Pesquisadores descobrem que o lixo plástico está formando rochas na costa brasileira impactando a formação de corais
Localizada a mil km da costa de Vitória, no Espírito
Santo, a Ilha da Trindade abrigou a pesquisadora e geóloga Fernanda Avelar
Santos, de 30 anos, durante setenta dias em 2019. Ela escolheu esse local para
conduzir uma pesquisa, que será usada em sua tese de doutorado, sobre o impacto
de processos geológicos no meio ambiente e na vida humana. Diariamente,
aproveitando a beleza daquela ilha isolada no meio do Atlântico, Santos
interrompia o trabalho acadêmico para passear nas praias desertas e contemplar
o mar.
Ela
não demorou muito tempo para estranhar a quantidade de lixo que se acumulava
nas areias e nas pedras. Trindade é o território oceânico mais remoto do
Brasil. A ilha é ocupada por não mais do que quarenta pessoas, na maioria
militares e pesquisadores que descartam corretamente o lixo que produzem. A
sujeira, portanto, só poderia vir do mar.
Instigada,
Santos passou a olhar com mais atenção para o lixo que aparecia na orla. Certo
dia, em uma de suas caminhadas, se deparou com um afloramento de
aproximadamente 12 m² que cobria a superfície de várias rochas numa área
conhecida como Parcel das Tartarugas, próxima aos ninhos de tartarugas-verde e
de recifes. Ela sacou seu martelo e bateu numa das pedras até tirar uma amostra
daquilo que, segundo ela, parecia um conglomerado – um tipo de rocha sedimentar
comum em praias do mundo todo. A diferença é que essa tinha uma coloração
verde. “Será que é plástico?”, ela se perguntou.
Como
estava sem internet na ilha – cortesia de um corte de gastos do governo federal
no programa que leva conectividade a locais remotos –, Santos teve de esperar
chegar ao continente para descobrir. Levou a amostra de rocha até a
Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde cursa o doutorado, e, após
submetê-la à análise dos laboratórios de geologia e de química, confirmou:
aquelas pedras eram realmente formadas por plástico.
A
descoberta resultou em um artigo publicado no Marine
Pollution Bulletin, um dos periódicos internacionais mais respeitados nos
estudos de poluição marinha, publicado pela editora Elsevier. O artigo é assinado
por Santos e outros oito pesquisadores da UFPR, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade de São Paulo (USP). Na análise, eles
mostram que a formação rochosa encontrada por Santos – a primeira desse tipo a
ser descrita cientificamente na América do Sul – resultou da interação de
plástico e fragmentos de rochas e sedimentos. É o que os cientistas convencionaram
chamar de plastiglomerado. Mas houve uma descoberta mais importante do que
essa.
Ao
analisar as amostras colhidas na Ilha da Trindade, Santos e seu colegas
identificaram – e batizaram – um novo tipo de rocha plástica: a plastistone.
Até então, a literatura científica conhecia apenas dois tipos de pedras
formadas por plástico. O primeiro deles, o plastiglomerado, foi observado pela primeira vez em 2014, nas praias de
Kamilo, no Havaí. É formado por uma mistura de fragmentos de rochas,
sedimentos, areia e conchas – tudo aglutinado pelo plástico derretido. O
segundo tipo é o piroplástico, descrito cientificamente pela
primeira vez em 2019,
em praias do sudoeste da Inglaterra. Trata-se, nesse caso, de fragmentos
menores de outros tipos de rochas plásticas que sofreram erosão.
As
plastistones, por sua vez, são rochas compactas, homogêneas e formadas quase
inteiramente por plásticos, com poucos sedimentos soltos. A grande novidade da
pesquisa de Santos foi não apenas ter descoberto essa nova categoria, mas ter
encontrado os três tipos de rochas plásticas numa mesma praia. Para os
geólogos, é uma informação importante. “Isso significa que os três tipos são
correlacionáveis. Eles podem ser formados no mesmo ambiente, ainda que se
comportando de formas diferentes”, explica Santos.
