terça-feira, 26 de setembro de 2023

China contra o 'fim da história': 10 anos do Cinturão e Rota colocam em xeque supremacia do Ocidente

Já faz 10 anos que a China anunciou seu grandioso projeto de integração econômica internacional Cinturão e Rota (também conhecido como Nova Rota da Seda).

Lançado por Xi Jinping em 2013, a iniciativa visava escoar o excedente da produção chinesa para os mercados ocidentais através do território de diversos países asiáticos e europeus, mudando em definitivo a realidade geopolítica do mundo.

Abarcando em seu escopo mais de 50% do PIB mundial e 70% de sua população, o projeto trata-se de uma ferramenta importante que vem transformando a influência econômica e política chinesa em um dos principais marcos do século XXI.

Não por acaso, autoridades em Pequim já confirmaram a presença de pelo menos 90 nações na próxima conferência voltada para discutir o andamento da iniciativa Cinturão e Rota, marcada para ocorrer no próximo mês de outubro. Tudo isso se deve à importância que a China adquiriu ao longo das últimas décadas.

Importância essa que, em última análise, culminou por anular o famigerado "fim da história" preconizado por Francis Fukuyama no começo dos anos 1990. Afinal, pela expressão "fim da história" Fukuyama se referiu, entre outras coisas, à supremacia dos princípios ocidentais de organização política e social e sua suposta superioridade diante do modo de pensar e de viver das outras sociedades.

Em verdade, não somente para Fukuyama, mas também para diversas autoridades políticas em Washington, a combinação entre democracia liberal e capitalismo de livre mercado seria superior a qualquer sistema político/econômico alternativo existente no mundo. A razão para essa interpretação residiria em sua capacidade de satisfazer os impulsos básicos da natureza humana, representada pelo desejo de adquirir bens materiais e pelo reconhecimento de seu valor individual.

Diante desse quadro e sobretudo com o final da Guerra Fria no começo dos anos 1990, os americanos acreditavam ter atingido uma superioridade inabalável sobre os seus antigos rivais na arena política (como Rússia e China) em termos de modelo de organização social.

Entretanto, durante as últimas décadas, restou demonstrado que um robusto crescimento econômico pode sim ser promovido sob regimes políticos distintos, e que não são apenas os governos democráticos de vertente liberal que podem satisfazer as necessidades básicas de suas populações.

Além disso, também restou demonstrado com a ascensão da China no século XXI que o projeto estadunidense de homogeneizar ideias e valores ao redor do mundo foi apenas um sonho de uma noite de verão.

Afinal, grandes potências como Rússia, Índia e China representam civilizações distintas das do Ocidente em muitos aspectos, e possuem perspectivas históricas próprias sobre o sistema internacional e sobre sua posição de direito nesse sistema. Logo, aquela tendência inexorável que se observava nos anos 1990 em torno da submissão desses países ao Ocidente nada mais era do que uma previsão de futuro precipitada.

No mais, em regiões como América Latina, Oriente Médio, África, e em demais partes da Ásia e do Leste Europeu, a economia de livre mercado e a democracia liberal não foram, com algumas exceções importantes, tornadas regra como se esperava.

A China, por sua vez, ao atrair cada vez mais países para sua órbita em função de parcerias comerciais e do próprio projeto Cinturão e Rota, ofereceu ao mundo uma alternativa à democracia liberal americana, combinando uma economia bem-sucedida – fundamentada sobretudo em laços sociais e familiares fortes – com um Estado politicamente centralizado.

Em verdade, fato é que muitas sociedades asiáticas, embora façam menção da importância dos princípios ocidentais de democracia, acabaram por modificar o seu conteúdo original a fim de acomodar tradições culturais e políticas próprias. Desse modo agiram China, Japão e Coreia do Sul, por exemplo, com resultados econômicos variados ao longo dos últimos anos.

Simplesmente, os americanos (e o Ocidente de modo geral) não acreditavam que em pleno século XXI fossem ainda existir diferenças na forma como os Estados geram suas sociedades. Isso explica o desconforto ocidental com a ascensão de países como a China nas relações internacionais, o que colocou um fim à presunção de que o liberalismo político e econômico era o único motor do desenvolvimento histórico e progressivo das nações.

