MARCO TEMPORAL: A batalha não acabou
Por nove votos a dois, o Supremo Tribunal Federal
(STF) considerou, quinta-feira última, inconstitucional a tese do marco legal,
construída pelos adversários dos povos indígenas. A tese visava o
reconhecimento dos territórios originais que estavam ocupados até 5 de outubro
de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã. O marco legal foi uma
pretensão descabida, uma vez que a presença indígena no Brasil antecede à
chegada dos colonizadores, no início do século 16.
A decisão do STF não foi uma vitória exclusiva das
populações originárias. A maior vencedora foi a sociedade brasileira, ainda que
nela existam adversários ferrenhos que não reconhecem os nativos como seres
humanos. A população indígena tem enorme importância para o Brasil. Como
guardiã das florestas, ela tem relevante papel na posição privilegiada do país
em relação a outras nações. O patrimônio natural brasileiro guarda espécies
endógenas únicas no planeta abrigadas tanto na Amazônia quanto no cerrado, o
segundo maior bioma do país.
Hoje, a maior floresta tropical brasileira é
indispensável diante do agravamento das mudanças climáticas. Os fenômenos
extremos, ocorridos no Brasil e em vários países, reafirmam a necessidade da
sua preservação e recuperação da cobertura vegetal destruída pela ação humana.
As catástrofes naturais impõem uma revisão do relacionamento humano com a
natureza, dentro e fora do Brasil.
No nosso país, há quem enxergue os povos indígenas
como primitivos. É um grande equívoco. Eles têm tecnologias próprias, grandes
saberes e intimidade singular com os biomas em todas as suas peculiaridades e
diversidade. Não é por acaso que sobrevivem e crescem em número, apesar da
violência que sofrem desde o período colonial. Souberam resistir à pressão dos
colonizadores e, mais do que isso, conseguiram preservar o patrimônio natural.
Embora distantes e invisíveis aos poderes do
Estado, em alguns momentos da história nacional, a força e a habilidade
indígena foram demandadas no período da monarquia. No embate entre Brasil e
Paraguai, o povo Kadiwéu, que vive no Mato Grosso do Sul, foi chamado a
defender o território nacional pelo imperador dom Pedro II. O povo kadiwéu,
também conhecido como “cavaleiro”, participou da guerra entre Brasil e Paraguai
(1864-1870).
No conflito, os kadiwéu exibiram toda a sua
bravura, colaborando para a vitória brasileira. Em retribuição, o imperador
doou a eles as terras que ocupam até hoje, em Mato Grosso do Sul, promovendo a
primeira demarcação de um território indígena no Brasil. Mas não estendeu igual
benefício aos outros povos originários existentes à época, Em outros momentos
da história nacional, diferentes grupos defenderam também a decisão do
imperador de proclamar a independência do Brasil.
Exceto a Constituição de 1891, todas as outras
reconheceram o direito dos povos indígenas à posse e ao usufruto das riquezas
dos territórios que ocupam, inclusive a Lei Maior escrita durante o golpe
militar de 1964. A Carta Magna Cidadã de 1988 foi a mais abrangente na garantia
dos direitos dos povos nativos.
A comemorada decisão do STF pode ser entendida como
uma trégua imposta aos inimigos dos povos indígenas. Os grupos conservadores e
de extrema direta não se darão como derrotados. A qualquer tempo, por meio de
outros artifícios, voltarão ao ataque. Não desistirão da ideia de dizimar os
principais guardiões das florestas.
Indenizações
por terras indígenas vão virar mega confusão
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que deu
aval à demarcação de terras por indígenas, independentemente de marco temporal,
pode gerar uma série de outras ações na Justiça.
Especialistas preveem que a indenização a ser paga
aos produtores rurais que compraram tais terras de boa-fé poderá gerar novos
processos judiciais.
A tese do marco temporal determinava que a
comunidade indígena só teria direito às terras que ocupavam ou já disputavam em
5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal.
Na quinta-feira (21), em julgamento considerado
histórico, o STF decidiu afastar a aplicação dessa limitação no tempo, por 9
votos a 2.
Embora o mérito tenha sido definido, ficou em
aberto como será feito o cálculo, qual o prazo para pagar e por qual meio deve
ser requerida a indenização aos fazendeiros.
O cálculo pode ser feito com base no valor da terra
nua ou só das benfeitorias. O pagamento pode ser exigido previamente, antes da
retomada da posse, ou apenas depois.
O pedido de indenização pode ser feito na própria
ação de demarcação de terra ou por ação autônoma.
Desdobramentos devem gerar ainda vários outros
processos” — Daniel Cavalcante Os ministros da Corte devem analisar a questão
na semana que vem, mas já anteciparam algumas propostas na quinta-feira.
O voto mais preocupante para os povos originários é
o do ministro Alexandre de Moraes.
