão dessas áreas se torna mais complicada. O
desmatamento tem se concentrado nas bordas das estradas que interligam essas
localidades. E junto da devastação da floresta surgem atividades ligadas à
agropecuária e à criação de pastagens. O problema é que essas áreas eram
destinadas a abrigar pequenos produtores rurais. Os assentamentos de Santo
Antônio de Matupi e Apuí acabam sendo ocupados de forma desordenada.
Essas dinâmicas são analisadas de forma profunda no
estudo que deu origem ao artigo “Brazil’s Amazonian deforestation: the role of
landholdings in undesignated public lands” (Desmatamento na Amazônia 4
brasileira: O papel dos imóveis rurais 5 em terras públicas não destinadas, em
tradução livre), que é assinado pelos pesquisadores Aurora Miho Yanai, Paulo
Maurício Lima de Alencastro Graça, Leonardo Guimarães Ziccardi, Maria Isabel
Sobral Escada e Philip Martin Fearnside, colunista da Amazônia Real. A situação de Santo
Antonio do Matupi é uma das abordadas nesse estudo. Para os cientistas, as
terras públicas não destinadas acabam tendo um papel crucial na atração de
fazendeiros e agricultores. Primeiro os terrenos são ocupados, por meio de
“grilagem”, e posteriormente são vendidos, legalizados ou não.
Conforme o artigo científico, “os ocupantes de
terras poderiam mudar seu comportamento de desmatamento se os (…) incentivos
para o desmatamento fossem removidos, embora a tendência atual do Brasil seja
na (…) direção oposta – facilitando a legalização de reivindicações ilegais de
terras e relaxando as (…) restrições ambientais”.
·
Efeitos da degradação
Para Nilcélio Jiahui, a degradação ambiental é
preocupante porque acelera as mudanças climáticas que já estão ocorrendo na
região. “Agora chove antes do tempo, a fauna e a flora estão ficando escassas,
os rios estão sendo assoreados, porque derrubam as árvores dentro dos rios e
começa a intoxicar as águas que muitas comunidades tradicionais utilizam para
beber, para lavar a roupa, para fazer comida. Todo esse processo prejudica o
equilíbrio da socioambiental”, explica.
O coordenador-secretário da Coiab relata que os
invasores tentam atrair os povos indígenas, à base de promessas. “Esse
aliciamento acontece lá e é feito por empresários, gente que quer entrar nas
terras indígenas. Poucos indígenas tem aceitado algum tipo de usurpação. Mas
isso é uma coisa preocupante, porque estão aliciando esses indígenas para que
eles contribuam para o desmatamento”, denuncia.
“A expansão é vir para o Amazonas, então com isso,
grandes empresários que só trabalham de forma ilegal com a exploração da
madeira, estão vindo para esta região com tudo. Tirando essa madeira ilegal e o
governo [do ex-presidente Jair Bolsonaro] com essa fala de que o
desenvolvimento tem que ser feito de qualquer preço, através de exploração mineral,
exploração madeireira sem manejo, enfim, ele ajudou a fortalecer esse
processo”, lamenta.
A reportagem procurou ouvir o povo Tenharim sobre a
devastação em seu território, mas as lideranças procuradas por telefone não
atenderam as ligações.
·
O que diz Eunice
Eunice Duarte atendeu à reportagem da Amazônia Real e não apenas negou
as acusações como disse que Cleison Palharin só acabou sendo contratado por
ela, porque apresentou documentos falsificados. Ele se apresentava como
Welinton Gomes da Silva. A engenheira é proprietária da Madeireira Gedai,
localizada em Santo Antônio do Matupi, e da Rondoflora, dedicada a serviços de
engenharia florestal e serviços administrativos, em Porto Velho.
“Ele é um foragido”, dispara Eunice, negando fazer
parte de um esquema de extração de madeira de terras indígenas junto a
Palharin. “Isso é totalmente mentiroso e fraudulento.”
“Esse rapaz me pediu emprego para trabalhar na
minha empresa. Ele trabalhou em plano de manejo e eu tenho como provar onde que
ele foi, entendeu? Inclusive depois, o projeto foi bloqueado, ele fica
fraudando isso aí. É um psicopata. É assaltante de banco, ele saiu daqui (Santo
Antônio de Matupi) foragido porque matou uma pessoa. Ele é foragido de
Ji-Paraná”, afirma.
A engenheira aponta o envolvimento de Palharin
na “Chacina de Colniza”, ocorrida em 19 de abril de
2017, quando nove pessoas foram assassinadas no Distrito de Taquaruçu do Norte,
em Colniza (a 1.065 quilômetros de Cuiabá), no Mato Grosso. Em 2023, a Justiça
condenou, conforme denúncia do Ministério Público Estadual (MPE), o madeireiro
Valdelir João de Souza, apontado como mandante do crime; o ex-sargento da
Polícia Militar de Rondônia Moisés Ferreira de Souza; além de Pedro Ramos
Nogueira e seu sobrinho Paulo Neves Nogueira. Palharin não foi citado na denúncia, mas seu
nome aparece como um dos réus dos assassinatos em 2021.
Ela afirma também que Palharin teria feito parte do
grupo criminoso que assaltou a agência do Banco do Brasil, em Machadinho do
Oeste (a 297,3 quilômetros de Porto Velho), em 2013. A Polícia Civil de
Porto Velho confirmou
a participação de Palharin no crime.
Eunice conta que demitiu Palharin, após ele ter
apontado uma arma a outro funcionário. Segundo ela, isso o enfureceu. “Acertei
o valor (indenização trabalhista), paguei até em cheque, e ele ficou mais um
ano por aqui na região perambulando, até que ele matou um rapaz, aqui, por
causa de uma briga de rua”, conta.
Eunice afirma que Palharin inventa histórias para
prejudicá-la, e até já a ameaçou de morte. “O maior problema foi eu ter
denunciado ele, porque ninguém nunca denunciou, ficou impune porque ele mata
todo mundo”, diz.
·
Autoridades em silêncio
A reportagem da Amazônia Real procurou o MPE do Amazonas para saber se houve
investigação sobre as denúncias feitas por Beatriz Palharin. O órgão não
respondeu. A Polícia Civil do Amazonas também foi procurada pela reportagem
para saber sobre a investigação do atentado em Santo Antônio do Matupi,
distrito de Manicoré. Até 6 de setembro, a Polícia Civil retornou dizendo que
não havia obtido retorno da delegacia do município.
A Polícia Militar do Amazonas também foi procurada,
assim como a Polícia Federal de Rondônia, e o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de Rondônia, onde a filha
de Palharin fez denúncias sobre a retirada de madeira ilegal. Nenhum dos órgãos
retornou até a publicação da reportagem. A Amazônia Real consultou ainda o Ministério da Justiça, mas
não obteve retorno. O Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, onde o caso
foi denunciado, lembra que a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH)
apenas presta informações ao denunciante, no caso a família de Palharin.
Fonte: Amazônia Real
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