Líbia: a devastação do Ocidente e a do furacão
Durante os meses da primavera árabe, pouca coisa
era mais incerta do que o futuro dos refugiados no campo que a ONU armou na
cidade tunisiana de Choucha, na região de Ras Jédir, fronteira com a Líbia, em
2011. O país vizinho estava em guerra civil, na mira da OTAN, visado por sua
maior clientela de petróleo, em especial a Itália, França, Reino Unido e
Estados Unidos, decidida a livrar-se de Muammar Kaddafi com mais uma
intervenção da ordem ocidental na África. O momento era propício, dadas as
revoltas populares e impopularidade de um governo que as reprimia com violência.
Mas a Líbia atacada nunca mais se levantou para proteger-se das tragédias que
viriam.
A crise dos refugiados foi testemunhada de perto
por missões internacionais, incluída uma do Fórum Social Mundial que percorreu
caminhos da Primavera Árabe na Tunísia até o campo de Choucha, onde chegavam as
levas atormentadas vindas da Líbia.
Refugiados de outros países africanos em conflito,
que antes se instalaram no país costeiro, agora voltavam a fugir. Juntamente
com milhares de líbios deslocados pela guerra, eles enchiam as barracas
humanitárias. Milhares seguiam direto para Tunis, para de lá arriscar -se em
barcos precários pelo Mediterrâneo e tentar alcançar o pedaço de terra da
Europa mais próximo: a ilha de Lampedusa.
As cenas na ilha italiana eram semelhantes às que
se repetem hoje após a tempestade Daniel varrer as cidades costeiras da Líbia:
um número maior de imigrantes do que moradores, praticamente o triplo, chegando
à ilha exaustos, doentes e famélicos, pressionando a Europa e o mundo.
Empurrá-los de volta à África, como no acordo feito entre o governo de extrema
direita da Itália e o chefe do autogolpe que comanda a Tunísia,
pode significar entregá-los a um despejo no deserto.
A Itália que pede ajuda da ONU para livrar-se dos
refugiados é um país com fortes ligações com a Líbia, porque foi seu
antigo colonizador, quando França e Inglaterra já dividiam entre si a maior
parte do Oriente Médio, ao fim do Império Otomano. Chegando com atraso ao butim
colonial, couberam à Itália os territórios de Tripolitania, Cyrenaica e
Fezzan – três estados pobres que, ao final da II Guerra Mundial, foram
levados a se juntar por decisão do Conselho de Segurança da ONU.
Ou seja, a Líbia é um estado jovem, constituído em 1949. Tornou-se independente
da Itália em 1952. Apenas um ano depois, descobriu que não era tão pobre
assim.
Em 1953, quando o país procurava – e
encontrou – importantes reservas de petróleo, fez também um segundo achado: o
Sistema Aquífero de Arenito Núbio, uma reserva profunda sob o deserto do Saara,
formada antes da era do gelo, com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados de
extensão e 150.000 km cúbicos de água fóssil, chegando à área de fronteira da
Líbia com o Chade, o Sudão e o Egito.
30 anos depois disso, financiada pelo petróleo, a
Líbia causou espanto aos mais ousados entusiastas de megaprojetos, ao dar
início a um rio artificial que percorreria quatro mil quilômetros
pelo deserto , com mais de mil e trezentos poços voltados a abastecer as
cidades costeiras e a irrigar um dos países mais secos do mundo. O deserto
ocupa quase todo território líbio e sua faixa de litoral não recebe normalmente
mais do que 100 mm de chuva por ano, e depende de dessalinização.
Conhecida como o “Grande Projeto do Rio Feito pelo Homem”, a obra monumental
começou em 1984, levando água do deserto a Bengazi em 1991 e alcançando Trípoli
em 1996.
Cinco anos depois, o sistema hídrico que
atende as principais cidades, formado pelas águas do grande rio e pelas
represas da costa, começou a se deteriorar em meio às disputas pelo país
petrolífero e à falta de atenção aos reclamos populares. A OTAN bombardeou
inclusive a fábrica de Brega, uma das produtoras das tubagens para o Grande Rio
Artificial. em meio às disputas pelo país petrolífero. A OPEP estimava que a
Líbia era o quarto maior produtor de petróleo da África após a Nigéria, Argélia
e Angola, com uma produção diária de 1,8 milhões de barris e reservas estimadas
em 46,4 bilhões de barris. Mas a população estava exausta das quatro décadas do
governo Kaddafi. Sem acesso à riqueza concentrada e com 30% de desemprego,
queria mudanças.
Quando a Primavera Árabe explodiu no Norte da
África e chegou ao país, encontrou forte reação do governo. Com o agravamento
da crise, o Conselho de Segurança da ONU e a OTAN decidiram intervir
militarmente pela derrubada do governo. Sob embargos econômicos, as exportações
de petróleo naquele ano baixaram a US$ 16,34 bilhões, contra US$ 49,96 bilhões
em 2010, uma redução de 67%. O cerco à Líbia não cessou até a captura e morte
de Kaddafi e a destruição de seu exército, com a instalação de um conselho
provisório pró-ocidente. Enquanto Egito e Tunísia experimentavam
temporariamente a democracia, derrubando ditadores pela força popular, a Líbia
desmoronava em guerra civil, confronto entre milícias e assédio
internacional.