Pelo contrário, sociedades regidas por governos fortes e Estados centralizados, como Rússia e China, tornaram-se exemplos de sucesso na diminuição dos índices de pobreza de sua população e no aumento da qualidade de vida da sociedade.

No final das contas, portanto, a universalização do individualismo liberal, que pretendia estender suas premissas a todos os países do mundo, acabou se mostrando um projeto falido, até mesmo no Ocidente. Basta observar a divisão causada pelas discussões sociais em torno de pautas identitárias conflitantes em países como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido para se certificar de que a situação nesses países nem de longe é tranquila.

Ora, com o Ocidente em decadência e corroído por disputas e fraturas internas, sociedades de cultura milenar como a China continuarão a atrair cada vez mais Estados para sua órbita, multiplicando projetos de cooperação e sem procurar impor seus valores – sejam sociais ou políticos – aos demais povos do mundo.

Seja como for, com a celebração dos 10 anos da iniciativa Cinturão e Rota, a China demonstrou não somente uma capacidade ímpar de aglutinar Estados em torno de seu ambicioso projeto geopolítico, como provou que o Ocidente não está mais no centro do mundo.

No mais, é preciso dizer que, apesar de sua suposta preocupação com o indivíduo e de seu dito "respeito à pluralidade de opiniões", o liberalismo ocidental nunca foi muito bom em lidar com aqueles países que não reconheceram a validade de suas premissas.

A China é um desses países e, mesmo assim, foi capaz de exercer uma notável liderança internacional, liderança essa que tende a se prolongar pelos próximos anos. Com isto, Pequim não somente colocou em xeque a supremacia do Ocidente nas relações internacionais, como também foi capaz de anular a presunçosa previsão de Fukuyama sobre o "fim da história".

 

Ø  Turbulência nos altos escalões da China levanta questões sobre governo de Xi Jinping

 

No início do seu terceiro mandato sem precedentes, Xi Jinping empilhou nos altos escalões da China uma lista de pessoas leais que, presumivelmente, esperava que facilitassem os caminhos para alcançar a sua grande visão para a China.

Menos de um ano depois, no entanto, uma tempestade turbulenta está agitando a elite governante escolhida a dedo por Xi, levantando questões sobre o seu julgamento e diminuindo a confiança internacional na sua governança – em um momento em que a China enfrenta grandes problemas econômicos internos e uma concorrência crescente com os Estados Unidos no cenário mundial.

Em questão de meses, dois altos membros do gabinete da China que serviram como interlocutores-chave do país com o mundo desapareceram. O ministro da Defesa, Li Shangfu, não é visto em público há três semanas, gerando especulações de que ele está sob investigação.

Semanas antes, o ministro das Relações Exteriores, Qin Gang, foi dramaticamente deposto depois de desaparecer para público por um mês.

A súbita ausência deles ocorre em um momento em que Xi procura eliminar quaisquer ameaças e vulnerabilidades percebidas, um esforço para reforçar a segurança nacional, em um contexto de tensões crescentes com o Ocidente.

Tanto Li como Qin servem entre os cinco conselheiros de estado da China, uma posição sênior no gabinete que supera a de um ministro regular. Li também faz parte da Comissão Militar Central, um órgão poderoso liderado por Xi que comanda as forças armadas.

Entretanto, a remoção surpresa de dois generais do alto escalão abalou a Força de Foguetes do Exército de Libertação Popular, uma unidade de elite criada por Xi para modernizar as capacidades de mísseis convencionais e nucleares da China, despertando preocupações de um expurgo mais amplo nas forças armadas.

O governo chinês, que se tornou ainda mais opaco sob Xi, pouco ofereceu em termos de explicação pública para a série de mudanças de pessoal, nem mostrou qualquer interesse em esclarecer a inevitável especulação que tem crescido desenfreada desde então.

