quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Líbia: a devastação do Ocidente e a do furacão

Durante os meses da primavera árabe, pouca coisa era mais incerta do que o futuro dos refugiados no campo que a ONU armou na cidade tunisiana de Choucha, na região de Ras Jédir, fronteira com a Líbia, em 2011. O país vizinho estava em guerra civil, na mira da OTAN, visado por sua maior clientela de petróleo, em especial a Itália, França, Reino Unido e Estados Unidos, decidida a livrar-se de Muammar Kaddafi com mais uma intervenção da ordem ocidental na África. O momento era propício, dadas as revoltas populares e impopularidade de um governo que as reprimia com violência. Mas a Líbia atacada nunca mais se levantou para proteger-se das tragédias que viriam.

A crise dos refugiados foi testemunhada de perto por missões internacionais, incluída uma do Fórum Social Mundial que percorreu caminhos da Primavera Árabe na Tunísia até o campo de Choucha, onde chegavam as levas atormentadas vindas da Líbia.

Refugiados de outros países africanos em conflito, que antes se instalaram no país costeiro, agora voltavam a fugir. Juntamente com milhares de líbios deslocados pela guerra, eles enchiam as barracas humanitárias. Milhares seguiam direto para Tunis, para de lá arriscar -se em barcos precários pelo Mediterrâneo e tentar alcançar o pedaço de terra da Europa mais próximo: a ilha de Lampedusa.

As cenas na ilha italiana eram semelhantes às que se repetem hoje após a tempestade Daniel varrer as cidades costeiras da Líbia: um número maior de imigrantes do que moradores, praticamente o triplo, chegando à ilha exaustos, doentes e famélicos, pressionando a Europa e o mundo.  Empurrá-los de volta à África, como no acordo feito entre o governo de extrema direita da  Itália e o chefe do autogolpe que comanda a Tunísia,  pode significar entregá-los a um despejo no deserto.

A Itália que pede ajuda da ONU para livrar-se dos refugiados  é um país com fortes ligações com a Líbia, porque foi seu antigo colonizador, quando França e Inglaterra já dividiam entre si a maior parte do Oriente Médio, ao fim do Império Otomano. Chegando com atraso ao butim colonial, couberam à Itália os territórios de  Tripolitania, Cyrenaica e Fezzan – três estados pobres que, ao final da II Guerra Mundial,  foram levados a se juntar por decisão do   Conselho de Segurança da ONU.  Ou seja, a Líbia é um estado jovem, constituído em 1949. Tornou-se independente da Itália em 1952.  Apenas um ano depois, descobriu que não era tão pobre assim.

Em 1953, quando  o país procurava – e encontrou – importantes reservas de petróleo, fez também um segundo achado: o Sistema Aquífero de Arenito Núbio, uma reserva profunda sob o deserto do Saara, formada antes da era do gelo, com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados de extensão e 150.000 km cúbicos de água fóssil, chegando à área de fronteira da Líbia com o  Chade, o Sudão e o Egito.

30 anos depois disso, financiada pelo petróleo, a Líbia causou espanto aos mais ousados entusiastas de megaprojetos, ao  dar início a um  rio artificial que percorreria  quatro mil quilômetros pelo  deserto , com mais de mil e trezentos poços voltados a abastecer as cidades costeiras e a irrigar um dos países mais secos do mundo. O deserto ocupa quase todo território líbio e sua faixa de litoral não recebe normalmente mais do que 100 mm de chuva por ano, e depende de dessalinização.  Conhecida como o “Grande Projeto do Rio Feito pelo Homem”, a obra monumental começou em 1984, levando água do deserto a Bengazi em 1991 e alcançando Trípoli em 1996.

Cinco anos depois, o sistema hídrico  que atende as principais cidades, formado pelas águas do grande rio e pelas represas da costa, começou a se deteriorar em meio às disputas pelo país petrolífero e à falta de atenção aos reclamos populares. A OTAN bombardeou inclusive a fábrica de Brega, uma das produtoras das tubagens para o Grande Rio Artificial. em meio às disputas pelo país petrolífero. A OPEP estimava que a Líbia era o quarto maior produtor de petróleo da África após a Nigéria, Argélia e Angola, com uma produção diária de 1,8 milhões de barris e reservas estimadas em 46,4 bilhões de barris. Mas a população estava exausta das quatro décadas do governo Kaddafi. Sem acesso à riqueza concentrada e com 30% de desemprego, queria mudanças.

Quando a Primavera Árabe explodiu no Norte da África e chegou ao país, encontrou forte reação do governo. Com o agravamento da crise,  o Conselho de Segurança da ONU e a OTAN decidiram intervir militarmente pela derrubada do governo. Sob embargos econômicos, as exportações de petróleo naquele ano baixaram a US$ 16,34 bilhões, contra US$ 49,96 bilhões em 2010, uma redução de 67%. O cerco à Líbia não cessou até a captura e morte de Kaddafi e a destruição de seu exército, com a instalação de um conselho provisório pró-ocidente.  Enquanto Egito e Tunísia experimentavam temporariamente a democracia, derrubando ditadores pela força popular, a Líbia desmoronava em guerra civil,  confronto entre milícias e assédio internacional.