A partir de 2014, o país se viu dividido entre dois
governos, um reconhecido pela ONU, em Trípoli, outro do marechal rebelde
Khalifa Haftar, no leste, em confrontos jamais resolvidos. A fragmentação
também deu entrada, naquele ano, a militantes do Daesh que tomaram a cidade de
Derna e Sirte eliminando pessoas e grupos inteiros considerados por eles
“infiéis”. Em fuga, somente em 2016, 200 mil pessoas chegaram à Europa – que
investia milhões para tentar devolvê-los à África.
As mortes no Mediterrâneo pareciam a síntese das
relações colonias entre Europa e África. E a Líbia uma vitrine dos seus
estragos.
A deterioração da segurança hídrica continuou, pelo
abandono ou pela guerra. Em julho de 2019, 101 dos 479 poços no
sistema de gasodutos ocidental tinham sido desmantelados, segundo dados
colhidos à época pela Reuters. Em 10 de Abril de 2020, o fluxo de água para
Trípoli e cidades vizinhas foi cortado por um grupo armado. E quase todas
as estações de dessalinização estavam quebradas.
Em meio ao caos, as barragens construídas em 1970
na cidade de Derna também envelheceram sem manutenção – a última feita em
2002. Em 2022 o hidrólogo Abdelwanees A. R. Ashoor, da Universidade Omar
Al-Mukhtar da Líbia, alertou que, pelas condições das barragens, uma
grande inundação, seria “catastrófica para a população do Wadi e da
cidade”. O aquecimento do Mediterrâneo tornava provável que a tragédia viria.
No dia 10 de setembro, a tempestade Daniel
despejou, como um tsunami, enormes quantidades de água sobre a costa de Derna,
mais do que toda chuva esperada em um ano, rompendo a primeira barragem, cujo
volume de água forçou e rompeu a segunda, arrasando cidades pelo caminho. Os
danos ainda estão sendo calculados, assim como as milhares de mortes, feridos e
desaparecidos. E ainda há o receio de epidemias e envenenamentos sem
precedentes, dada a quantidade de corpos espalhados pelas ruas e a contaminação
das águas. Mas a conjunção de fatores que estão afundando a Líbia em lama,
escombros, esgoto e cheiro de morte aponta para um mundo insustentável e
xenofóbico, que não consegue lidar com o grau de destruição associado às suas
guerras por energia, nem lidar com as crises que causa, climáticas e
humanitárias.
“O fato de o Daniel ter se transformado em um
‘medicane’ (…) é provavelmente o resultado de temperaturas mais altas na
superfície do mar e, portanto, de mudanças climáticas causadas pelo homem”,
disse o cientista climático Karsten Haustein, da Universidade de Leipzig, na
Alemanha, citado pelo The Guardian.
“Medicanes” são o tipo de furacões que têm ocorrido
no Mediterrâneo. Eles foram registrados próximos à Grecia entre 2016, 2018 e
2020, na costa argelina em 2019, perto da Scicília em 2020. A Bulgária, a
Grécia e a Turquia também foram atingidas pelo Daniel antes que chegasse à
Líbia.
Nenhum destes lugares sofreu tanto quanto o país já
devastado em sua capacidade de defender-se. E de novo, levas de sobreviventes
se arriscarão a morrer no Mediterrâneo tentando chegar a uma Europa
despreparada e hostil.
Ø A catastrófica inundação da Líbia foi potencializada pelo legado da
guerra dos EUA e Otan no país. Por Jasper Saah
A chuva intensa e os ventos da
tempestade mediterrânea Daniel inundaram o leste da Líbia na última semana, afetando de forma excepcional a cidade costeira de Derna, situada em
uma área baixa. O número de mortos nessa pequena cidade de 90.000 habitantes já ultrapassou 10.000, com muitos outros
feridos ou desaparecidos. Quarteirões e famílias inteiras foram arrastados para as águas do
Mediterrâneo.
Enquanto o mundo chora essa tragédia, é fundamental
lembrar que não se trata apenas de um desastre natural. A culpa pela escala
inacreditável de morte e destruição é do Pentágono e de seus aliados da Otan,
que destruíram o governo central do país em uma guerra
em 2011, mergulhando a sociedade em um estado de caos que
continua até hoje.
A tempestade, chamada de "medicane" - um
ciclone tropical mediterrâneo - trouxe ventos de mais de 120 km por hora, sete
polegadas de chuva e ondas de até seis metros de altura após o rompimento de
duas represas nas terras altas ao sul de Derna. A tempestade também causou
grandes inundações na Grécia, Turquia e Bulgária, matando dezenas de pessoas,
antes de aumentar sua intensidade e atingir a Líbia. Tempestades como essa são
cada vez mais comuns no Mediterrâneo à medida que a temperatura média da água
aumenta, e estão relacionadas a outros fenômenos climáticos extremos, como as
ondas de calor brutais e as secas que se tornaram comuns no sul da Europa nos
últimos anos.
