Publicado pelo Exército, livro que diz que yanomamis não existem inspirou políticas que levaram a crise humanitária
Em meio à grave crise humanitária que atinge os indígenas yanomami, textos com teorias conspiratórias sobre esse povo voltaram a ser lidos em blogs e compartilhados nas redes sociais.
Em
comum, eles reproduzem citações e argumentos de um livro publicado em 1995 pela
editora da Biblioteca do Exército e escrito pelo falecido coronel Carlos
Alberto Lima Menna Barreto.
Com
acusações não comprovadas e um conjunto de documentos controversos, A
Farsa Ianomâmi insinua, em linhas gerais, que um povo identificado
como yanomami não existia antes que a fotógrafa Claudia Andujar e organizações
internacionais com interesses na Amazônia o inventassem para, com isso, se
beneficiarem da demarcação da terra indígena (leia abaixo informações que
refutam esses argumentos do livro).
O
Exército publicou 3.000 exemplares do livro em 1995, mesmo ano em que morreu
Menna Barreto.
Hoje,
o livro circula em arquivos compartilhados gratuitamente pela internet e foi
recomendado algumas vezes por Olavo de Carvalho (1947-2022), como mostram
textos de seu site e seus programas de aula.
Além
da influência de Carvalho, guru de parte da direita, dois especialistas
entrevistados pela BBC News Brasil apontam que a relação entre o livro e a
política conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em seus quatro anos
de governo (2019-2022) é maior.
"Com
certeza esse livro ressoa ao longo do governo Bolsonaro. Inclusive, eu comecei
a estudar esse livro a partir do discurso do Bolsonaro em 2019 na ONU
(Organização das Nações Unidas). Quando eu escutei aquela fala, eu lembrei do
livro, que eu tinha lido por curiosidade. A fala tinha total correspondência
com o livro”, diz o historiador João Pedro Garcez, que teve A Farsa
Ianomâmi como um de seus objetos de estudo no mestrado na Universidade
Federal do Paraná (UFPR).
"Parece
que o governo Bolsonaro fez um tipo de gestão de acordo com o livro porque,
neste, os indígenas são colocados como uma massa de manobra de interesses
estrangeiros. Então, eles são vistos como inimigos do Brasil. Dentro dessa
racionalidade, faz sentido deixá-los na beira da morte, porque eles não fazem
parte da ideia de Brasil que está presente no pensamento militar",
acrescenta o pesquisador, referindo-se à crise humanitária entre o povo
yanomami.
Não
se sabe se Bolsonaro leu A Farsa Ianomâmi ou não, mas o que
Garcez e outro entrevistado, o geógrafo francês François-Michel Le Tourneau,
afirmam é que o livro simboliza as posições do ex-presidente e aliados acerca
dos indígenas e da Amazônia.
No
Telegram, Bolsonaro afirmou que as acusações de descaso de seu governo com os
indígenas eram uma "farsa de esquerda" e defendeu que a saúde
indígena foi uma das prioridades da sua gestão.
A
conduta do antigo governo nessa área está passando agora por intenso
escrutínio, depois que o site jornalístico Sumaúma revelou fotos e dados da
sofrida situação da saúde de crianças, adultos e idosos yanomami.
No
final de janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís
Roberto Barroso pediu a abertura de uma investigação sobre "a
possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em
tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e
de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas
comunidades indígenas".
Na
decisão, Barroso menciona haver evidências de "ação ou omissão" do
antigo governo que agravaram a situação dos yanomami. Um exemplo trazido pelo
ministro do STF foi a publicação, no Diário Oficial, de data e local de uma
operação sigilosa contra o garimpo ilegal em território yanomami, o que pode
ter alertado os invasores.
·
Indígenas vistos como 'ameaça'
Carlos
Alberto Lima Menna Barreto se apresenta, logo no início de sua obra, como um
“gaúcho natural de Porto Alegre, oriundo de tradicional família de militares”.
Foi em 1968 que, segundo o próprio, ele “travou os primeiros contatos com a
Amazônia, que a partir dessa data o seduziu”.
Em
Roraima, Menna Barreto atuou como primeiro comandante do 2º Batalhão Especial
de Fronteira e do Comando de Fronteira e, após ir para a reserva, foi
secretário de Segurança do Estado.
Nas
páginas finais de sua obra, o coronel propôs algumas ações. A primeira
recomendação era a anulação da criação da reserva yanomami — homologada em 1992
—, por conta das “fraudes” que o militar disse ter apresentado no livro. Uma
segunda proposta consistia em “regulamentar a exploração do ouro, do diamante e
de outros minérios por pessoas físicas e empresas”.