Na terça-feira (19), o The Wall Street Journal informou que uma investigação do Partido Comunista descobriu que Qin estava envolvido em um caso extraconjugal enquanto servia como enviado da China a Washington, citando pessoas familiarizadas com o assunto. O Ministério das Relações Exteriores da China se recusou a comentar a reportagem.

A falta de transparência sobre o destino de dois ministros do alto escalão desferiu um golpe na imagem internacional de Pequim, que tem elogiado o seu modelo político como mais estável e eficiente do que as democracias ocidentais.

Especialistas dizem que a crescente incerteza entre a elite dominante da China expôs as vulnerabilidades do seu sistema de partido único – que só foram amplificadas pela concentração do poder pessoal de Xi durante aquele que é agora o seu terceiro mandato.

“O que está acontecendo na China representa realmente e reflete um risco político absolutamente tremendo que emana de Pequim”, disse Drew Thompson, pesquisador sênior da Universidade Nacional de Singapura.

“O risco político está tanto entre Xi Jinping e na sua relação com os seus subordinados escolhidos a dedo, mas também na falta de regras e normas estabelecidas que regem os comportamentos no sistema”.

Como ministro da Defesa, um papel em grande parte cerimonial no sistema chinês, Li não comanda forças de combate. Mas ele é uma face importante da diplomacia militar da China para o mundo exterior, disse James Char, pesquisador da Escola de Estudos Internacionais S. Rajaratnam, em Singapura.

“Se Li Shangfu estiver realmente em apuros, Pequim será vista de forma muito negativa por ter dois conselheiros de estado destituídos tão cedo no terceiro mandato de Xi Jinping”, disse ele.

Desde que foi promovido ao cargo em março, Li viajou duas vezes a Moscou para se encontrar com o seu homólogo russo, visitou o presidente de Belarus, em Minsk, e apertou a mão do secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, em uma conferência de segurança em Singapura.

Nas últimas semanas, no entanto, Li teria perdido uma série de compromissos diplomáticos, incluindo uma reunião anual sobre defesa das fronteiras com autoridades vietnamitas e uma reunião com o Chefe da Marinha de Singapura em Pequim.

Mas os especialistas notaram que há uma fresta de esperança na misteriosa ausência de Li no que diz respeito aos esforços para estabilizar as relações EUA-China.

Li foi sancionado pelos EUA em 2018 pela compra de armas russas pela China, e Pequim sugeriu repetidamente que os EUA não conseguirão uma reunião com Li a menos que as sanções sejam revogadas.

Se Li fosse destituído do cargo de ministro da Defesa, isso poderia potencialmente abrir uma janela para a retomada das conversações militares de alto nível entre as duas superpotências.

·         “Xi não poderia escapar da culpa”

A potencial queda dos próprios partidários de Xi teria um reflexo negativo no líder máximo, que concentrou o poder e a tomada de decisões nas suas próprias mãos a um nível nunca visto na China nas últimas décadas, dizem os analistas.

“Dois conselheiros de estado promovidos por Xi enfrentaram problemas em seis meses, por mais que as autoridades tentassem defendê-los, Xi não poderia escapar da culpa”, disse Deng Yuwen, ex-editor de um jornal do Partido Comunista que agora mora nos EUA. “Haverá dúvidas dentro do partido sobre que tipo de pessoas ele colocou em posições importantes”.

Rahm Emanuel, o embaixador dos EUA no Japão, comparou até mesmo a formação do gabinete de Xi ao romance de Agatha Christie “E Não Sobrou Nenhum”. “Quem vai ganhar esta corrida do desemprego? A juventude da China ou o gabinete de Xi?”, escreveu o embaixador no X, plataforma anteriormente conhecida como Twitter.

A China já está lutando contra uma série de problemas econômicos – desde o desemprego recorde dos jovens e a crescente dívida do governo local até uma crise imobiliária em espiral. A crescente incerteza no círculo dirigente de Xi corre o risco de alimentar uma crise de confiança na segunda maior economia do mundo, observaram os analistas.