Ele propôs o pagamento prévio da indenização pela
União e sobre o valor total do imóvel, não só em relação às benfeitorias
realizadas, no momento da desocupação.
Já o ministro Cristiano Zanin, em agosto, havia
proposto que a responsabilidade civil seria também dos Estados, mas por meio de
ação autônoma, paralela à ação sobre a demarcação.
Para Daniel Cavalcante, especialista em direito
público atuante em grandes ações sociambientais, “o marco temporal foi definido
no seu mérito, mas desdobramentos disso devem gerar ainda vários outros
processos”.
Segundo ele, na prática, a comunidade indígena teme
que condicionar a quitação antecipada da indenização aos produtores rurais,
para que os indígenas tenham direito à terra, e estabelecer o cálculo dessa
indenização com base no valor da terra nua, além das benfeitorias, dificulte
novas demarcações.
Para a comunidade indígena, segundo Cavalcante,
deve ser aplicado o artigo 231 da Constituição Federal.
“Terras tradicionalmente ocupadas são das
comunidades indígenas, sem condicionamento à previa indenização”, diz.
O advogado também defende que há ampla e recente
jurisprudência no sentido de que o cálculo da indenização deve ser feito apenas
sobre as benfeitorias, tanto do Superior Tribunal de Justiça (AREsp nº
1941095/DF) quanto do STF (Petição 3388/RR).
Mesmo a avaliação de benfeitoria pode gerar novas
discussões administrativas ou judiciais.
“A Funai, dentro do seu poder de polícia, junto com
o Incra, poderia tentar fazer uma avaliação oficial e, se os ruralistas
trouxerem outro valor, caberá ao Judiciário definir”, diz Cavalcante.
Pela regra atual, do artigo 231, parágrafo 6º, da
Constituição, explica Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto
Socioambiental (ISA), o que se indeniza é a benfeitoria realizada de boa-fé –
considerada aquela feita até a edição da portaria declaratória do Ministério da
Justiça determinando a demarcação.
Segundo especialistas, essa indenização pode ser
paga em dinheiro ou por títulos da dívida agrária.
“O STF terá que definir se há direito à indenização
e quais as balizas”, diz a advogada do ISA. Mas ela pondera que não é qualquer
ocupante de terra indígena que deve ter esse direito.
Nas situações em que os indígenas não estavam na
terra em 5 de outubro de 1988, deve ser avaliado, segundo Juliana, se não foram
expulsos à força e se o particular tem título emitido pelo governo.
Nesse caso, explica, será necessário verificar se a
matrícula originária foi emitida pelo Estado ou pela União.
“A indenização pelo valor da terra nua não é para
qualquer pessoa que tenha título. Há áreas sobrepostas em que só há posse”,
frisa.
Quanto ao possível estabelecimento de pagamento
prévio da indenização, Juliana alerta que “a demora [na desocupação] aumenta o
conflito e ameaça o direito dos povos indígenas, que têm o direito originário”.
Segundo Ana Alfinito, pesquisadora da FGV Direito
SP, “se prevalecer [as condições propostas por Moraes], nós podemos esquecer a
demarcação de terras indígenas no Brasil”, diz.
“Seriam os mesmos efeitos do marco temporal’,
acrescenta. Já a possibilidade de as ações relativas à indenização poderem
correr em paralelo às de demarcação é destacada de forma positiva por Ana.
Se esse entendimento for confirmado pelo STF,
contudo, segundo ela, poderá provocar uma enxurrada de ações judiciais de
produtores contra Estados e a União. Cada caso teria que ser analisado
individualmente.
“A obrigação de reparar se origina de um ato
ilícito do poder público que teria atraído particulares de boa-fé para a
terra”, diz a pesquisadora. “Não tem a ver com a demarcação, é um processo
diferente”.
Marco
temporal cria impasse entre Congresso e STF
Tema que está em análise no Congresso Nacional e no
Supremo Tribunal Federal (STF), o chamado marco temporal para reconhecimento de
terras indígenas criou um impasse. Nesta quinta-feira (21), o tribunal alcançou
maioria de votos para a tese de que o marco temporal é inconstitucional. O
Senado, em sentido contrário ao do STF, analisa o projeto de lei que fixa o
marco temporal em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição
Federal.
Para o líder do governo no Senado, o senador
Randolfe Rodrigues (Rede-AP), há grande pressão política e social em relação à
questão. Ele afirmou que o governo vai buscar um acordo, com possíveis mudanças
no texto que foi aprovado pela Câmara.
— Não me parece de bom tom nós confrontarmos uma
declaração de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal com um projeto
de lei que flagrantemente será inconstitucional — opinou Randolfe.