Talvez
essas bandeiras lembrem posições de Jair Bolsonaro.
Quando
deputado federal, o então capitão da reserva pediu, em 1993, a anulação da
demarcação da terra indígena yanomami; quando presidente, ele declarou em
diversas ocasiões que não haveria mais demarcação de terras indígenas em seu
governo.
Em
fevereiro de 2022, o então presidente comemorou que na sua gestão no Planalto
“não foi demarcada nenhuma terra indígena”.
Por
longos anos, Bolsonaro também defendeu o garimpo em terras indígenas e, na
presidência, agiu nesse sentido. Veio do Executivo, por exemplo, um projeto de
lei de 2020 que tentou regulamentar a mineração nessas áreas protegidas — mas a
proposta acabou não avançando.
Autor
de livros e pesquisas sobre os yanomami e a Amazônia, o francês François-Michel
Le Tourneau identifica três grupos de pressão sobre o governo Bolsonaro que
buscaram limitar direitos do indígenas: os ruralistas, as igrejas evangélicas e
os militares.
Para
Tourneau, o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI) e ex-comandante militar da Amazônia, era uma figura
emblemática de uma geração de oficiais e generais que vê a Amazônia como um
ponto vulnerável para a unidade nacional brasileira.
“O
fato de ter deixado a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e os índios
do Brasil completamente abandonados por quatro anos era realmente isso. Para
eles, se fomentava dentro da Funai um movimento de desmembramento do Brasil e
se defendia que esses territórios estavam cheios de riquezas que precisavam ser
exploradas”, diz o geógrafo, diretor de pesquisas do Centre National de la
Recherche Scientifique, na França.
“Os
índios do Brasil não têm nenhum interesse em independência política. Há uma
confusão, pois eles podem querer autonomia, mas autonomia não é independência”,
explica o francês, que diz ter “aprendido a viver” com as suspeitas que
desperta por ser um estrangeiro estudando a Amazônia.
Para
Torneau, o livro A Farsa Ianomâmi é mais um exemplo dessa
interpretação de um segmento dos militares sobre os indígenas da Amazônia.
“Por
que o governo Bolsonaro recebeu bem esse tipo de teoria, ou até mesmo propagou
esse tipo de teoria [do livro]? Porque o fundo ideológico e cultural deles está
fundamentando sobre a ideia de que as identidades indígenas de certa forma são
uma ameaça ao Brasil.”
Segundo
o catálogo online do Exército, há hoje 56 exemplares do livro espalhados por
bibliotecas da força pelo Brasil — 12 deles estão em colégios militares, que
oferecem ensino fundamental e médio.
·
Reação militar à Constituição de 1988
O
historiador João Pedro Garcez lembra de estudos que já demonstraram que, em
1988, ano de promulgação da Constituição, e em 1992, ano de realização da
conferência Eco-92 no Rio de Janeiro, aumentou a produção acadêmica militar
sobre a Amazônia.
“Eu
acredito que tanto esse crescimento quanto a publicação do livro A
Farsa Ianomâmi têm a ver com uma reação dos militares à Constituição
Federal, que defende a autodeterminação dos povos, e por consequência a
demarcação das terras indígenas; e a própria Eco-92, que trouxe muito forte
para o Brasil a discussão ambiental”, diz Garcez, doutorando em história na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O
historiador aponta que o autor de A Farsa Ianomâmi usou muitos
artigos de opinião publicados em jornais para validar seus argumentos, ao mesmo
tempo em que se valeu de sua experiência em Roraima. O livro é escrito em
primeira pessoa.
“Ele
reivindicava muito essa autoridade testemunhal. O livro tem uma característica
autobiográfica”, explica Garcez.
Menna
Barreto também traz no livro um documento datado de 1981 e atribuído ao
Conselho Mundial de Igrejas Cristãs, que teria sede na Suíça. O texto,
reproduzido inicialmente pelo jornal O Estado de S.Paulo, expõe planos de
“infiltrar missionários e contratados, inclusive não religiosos, em todas as
nações indígenas”. Mas a veracidade do documento é controversa.
Em
1987, foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar
denúncias “formuladas pelo jornal O Estado de S.Paulo, referentes a uma
conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional sobre a
região amazônica”, segundo documentos do Congresso.
Após
investigação, o relator concluiu “que a instituição ‘Conselho Mundial de
Igrejas Cristãs’, elemento-chave das denúncias, não teve sua existência
confirmada […]. Ao contrário, todas as entidades consultadas negaram conhecer
sua existência”.