As
rochas plásticas, até então, haviam sido descritas só no Hemisfério Norte. Os
achados em Trindade contribuem para uma visão globalizada do processo de
poluição dos oceanos. “Todos os outros estudos desse tipo foram feitos em
praias de fácil acesso para pessoas e, consequentemente, para o lixo. Essa é a
primeira vez que rochas assim são encontradas num local tão distante”, afirma
Giovana Rebelo Diório, mestranda do Laboratório de Análise de Bacias da UFPR e
uma das pesquisadoras que assina o artigo com Santos.
Objetos plásticos já foram encontrados em praias, ilhas
remotas, montanhas, regiões polares e até nas profundezas oceânicas. Mas só
agora estão sendo identificados como parte estrutural do planeta, graças ao ser
humano. “Esse tipo de material começou a interagir na composição da terra, no
ciclo geológico. A ação humana está começando a ficar registrada no ciclo
sedimentar da terra”, comenta Santos. Isso significa que, no futuro, os
geólogos poderão encontrar rochas compostas por lixo. “É um material que nunca
existiu na história natural da terra e que a gente produziu e espalhou”, diz
Giovana Diório.
O
geólogo marinho Gerson Fernandino, da UFRGS, colaborou com o artigo encabeçado
por Santos. Ele estuda desde 2019 o impacto do ser humano na formação de
rochas. Em conjunto com outros cientistas, mostrou como sedimentos das
praias estavam incorporando materiais como
tampinhas de garrafa de metal, pregos de navios e brincos plásticos.
Esse novo tipo de rocha, formado por materiais diversos, foi batizado de
antropoquina. Nesse caso, os cientistas notaram que os sedimentos de areia e
conchas se aglutinavam com os fragmentos de plástico e metais por meio de
reações químicas. No caso da descoberta da Ilha da Trindade, o plástico
derretido era o elemento que unia todos os fragmentos.
Os
achados da pesquisa brasileira situam o homem como um agente geológico ativo em
um processo que, até então, era considerado natural e alheio à humanidade: a
formação de rochas. É uma mudança importante de paradigma – e também
impressionante, considerando que materiais plásticos produzidos em larga escala
só começaram a se disseminar nos últimos setenta anos. Santos dimensiona isso
da seguinte forma: “Se a origem da Terra fosse no dia 1º de janeiro e nós
estivéssemos hoje em 31 de dezembro, esses anos do plástico seriam equivalentes
ao último segundo do ano, apenas.”
Em
dezembro de 2022, um grupo de trabalho com cientistas do mundo todo defendeu a ideia de que a Terra já
entrou num novo intervalo de tempo geológico, o Antropoceno – que significa a
“época dos humanos”. O consenso da comunidade científica, há muitas décadas,
ainda é de que vivemos o Holoceno, era geológica que começou com o término da
última grande era glacial, quase 12 mil anos atrás. Mas esse consenso tem sido
posto a prova, à medida que mais e mais estudos demonstram a ocorrência de
mudanças planetárias induzidas pela atividade humana, como o aquecimento global
e a proliferação de lixo plástico e concreto pelo mundo todo. “Essas amostras
de incorporação do plástico com o ciclo geológico reforçam a ideia desses
cientistas e trazem mais uma evidência de que o ser humano tem, sim, modificado
o planeta em grande escala”, argumenta Fernandino.
Os
impactos geológicos causados pelos humanos já são sentidos hoje por animais
marinhos. Plastiglomerados e platistones sofrem erosão e geram piroclásticos,
que são menores e se acumulam nas praias – “inclusive no fundo de ninhos de
tartaruga, já que muitos desses piroclásticos são leves”, explica Santos.
