Por que genoma humano nunca foi decifrado completamente (e o que falta para se chegar lá)
O
Projeto do Genoma Humano é considerado uma das conquistas científicas mais
importantes da história. Ele foi lançado em 1990 por um consórcio internacional
de cientistas, ao custo de US$ 3 bilhões (cerca de R$ 15,6 bilhões, em valores
atuais).
Seu
objetivo era determinar a sequência dos 3,2 bilhões de pares de bases (ou
letras) que compõem o DNA do ser humano: todas as suas informações hereditárias
e instruções para construir e manter o funcionamento das suas células, tecidos
e órgãos.
No
ano 2000, com grande publicidade, surgiu o anúncio de que havia sido completado
o primeiro rascunho do genoma humano.
"O
anúncio de hoje representa mais do que um triunfo histórico da ciência e da
razão... com este novo e profundo conhecimento, a humanidade está a ponto de
obter um novo e imenso poder de cura", declarou o então presidente dos
Estados Unidos, Bill Clinton.
O
projeto trazia muitas promessas. Ele revelaria, por exemplo, a função dos
genes, especialmente os relacionados às doenças, o que traria a medicina
personalizada, com tratamentos baseados na nossa composição genética.
O
genoma também prometia revelar informações sobre nossas origens evolutivas,
para sabermos exatamente de onde viemos e como nos diferenciamos dos outros
primatas.
Mas
o estudo apresentado em 2000 não estava completo. Não era apenas um primeiro
rascunho não revisado. Ele também incluía regiões enormes nas quais a sequência
de DNA sequer aparecia.
O
projeto continuou. Em 2003, veio novo anúncio, desta vez com menos alarde, de
que o genoma humano havia sido completado. Mas cerca de 8% das informações
continuavam faltando.
Essas
lacunas incluíam os fragmentos mais difíceis de sequenciar, nos quais as letras
do DNA são repetidas mais de uma vez. E, com a tecnologia disponível na época,
sua leitura era impossível.
Assim,
o genoma humano, oficialmente, estava completo, mas permaneceu por 20 anos sem
que fosse totalmente decifrado. Até que, em 2021, um consórcio científico
chamado Telometer-to-Telometer (Telômero a Telômero, T2T) anunciou que havia
conseguido ler todo o genoma.
Mas
era verdade?
Sim,
mas... embora tenham atingido locais antes inacessíveis (especificamente, esses
8% que não podiam ser lidos), a realidade é que existem partes do genoma humano
que continuam fora do alcance dos geneticistas.
Os
avanços da tecnologia possibilitaram ler o genoma humano completo, sem lacunas
e com o mínimo de erros. Mas esse genoma humano de referência é um
"composto", para o qual foi utilizado DNA extraído de diversos
indivíduos.
Ou
seja, não é o genoma de uma pessoa real que tenha vivido entre nós.
·
As dificuldades
Por
que decifrar o genoma humano é um trabalho tão difícil?
"A
principal limitação foi que as tecnologias que nos permitem decifrar a
sequência do DNA usam fragmentos curtos que são lidos em uma máquina e, depois,
precisam ser recompostos, como se fossem peças de um complicado
quebra-cabeça", explica o professor de genômica Manuel Corpas, da Escola
de Ciências da Vida da Universidade de Westminster, em Londres.
"Se,
no quebra-cabeça, você encontrar uma região na qual a cor e a forma das peças
não se altera (é repetitivo), é difícil colocá-las na ordem correta de forma
inequívoca sem ter um marco de referência", explica ele à BBC News Mundo,
o serviço em espanhol da BBC.
De
fato, sequenciar um genoma é como cortar um livro em fragmentos de texto e
tentar reconstruir o livro juntando novamente todos os fragmentos. Os
fragmentos de texto que contêm palavras e frases repetidas e comuns são muito
mais difíceis de reunir que os trechos que são únicos e diferentes.
Com
o genoma humano, é preciso montar milhões de peças que descrevem a diversidade
de um indivíduo. Grandes fragmentos dessas peças estão cheios de repetições e
estas são as regiões mais difíceis de ler no genoma humano.
Mas
isso foi até 2021, quando as novas técnicas de sequenciamento conseguiram
capturar essas repetições.
"É
como se tivéssemos um mapa cartográfico do século 18, descrevendo a geografia
mundial", explica Corpas.
"Primeiro,
foram verificadas as formas do litoral dos continentes próximos e os espaços
vazios foram sendo preenchidos conforme a nossa capacidade de definir regiões
ambíguas foi se refinando", acrescenta.
O
avanço importante atingido em 2021 pelo T2T, que foi oficializado em 2022 por
diversos estudos publicados na revista Science, foi a capacidade de ler com
precisão fragmentos de DNA muito mais longos, depois que se descobriu a forma
de mapear suas regiões repetitivas mais misteriosas e esquecidas.
O
consórcio T2T foi criado em 2018 por Adam Phillippy, do Instituto Nacional de
Pesquisa do Genoma Humano em Maryland, nos Estados Unidos, e Karen Miga,
geneticista da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, nos Estados Unidos.
O
T2T não era um projeto respaldado por bilhões de dólares, mas a sua conquista –
poder ler um genoma humano completo – foi considerada um marco.
Para
poder sequenciar o genoma, os cientistas utilizaram uma espécie de
"atalho".