 “O último expurgo de alto nível de Xi sublinha a sua crença de que a coesão ideológica, e não o desempenho econômico ou a capacidade militar percebida, são os pilares da força de uma nação, uma lição que ele tirou do colapso da União Soviética”, disse Craig Singleton, um membro sênior sobre a China na Fundação para a Defesa das Democracias em Washington DC.

“A remoção de Li pode não afetar seriamente as relações estatais da China, mas quase certamente reforçará as preocupações crescentes da comunidade empresarial internacional relativamente aos excessos de partidos e à diminuição da transparência na China”.

·         Combate a corrupção

O líder militar Li, de 65 anos, começou a trabalhar em um dos principais locais de lançamento de satélites da China, na província de Sichuan, no sudoeste, subindo na hierarquia até se tornar o seu diretor.

Depois de três décadas no centro de lançamento, foi promovido para trabalhar em armamentos na sede do ELP em 2013, pouco depois de Xi subir ao poder.

Acredita-se que Li seja um protegido do general Zhang Youxia, amigo de infância de Xi e aliado mais próximo nas forças armadas. Em um sinal da sua proeminência, Zhang foi promovido a primeiro vice-presidente da Comissão Militar Central (CMC) durante a remodelação da liderança em outubro passado, apesar de ter ultrapassado a idade de aposentadoria não oficial.

De 2017 a 2022, Li foi responsável pela aquisição de armas na China como chefe do Departamento de Desenvolvimento de Equipamentos do CMC, cargo que Zhang ocupou anteriormente.

Em julho, dias antes de os dois principais generais serem abruptamente destituídos, o Departamento de Desenvolvimento de Equipamentos anunciou uma nova repressão às práticas corruptas de aquisição, pedindo dicas sobre atividades questionáveis que remontam a 2017 – coincidindo com a época em que Li assumiu o comando do departamento.

Desde que chegou ao poder, Xi tem exercido uma campanha anticorrupção implacável, que chegou centenas de funcionários do alto escalão e generais e milhões de outros de escalão inferior.

“Se olharmos para trás, há 10 anos, Xi Jinping ainda está lutando contra a corrupção. Ele ainda está lutando contra a deslealdade. Ele ainda expressa as suas preocupações sobre a lealdade do exército para com o partido”, disse Thompson, pesquisador da Universidade Nacional de Singapura.

“Isto revela realmente alguns problemas fundamentais na natureza da governança em Pequim. A falta de freios e balanceamento, a dependência excessiva do controle partidário de cima para baixo não faz nada para remover os incentivos que sustentam os comportamentos que eles estão constantemente tentando erradicar.”

·         “Tais expurgos continuarão acontecendo”

Apesar de já ter acumulado mais poder do que qualquer outro líder chinês nas últimas décadas, Xi continua redobrando a sua aposta em uma campanha para consolidar a sua autoridade no p

artido e nas forças armadas.

Na semana passada, à medida que aumentavam as especulações sobre o paradeiro do ministro da Defesa, Xi apelou à unidade e estabilidade dentro dos militares durante uma inspecção no nordeste da China.

“A falta de confiança política entre os indivíduos no sistema é um motor subjacente desta campanha”, disse Thompson.

Xi não é o único líder chinês que se voltou contra o seu próprio círculo depois de acumular um poder pessoal incomparável. O presidente Mao Zedong, o pai fundador da China comunista e o líder mais poderoso antes de Xi, expurgou muitos dos seus antes confiáveis aliados na Revolução Cultural.

Char, especialista da Escola de Estudos Internacionais S. Rajaratnam, alertou que as mudanças políticas não sugerem que Xi esteja perdendo o controle do poder. “O próprio fato de ele poder remover quem quiser diz muito sobre a extensão do controle que Xi alcançou”, disse.

Mas ele observou que o desaparecimento de Li e Qin é um sintoma do governo centralizado de partido único na China. “Até que Xi Jinping tenha a coragem de reformar todo o sistema político tenho certeza de que tais expurgos continuarão acontecendo”.

 

Fonte: Sputbik Brasil/CNN Brasil

 

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