“Esses pedacinhos continuam se erodindo até virarem microplásticos.” Os recifes
de corais da Ilha da Trindade, onde a pesquisadora fez a descoberta, também
começam a se adaptar à nova realidade. “Na última visita, vimos corais usando o
plástico derretido como substrato para fixação. Coletamos amostras e isso vai
fazer parte da próxima etapa da pesquisa”, afirma.
Santos,
Diório e Fernandino pretendem continuar investigando a interferência humana na
formação de rochas, usando a Ilha da Trindade como campo de estudo. Para chegar
lá, é preciso ir até o Rio de Janeiro e pegar carona em um navio da Marinha. É
uma viagem de cinco dias no mar. O tempo de estadia para estudos assim costuma
ser de cerca de dois meses. “Mas sempre volto [para o continente] muito
triste, querendo ficar mais na ilha”, diz Santos. Seu colega Fernandino
acredita que o assunto ainda vá consumir anos de estudo. “Esses tipos de novas
rochas vão se tornar cada vez mais comuns. Não são ocorrências pontuais e não
são exclusivas de determinados locais do planeta”, afirma.
Ø
Tratado
global inédito contra poluição plástica pode ficar pronto até 2024
A
humanidade produz cerca de 460 milhões de toneladas de plástico por ano.
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), sem medidas
urgentes, esse número triplicará até 2060.
Em
março de 2022, durante a quinta sessão da Assembleia do Meio Ambiente das
Nações Unidas, em Nairóbi, capital do Quênia, foi aprovada a resolução para
acabar com a poluição plástica. Um marco histórico que promete reverter essa
situação.
A
resolução, juridicamente vinculativa, aborda o ciclo de vida completo do
plástico, necessário para enfrentar a crescente crise de poluição por esse tipo
de material. O documento reconhece ainda a contribuição significativa feita
pelos trabalhadores em ambientes informais e cooperativos para a coleta,
classificação e reciclagem em muitos países.
O
tratado deve incluir uma série de disposições técnicas, como promover a
produção e o consumo sustentáveis de plásticos, desde o design do produto até a
gestão ambientalmente correta de resíduos, por meio da eficiência de recursos e
abordagens de economia circular seguras e justas.
A
poluição plástica é uma grande ameaça aos ecossistemas, ao clima e ao bem-estar
humano. Globalmente, 46% dos resíduos plásticos são depositados em aterros, 22%
são mal geridos e transformam-se em lixo, 17% são incinerados e 15% são
coletados para reciclagem, com menos de 9% realmente reciclados.
A
poluição plástica marinha aumentou 10 vezes desde 1980, afetando pelo menos 267
espécies animais, incluindo 86% das tartarugas marinhas, 44% das aves marinhas
e 43% dos mamíferos marinhos. A poluição do ar e do solo também está
aumentando.
De
acordo com um estudo do Pnuma, mais de 14 milhões de toneladas de plástico
entram e danificam os ecossistemas aquáticos anualmente. Além disso espera-se
que as emissões de gases de efeito estufa associadas aos plásticos representem
15% do total de emissões permitidas até 2050 se a humanidade limitar o
aquecimento global a 1,5°C.
Na
agricultura, o aumento alarmante contamina o solo, pode ameaçar a segurança
alimentar e ter impacto na saúde humana.
Ø
"Ações
voluntárias não são suficientes, precisamos de políticas públicas ambiciosas
contra a poluição plástica", afirma Thaís Vojvodic
Em
março deste ano, foi aprovada uma resolução histórica para acabar com a poluição plástica e estabelecer
um acordo internacional juridicamente vinculativo – ou seja, capaz de vincular
países por força da lei – até 2024. Chefes de Estado, ministros e ministras do
Meio Ambiente e outros representantes de 175 nações aprovaram o acordo, que
trata de todo o ciclo de vida do plástico, desde a fonte até o mar, durante
sessão da Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEA).