A principal causa dos danos e das vítimas foi uma
falha nas duas represas ao sul da cidade. Construídas em meados da década de
1970 pela empresa de construção iugoslava Hidrotehnika-Hidroenergetika, elas
têm uma capacidade coletiva de cerca de 20 milhões de metros cúbicos de água.
As represas forneceram irrigação para as áreas vizinhas e abasteceram a cidade
com água por décadas, uma parte importante da infraestrutura para uma região
como essa.
No entanto, quando as represas falharam, mais de 30
milhões de metros cúbicos de água foram liberados na cidade, destruindo quase
um quarto de todos os edifícios. As represas não recebiam manutenção de grande
porte desde o início dos anos 2000 e têm sido cada vez mais negligenciadas
desde 2011. Além disso, o agravamento da crise climática exigirá a construção e
a manutenção de uma infraestrutura de controle de enchentes muito mais robusta.
Essas cenas horríveis estão sendo cobertas pela
mídia ocidental com um frio distanciamento. Por exemplo, o Washington
Post faz a pergunta: "por que as enchentes na Líbia foram tão
mortais?" e fornece respostas repletas de diagramas e fotografias aéreas
da cidade inundada, enfatizando "chuvas", "geografia" e
"infraestrutura". A Organização Meteorológica Mundial, sediada na
ONU, declarou que a maioria das vítimas "poderia ter sido evitada" se
a Líbia tivesse "um serviço meteorológico operando normalmente".
Mas o que "não é normal" na Líbia? Esses
mesmos artigos apontam para "uma década de turbulência",
"impasses políticos" e "divisões", além de alusões à
"difícil situação de segurança". É verdade que a mudança climática
está na raiz dessa catástrofe. Também é verdade que as instituições políticas -
ou, mais precisamente, a falta delas - exacerbaram de forma significativa essa
catástrofe mortal, mas a mídia ocidental está obscurecendo o contexto e
anulando a responsabilidade das potências da Otan pela situação na Líbia.
·
Consequências da guerra
da Otan chegam até os dias de hoje
Essa é a imagem da África em geral e da Líbia em
particular que a mídia ocidental cultiva - condenada à tragédia pela geografia
e pela má sorte, atolada em violência insolúvel e instabilidade política,
incapaz de resolver seus próprios problemas ou operar "normalmente".
Na verdade, antes do golpe de Estado de 2011 apoiado pela Otan que derrubou o
governo líbio e o líder de longa data Muammar Gaddafi, os líbios desfrutavam
dos mais altos padrões de vida no continente africano e compartilhavam os
lucros dos recursos naturais do país. Os lucros do ouro e do petróleo foram
aplicados em projetos de desenvolvimento, incluindo infraestrutura e programas
sociais.
Desde 2011, e com o colapso total do Estado líbio,
o país tem sido dividido entre vários atores. Em 2014, três anos após o golpe,
Derna foi tomada por militantes que se declararam leais ao ISIS. A cidade foi
palco de combates brutais entre 2015 e 2018, quando os militantes alinhados ao
ISIS foram derrotados pelas forças do general Khalifa Haftar.
Haftar lidera uma milícia chamada Exército Nacional
da Líbia e atualmente controla grandes áreas do país. Ele está baseado na
cidade de Tobruk, no leste do país, e é apoiado pela Rússia e por muitos
Estados árabes da região. As Nações Unidas reconhecem o rival governo de Acordo
Nacional, baseado em Trípoli. Haftar, que foi capturado e mantido como
prisioneiro de guerra durante o conflito entre Chade e Líbia na década de 1980,
era na época um ativo da CIA que o governo Reagan esperava usar para fomentar
um golpe contra Gaddafi. Ao ser libertado, Haftar passou a década de 1990 e o
início dos anos 2000 morando em Langley, Virgínia, onde também fica a sede da
CIA. Mas após a guerra de 2011, ele caiu em desgraça com seus apoiadores
ocidentais.
Os dois governos rivais estão informando números
diferentes de desaparecidos e mortos nas enchentes, coordenando com diferentes
organizações internacionais de ajuda humanitária e mantendo sistemas separados
de comunicação de massa e resposta rápida. Esse também foi um dos mais
importantes fatores a contribuir para a falta de aviso prévio aos residentes.
A destruição do Estado líbio em 2011 teve
repercussões dramáticas em todo o mundo - um fator fundamental para a
desestabilização e a proliferação de armas no Sahel, mais ao sul. Isso, por sua
vez, está intimamente ligado à chamada "crise migratória", que moldou
e transformou a política europeia dramaticamente para a direita na última
década.
Os meios de comunicação ocidentais cobrem
superficialmente as inundações em Derna e, ao mesmo tempo, absolvem o papel da
Otan e do imperialismo dos EUA no contexto político, histórico e econômico
dessa catástrofe e de tantas outras que ocorrem em todo o mundo.
Fonte: Por Rita Freire, no Monitor do Oriente Médio/Opera
Mundi
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