O tema vem repercutindo no Plenário do Senado com
apoios e críticas. Na sessão deliberativa da quarta-feira (20), os senadores
Plínio Valério (PSDB-AM), Zequinha Marinho (Podemos-PA), Vanderlan Cardoso
(PSD-GO), Dr. Hiran (PP-RR), Carlos Viana (Podemos-MG), Jorge Seif (PL-SC),
Margareth Buzetti (PSD-MT) e Jayme Campos (União-MT) pediram a aprovação do texto
da Câmara.
Plínio Valério afirmou que o STF “ está legislando
sobre o marco temporal”.
—A nossa Constituição acha que foi 5 de outubro de
1988 e a Constituição é clara quando ela considera terras indígenas aquelas
ocupadas até aquele momento da promulgação. São terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios e por eles habitadas em caráter permanente — disse
Plínio.
Zequinha Marinho apoiou a aprovação do projeto do
marco temporal como garantia de segurança jurídica para todos os produtores
rurais. Sem um prazo, avaliou ele, qualquer área do território nacional poderá
ser requerida por povos indígenas. Ele disse que 14,1% do território brasileiro
já está demarcado como terra indígena.
— O PL 2.903 visa resolver os conflitos hoje
existentes através da previsibilidade jurídica garantida pelos critérios
objetivos, que criam mecanismo de pacificação com reconhecimento da propriedade
rural, alinhado aos 119,8 milhões de hectares de terras indígenas, o que
demonstra que a consolidação do marco temporal não prejudicará os usos e
costumes indígenas, dado que já existe um amplo e espaçoso território já
demarcado — afirmou Zequinha.
Em contraponto, os senadores Humberto Costa (PT-PE)
e Leila Barros (PDT-DF) defenderam o respeito à decisão do STF. Humberto Costa
avaliou o projeto como “cheio de vícios de constitucionalidade” e disse que, na
prática, vai inviabilizar a demarcação de novos territórios indígenas.
— É uma matéria que agride a Constituição Federal e
o seu espírito cidadão; é preconceituosa, porque é dirigida sob medida contra
os povos indígenas; é um erro histórico, no momento em que falamos da Amazônia
e combate à desigualdade — avaliou Humberto Costa.
Leila Barros pediu que o projeto seja analisado
também pela Comissão de Meio Ambiente (CMA), presidida por ela.
Randolfe acrescentou que governo e oposição
continuam dialogando e negociando.
— Uma mediação, um acordo é algo que é feito em que
ambos os lados abrem mão de algo, né? Recuam em alguns temas. É isso que nós
vamos procurar construir para a semana que vem — afirmou o líder do governo
Lula.
Pelas redes sociais, os senadores Beto Faro (PT-PA)
e Fernando Contarato (PT-ES) comemoraram a decisão do STF.
• O
projeto
O PL 2.903/2023 foi aprovado na Comissão de
Agricultura e Reforma Agrária (CRA) no mês passado e agora espera votação na
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Em seguida, caberá ao Plenário votar
a decisão final. O relator na CCJ é o senador Marcos Rogério (PL-RO).
A proposta, que ficou mais conhecida como PL
490/2007, foi aprovada pela Câmara dos Deputados no final de maio, após
tramitar por mais de 15 anos. Na CRA, o projeto recebeu voto favorável da
relatora, senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS).
Ela disse estar “convicta de que a data da
promulgação da Constituição federal, de 5 de outubro de 1988, representa
parâmetro apropriado de marco temporal para verificação da existência da
ocupação da terra pela comunidade indígena”.
De acordo com o texto, para que uma área seja
considerada “terra indígena tradicionalmente ocupada”, será preciso comprovar
que, na data de promulgação da Constituição Federal, ela vinha sendo habitada
pela comunidade indígena em caráter permanente e utilizada para atividades
produtivas. Também será preciso demonstrar que essas terras eram necessárias
para a reprodução física e cultural dos indígenas e para a preservação dos
recursos ambientais necessários ao seu bem-estar.
Na audiência pública que precedeu a votação da
proposta na CRA, lideranças indígenas condenaram o projeto, afirmando que os
riscos vão além da demarcação de terras. Representantes do governo também se
posicionaram contra a aprovação, sustentando que o texto avançou sem consulta
aos povos indígenas e pode causar mais insegurança jurídica.
Na Câmara, deputados contrários ao marco temporal
afirmaram que a aprovação do projeto seria uma ameaça aos direitos dos povos
indígenas e traria prejuízos à preservação ambiental. Indígenas chegaram a
chamar a decisão de genocídio.
O STF também analisa o assunto, para definir se a
promulgação da Constituição pode servir como marco temporal para essa
finalidade. Nesta quinta-feira (21), a votação alcançou maioria de 6 votos
contra o marco temporal.
Fonte: Correio Braziliense/Valor Econômico/Agencia
Senado
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