Em
setembro, 83 organizações, incluindo grandes empresas globais – como Nestlé,
PepsiCo, Danone, Coca-Cola Company, Essity, Orestia, BNP Paribas, Rockefeller,
3M e outras –, instituições financeiras e ONGs, anunciaram uma visão comum
chamando a atenção para a necessidade de um tratado global sobre poluição plástica que estabeleça metas,
regras e obrigações comuns que os Estados membros deverão implementar dentro de
suas jurisdições nacionais. E as discussões sobre o escopo e a ambição do novo
tratado proposto serão cruciais para determinar se este tratado será capaz de
cumprir o objetivo de eliminar a poluição plástica.
"Ações
voluntárias não são suficientes. Elas são importantes, mas não suficientes. É
preciso que, para avançar nesse tema, tenhamos políticas públicas ambiciosas a
nível nacional e também a nível internacional. Nossa expectativa é muito alta,
a gente acredita que esse tratado vai mudar radicalmente o contexto da poluição
plástica no mundo", garante Thaís
Vojvodic, gerente da Rede de Pactos do Plástico da Fundação Ellen
MacArthur, em entrevista ao Entre
no Clima, o podcast do Um Só Planeta.
A
produção de plástico aumentou exponencialmente nas últimas décadas e agora
totaliza cerca de 400 milhões de toneladas por ano — número previsto para
dobrar até 2040, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU). Inger
Andersen, diretora executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA), declarou que o acordo é o mais importante no âmbito ambiental
multilateral internacional desde o Acordo de
Paris,
assinado em 2015.
"Já
existe uma lei internacional, um tratado com força de lei, que estabelece as
metas do que precisa ser alcançado pelos países [para combater a crise
climática], que é o Acordo de Paris. No caso da poluição plástica, essa lei
ainda não existe. É justamente as propostas dessas negociações que a gente
tenha o 'Acordo de Paris do plástico'.
Então é muito relevante o que está acontecendo, e o que a gente espera é que
esse tratado seja ambicioso o suficiente para que resolva o problema", revela
Thaís.
Com
a aprovação da resolução, a ONU abre caminho para conter a crescente poluição
de plástico em todo o mundo — que afeta diversos biomas, desde os oceanos
até áreas verdes. Agora, a negociação do tratado vinculante por um comitê
intergovernamental, o que será discutido em reuniões nos próximos anos,
terá efeitos em empresas e economias de todo o mundo.
"Um
tratado internacional é importante por dois motivos. Um é subir a barra e
deixar de olhar a transformação que precisa acontecer somente com uma visão de
gestão de resíduos, o que normalmente acontece – sendo que a economia
circular parte
da visão completa do ciclo de vida de um produto. E, em segundo lugar, está o
desenho desses produtos, embalagens, modelos de distribuição: como a gente pode
potencializar os modelos de reuso? E como isso pode estar refletido em
legislação? Hoje é raríssimo qualquer legislação do mundo que tenha qualquer
tipo de benefício para modelos de reuso", detalha a gerente da Rede de
Pactos do Plástico da Fundação Ellen MacArthur.
Conforme
pesquisa feita pelo Instituto Ipsos e divulgada em fevereiro, medidas para diminuir o consumo e a
produção de plástico têm recebido bastante apoio público: 90% dos brasileiros
acham que empresas devem reduzir embalagens plásticas. No entanto, a aprovação
do acordo é apenas o início de um longo e árduo trabalho.
"A
expectativa é que a poluição plástica seja erradicada nas próximas décadas.
Esse é o nível de ambição que a gente tem. E esperamos que o tratado seja
ambicioso o suficiente para entregar isso. A nossa expectativa é mais ambiciosa
do que o Acordo de Paris, que é um tratado internacional, mas deixa bastante
autonomia para os países estabelecerem as suas próprias metas. E o que
precisamos, nesse acordo específico, é que se tenha regras globais mais claras
para que haja progresso mais rápido do que estamos vendo em relação às mudanças
climáticas",
sentencia ela.
Fonte:
Revista Piauí/Um só Planeta
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