Menna
Barreto recorreu também a relatos de viajantes europeus de séculos passados
para sustentar o argumento de que a identificação yanomami não era citada.
Assim, o coronel defendeu um dos principais argumentos de seu livro: o de que
os yanomami não existem e foram inventados por interesses alheios.
“Ele
ignora toda a produção antropológica contemporânea a ele. Essa produção mostra
que os yanomâmi são um supergrupo e que tem divisões dentro desse supergrupo”,
afirma Garcez.
A
antropóloga e indigenista Hanna Limulja explica que os indígenas que compõem o
grande território yanomami podem até se referir com outras palavras a seus
subgrupos, mas que a consideração deles como yanomami pelos especialistas não é
nada arbitrária.
“Por
que esse povo é considerando yanomami? Porque eles compartilham um território,
práticas culturais, uma língua. O yanomami é uma língua isolada, é um tronco, e
dentro disso você pode ter variações. Por exemplo, o latim é um tronco, e aí
você tem variações como o português e o espanhol, que são próximos”, aponta
Limulja.
“O
fato de a gente catagorizar os yanomami ou não não quer dizer que a gente
invente um povo. O povo está lá. A gente o define da maneira que a gente
consegue, com nossos estudos, dentro das nossas categorias.”
·
Exército afirma que livro não é usado pedagogicamente
François-Michel
Le Tourneau explica que boa parte do conteúdo de A Farsa Ianomâmi é
uma “cópia” de teorias conspiratórias abastecidas nos anos 1990 pelo americano
Lyndon LaRouche.
“Para
mim, o mais importante nesse livro não é só o autor, mas quem publicou. Ele foi
publicado pela Biblioteca do Exército, e isso dá um peso para o livro”, aponta
o geógrafo.
A
reportagem enviou perguntas ao Exército brasileiro, que foram parcialmente
respondidas. Em nota, o Exército informou que, apesar de exemplares de A
Farsa Ianomâmi estarem em colégios militares, “a obra não consta da
lista de livros paradidáticos constantes das Normas de Planejamento e Gestão
Escolar (NPGE) do Sistema Colégio Militar do Brasil”.
Por
isso, não está “autorizada nenhuma atividade pedagógica com o livro nos
Colégios Militares”.
A
BBC News Brasil também tentou entrevistar líderes yanomami mas, em meio à crise
humanitária no território, não pôde ser atendida por falta de disponibilidade.
Também
foi oferecida uma oportunidade de posicionamento à fotógrafa Claudia Andujar,
por meio do contato com uma galeria de arte que a representa. Não houve
retorno. Em 2010, porém, foi publicada uma entrevista em que a
artista aborda o livro A Farsa Ianomâmi.
Segundo
ela, o livro foi construído em um período em que ela participou dos esforços
para a demarcação da terra yanomami.
“Olha,
naquela época, fui muito perseguida pelos militares que estavam na presidência
e nas diretorias da Funai. Apesar de tudo isso, e graças a bons contatos
políticos em Brasília, conseguimos a demarcação das terras. Mas em Roraima
continuei odiada. Esse cara que escreveu sobre mim era de lá. Saíram tantas
notícias negativas contra nosso trabalho que você nem imagina. Saiu publicamente
que eu era uma espiã americana, depois que era uma espiã belga, coisas
simplesmente absurdas. Eu não tenho nada haver com a Bélgica”, disse Andujar,
em entrevista a uma revista acadêmica.
·
Circulação deveria ser restrita?
Apesar
de criticarem o conteúdo do livro e sua disseminação pelo Exército, os
especialistas entrevistados pela BBC News Brasil opinam que não deveria haver
algum tipo de restrição à circulação de A Farsa Ianomâmi.
“Até
pensando no caso do meu estudo, eu acho que ele é uma obra sintomática de um
pensamento militar acerca dessas das questões indígena e ambiental. Eu entendo
que ele reproduz e talvez até dissemine algumas ideias que são bem
problemáticas, mas não acredito que a censura ou a tentativa de tirar ele de
circulação não seja o meio mais efetivo de combater ele”, diz Garcez.
“E
algo muito presente no livro e na circulação dele é a colocação de que há uma
grande conspiração para deixar tudo aquilo escondido. Então, retirando-o de
circulação, talvez acabe validando mais esse ponto.”
François-Michel
Le Tourneau concorda.
“Acho
que, se você começar a andar do lado da censura, é um caminho sem volta.
Acredito que é mais interessante se produzir um outro livro que demonstre os
equívocos com argumentos mais sólidos”, sugere o pesquisador francês.
Fonte:
BBC News Brasil
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