A partir de 2014, o país se viu dividido entre dois governos, um reconhecido pela ONU, em Trípoli, outro do marechal rebelde Khalifa Haftar, no leste, em confrontos jamais resolvidos. A fragmentação também deu entrada, naquele ano, a militantes do Daesh que tomaram a cidade de Derna e Sirte eliminando pessoas e grupos inteiros considerados por eles “infiéis”. Em fuga, somente em 2016, 200 mil pessoas chegaram à Europa – que investia milhões para tentar devolvê-los à África.

As mortes no Mediterrâneo pareciam a síntese das relações colonias entre Europa e África. E a Líbia uma vitrine dos seus estragos.

A deterioração da segurança hídrica continuou, pelo abandono ou pela guerra.   Em julho de 2019, 101 dos 479 poços no sistema de gasodutos ocidental tinham sido desmantelados, segundo dados colhidos à época pela Reuters. Em 10 de Abril de 2020, o fluxo de água para Trípoli e cidades vizinhas foi  cortado por um grupo armado. E quase todas as estações de dessalinização estavam quebradas.

Em meio ao caos, as barragens construídas em 1970 na cidade de Derna também envelheceram sem manutenção – a última feita em 2002.  Em 2022 o hidrólogo Abdelwanees A. R. Ashoor, da Universidade Omar Al-Mukhtar da Líbia, alertou que, pelas condições das barragens,  uma grande inundação, seria  “catastrófica para a população do Wadi e da cidade”. O aquecimento do Mediterrâneo tornava provável que a tragédia viria.

No dia 10 de setembro, a tempestade Daniel despejou, como um tsunami, enormes quantidades de água sobre a costa de Derna, mais do que toda chuva esperada em um ano, rompendo a primeira barragem, cujo volume de água forçou e rompeu a segunda, arrasando cidades pelo caminho. Os danos ainda estão sendo calculados, assim como as milhares de mortes, feridos e desaparecidos. E ainda há o receio de epidemias e envenenamentos sem precedentes, dada a quantidade de corpos espalhados pelas ruas e a contaminação das águas. Mas a conjunção de fatores que estão afundando a Líbia em lama, escombros, esgoto e cheiro de morte aponta para um mundo  insustentável e xenofóbico, que não consegue lidar com o grau de destruição associado às suas guerras por energia, nem lidar com as crises que causa, climáticas e humanitárias.

“O fato de o Daniel ter se transformado em um ‘medicane’ (…) é provavelmente o resultado de temperaturas mais altas na superfície do mar e, portanto, de mudanças climáticas causadas pelo homem”, disse o cientista climático Karsten Haustein, da Universidade de Leipzig, na Alemanha, citado pelo The Guardian.

“Medicanes” são o tipo de furacões que têm ocorrido no Mediterrâneo. Eles foram registrados próximos à Grecia entre 2016, 2018 e 2020, na costa argelina em 2019,  perto da Scicília em 2020. A Bulgária, a Grécia e a Turquia também foram atingidas pelo Daniel antes que chegasse à Líbia.

Nenhum destes lugares sofreu tanto quanto o país já devastado em sua capacidade de defender-se. E de novo, levas de sobreviventes se arriscarão a morrer no Mediterrâneo tentando chegar a uma Europa despreparada e hostil.

 

Ø  A catastrófica inundação da Líbia foi potencializada pelo legado da guerra dos EUA e Otan no país. Por Jasper Saah

 

chuva intensa e os ventos da tempestade mediterrânea Daniel inundaram o leste da Líbia na última semana, afetando de forma excepcional a cidade costeira de Derna, situada em uma área baixa. O número de mortos nessa pequena cidade de 90.000 habitantes já ultrapassou 10.000, com muitos outros feridos ou desaparecidos. Quarteirões e famílias inteiras foram arrastados para as águas do Mediterrâneo.

Enquanto o mundo chora essa tragédia, é fundamental lembrar que não se trata apenas de um desastre natural. A culpa pela escala inacreditável de morte e destruição é do Pentágono e de seus aliados da Otan, que destruíram o governo central do país em uma guerra em 2011, mergulhando a sociedade em um estado de caos que continua até hoje.

A tempestade, chamada de "medicane" - um ciclone tropical mediterrâneo - trouxe ventos de mais de 120 km por hora, sete polegadas de chuva e ondas de até seis metros de altura após o rompimento de duas represas nas terras altas ao sul de Derna. A tempestade também causou grandes inundações na Grécia, Turquia e Bulgária, matando dezenas de pessoas, antes de aumentar sua intensidade e atingir a Líbia. Tempestades como essa são cada vez mais comuns no Mediterrâneo à medida que a temperatura média da água aumenta, e estão relacionadas a outros fenômenos climáticos extremos, como as ondas de calor brutais e as secas que se tornaram comuns no sul da Europa nos últimos anos.