As
células humanas normais são diploides, o que significa que elas têm duas cópias
de cada tipo de cromossomo. O pai e a mãe fornecem ao par um cromossomo cada
um.
Mas
as células utilizadas pela equipe do T2T para seu sequenciamento continham
apenas um conjunto de cromossomos herdados do pai. Isso facilitou a
reconstrução da sequência precisa, mas também significou que o genoma do T2T
não pode revelar como varia o DNA dentro de uma mesma pessoa.
Ou
seja, mesmo com o enorme avanço do T2T, o genoma sequenciado é uma única versão
de um genoma que não representa um ser humano que tenha realmente vivido. Não é
“o” genoma humano.
Mas
este genoma sequenciado agora irá estabelecer as bases da novas pesquisas
genômicas.
Com
a capacidade de ler todo o genoma humano, os cientistas esperam agora poder
sequenciar os genomas de pessoas de diversas populações de todo o mundo para
formar uma imagem real da diversidade genética da nossa espécie.
Ou
seja, o verdadeiro sucesso será poder ler diversos genomas que permitam
observar como suas regiões variam dentro de uma pessoa, de uma pessoa para
outra, de uma população para outra ou de uma espécie para outra.
"Existem
muitas variantes ou diferenças em cada organismo, cerca de cinco milhões em
cada ser humano", afirma Corpas. "A grande maioria das variantes não
produz nenhum efeito, mas sim um pequeno percentual."
"Entender
o efeito provocado por essas variantes e como elas condicionam o funcionamento
do organismo é uma das principais fronteiras do conhecimento do genoma, mas não
a única", explica o professor. "Esclarecer qual é a predisposição a
doenças raras ou comuns, portanto, é um dos principais objetivos a serem
alcançados."
"Outro
objetivo importante é entender como muitas das variantes que condicionam o
surgimento do câncer evoluem dentro do organismo para produzir tumores",
acrescenta Corpas.
·
Pangenoma humano
Um
novo esforço nesta área está sendo realizado pelos cientistas do chamado
Consórcio de Referência do Pangenoma Humano.
Em
conjunto com o T2T, o Consórcio do Pangenoma espera sequenciar os genomas de
cerca de 450 pessoas de todo o mundo para poder ter melhor conhecimento de como
o DNA varia dentro de uma pessoa e de uma pessoa para outra.
Um
dos principais objetivos deste conhecimento será identificar as variantes que
colaboram com o risco de doença de uma pessoa e contar com a medicina
personalizada no futuro.
"Poder
desenvolver terapias de câncer que sejam personalizadas para cada paciente é
uma área muito ativa, bem como a farmacogenômica, ou seja, a influência da
genética sobre a nossa dose ideal ou até sobre reações adversas a
medicamentos", segundo Manuel Corpas.
O
professor também explica que estão sendo realizados esforços para alterar nosso
código genético com técnicas como CRISPR. Seu objetivo é "editar" os
genes para eliminar e corrigir falhas causadoras de doenças.
Mas
Corpas destaca que esta "é apenas a ponta do iceberg". A medicina do
futuro será baseada na genômica e em como as informações genéticas são herdadas
e modificadas de uma geração para outra.
·
Os sucessos
Grande
parte das promessas de 1990, quando foi lançado o Projeto do Genoma Humano, já
foi atingida. Hoje, sabemos muito mais sobre as funções de diversos genes e seu
papel em doenças que variam do câncer de mama até a esquizofrenia.
Mas,
na prática, a medicina genômica não conseguiu chegar muito longe, já que se
descobriu que a maior parte das doenças é afetada por centenas de genes.
Existem
muito poucas doenças hereditárias que são causadas por um único gene
defeituoso. E os exames genéticos para detectar as pessoas com risco de
contrair doenças raras são adotados, em grande parte, apenas para as pessoas
consideradas de maior risco.
Mas
a genética conseguiu alterar nossa compreensão sobre a evolução humana. Agora
sabemos, por exemplo, que nossos antepassados se misturaram com outros
hominídeos, como os neandertais.
A
pergunta que surge é se, com as novas iniciativas, como o projeto do Pangenoma
Humano, conseguiremos finalmente completar o genoma humano.
A
resposta é não. E o motivo é que não existe um único genoma humano. O DNA de
cada pessoa é diferente e as diferenças são consideráveis.
“Todos
nós temos um genoma único, que condiciona nossa resposta a patógenos,
enfermidades, medicamentos etc.”, segundo explica Manuel Corpas.
“Chegará
um momento em que o genoma de referência será o de cada pessoa, um único genoma
para cada indivíduo, para detectar e prever doenças antes que surjam os
sintomas”, prossegue o professor.
“Enquanto
isso, já existe muito o que pode ser feito com as variações comuns que
encontramos em populações de indivíduos, em diferentes proporções. Essas
variações nos ajudam a entender por que os asiáticos são menos tolerantes ao
álcool ou à lactose e por que os europeus são mais sensíveis ao câncer de
pele.”
Por
isso, realmente só iremos conseguir entender o genoma quando tivermos um
registro de como ele varia de uma pessoa para outra e entre as diferentes
populações.
Ou
seja, enquanto houver seres humanos, haverá novos genomas. E nunca terminaremos
de ler o genoma humano.
Fonte:
BBC News Mundo
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