A principal causa dos danos e das vítimas foi uma falha nas duas represas ao sul da cidade. Construídas em meados da década de 1970 pela empresa de construção iugoslava Hidrotehnika-Hidroenergetika, elas têm uma capacidade coletiva de cerca de 20 milhões de metros cúbicos de água. As represas forneceram irrigação para as áreas vizinhas e abasteceram a cidade com água por décadas, uma parte importante da infraestrutura para uma região como essa.

No entanto, quando as represas falharam, mais de 30 milhões de metros cúbicos de água foram liberados na cidade, destruindo quase um quarto de todos os edifícios. As represas não recebiam manutenção de grande porte desde o início dos anos 2000 e têm sido cada vez mais negligenciadas desde 2011. Além disso, o agravamento da crise climática exigirá a construção e a manutenção de uma infraestrutura de controle de enchentes muito mais robusta.

Essas cenas horríveis estão sendo cobertas pela mídia ocidental com um frio distanciamento. Por exemplo, o Washington Post faz a pergunta: "por que as enchentes na Líbia foram tão mortais?" e fornece respostas repletas de diagramas e fotografias aéreas da cidade inundada, enfatizando "chuvas", "geografia" e "infraestrutura". A Organização Meteorológica Mundial, sediada na ONU, declarou que a maioria das vítimas "poderia ter sido evitada" se a Líbia tivesse "um serviço meteorológico operando normalmente".

Mas o que "não é normal" na Líbia? Esses mesmos artigos apontam para "uma década de turbulência", "impasses políticos" e "divisões", além de alusões à "difícil situação de segurança". É verdade que a mudança climática está na raiz dessa catástrofe. Também é verdade que as instituições políticas - ou, mais precisamente, a falta delas - exacerbaram de forma significativa essa catástrofe mortal, mas a mídia ocidental está obscurecendo o contexto e anulando a responsabilidade das potências da Otan pela situação na Líbia.

·         Consequências da guerra da Otan chegam até os dias de hoje

Essa é a imagem da África em geral e da Líbia em particular que a mídia ocidental cultiva - condenada à tragédia pela geografia e pela má sorte, atolada em violência insolúvel e instabilidade política, incapaz de resolver seus próprios problemas ou operar "normalmente". Na verdade, antes do golpe de Estado de 2011 apoiado pela Otan que derrubou o governo líbio e o líder de longa data Muammar Gaddafi, os líbios desfrutavam dos mais altos padrões de vida no continente africano e compartilhavam os lucros dos recursos naturais do país. Os lucros do ouro e do petróleo foram aplicados em projetos de desenvolvimento, incluindo infraestrutura e programas sociais.

Desde 2011, e com o colapso total do Estado líbio, o país tem sido dividido entre vários atores. Em 2014, três anos após o golpe, Derna foi tomada por militantes que se declararam leais ao ISIS. A cidade foi palco de combates brutais entre 2015 e 2018, quando os militantes alinhados ao ISIS foram derrotados pelas forças do general Khalifa Haftar.

Haftar lidera uma milícia chamada Exército Nacional da Líbia e atualmente controla grandes áreas do país. Ele está baseado na cidade de Tobruk, no leste do país, e é apoiado pela Rússia e por muitos Estados árabes da região. As Nações Unidas reconhecem o rival governo de Acordo Nacional, baseado em Trípoli. Haftar, que foi capturado e mantido como prisioneiro de guerra durante o conflito entre Chade e Líbia na década de 1980, era na época um ativo da CIA que o governo Reagan esperava usar para fomentar um golpe contra Gaddafi. Ao ser libertado, Haftar passou a década de 1990 e o início dos anos 2000 morando em Langley, Virgínia, onde também fica a sede da CIA. Mas após a guerra de 2011, ele caiu em desgraça com seus apoiadores ocidentais.

Os dois governos rivais estão informando números diferentes de desaparecidos e mortos nas enchentes, coordenando com diferentes organizações internacionais de ajuda humanitária e mantendo sistemas separados de comunicação de massa e resposta rápida. Esse também foi um dos mais importantes fatores a contribuir para a falta de aviso prévio aos residentes.

A destruição do Estado líbio em 2011 teve repercussões dramáticas em todo o mundo - um fator fundamental para a desestabilização e a proliferação de armas no Sahel, mais ao sul. Isso, por sua vez, está intimamente ligado à chamada "crise migratória", que moldou e transformou a política europeia dramaticamente para a direita na última década.

Os meios de comunicação ocidentais cobrem superficialmente as inundações em Derna e, ao mesmo tempo, absolvem o papel da Otan e do imperialismo dos EUA no contexto político, histórico e econômico dessa catástrofe e de tantas outras que ocorrem em todo o mundo.

 

Fonte: Por Rita Freire, no Monitor do Oriente Médio/Opera Mundi

 

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