Os adolescentes que desafiaram Stalin e sobreviveram para contar a história
Houve
um episódio em que a autoridade de Stalin foi contestada por três adolescentes.
Durante
as quase três décadas que esteve no poder, Stalin procurou projetar uma
autoridade inquestionável, reprimindo com brutalidade as vozes dissidentes.
No
entanto, houve protestos na União Soviética. Eles não eram frequentes ou em
grande escala, mas indicavam que muitos discordavam do regime totalitário.
Um
desses episódios de contestação ocorreu em Chelyabinsk, uma cidade industrial
nos Urais, uma região montanhosa que separa as partes europeia e asiática da
Rússia. A cidade abrigava uma fábrica de construção de tratores.
Um
dia, na primavera de 1946, três adolescentes começaram a espalhar panfletos no
centro da cidade. Os residentes locais na fila para comprar comida os
observavam com cansaço.
Os
meninos não tinham cola, então usaram pão embebido em água para colar folhas de
papel, arrancadas de seus cadernos escolares, em paredes e postes.
"Pessoas
famintas, insurjam-se e lutem!", dizia um dos panfletos rabiscado a mão
por um aluno.
Uma
mulher na fila leu o panfleto. "Uma pessoa inteligente escreveu
isso", comentou ela.
Os
jovens eram Alexander (conhecido como Shura) Polyakov, Mikhail (Misha) Ulman e
Yevgeny (Genya) Gershovich. Eles tinham 13 anos na época. Shura Polyakov era o
líder do grupo.
Sua
família era originária de Kharkiv, na Ucrânia, e ele foi levado para os Urais
com sua mãe, avó, irmã e tia. Sua família de cinco pessoas dividia um quarto. A
cidade tinha dificuldades para acomodar refugiados de guerra.
O
pai de Shura havia sido morto na guerra. Sua mãe agora sustentava a família,
trabalhando como advogada.
Genya
Gershovich também estava crescendo sem a presença do pai, mas por um motivo
diferente. Ele nasceu em Leningrado e, em 1934, seu pai foi preso, falsamente
acusado de pertencer a uma rede clandestina que planejava derrubar o governo.
Ele
morreu sem deixar vestígios.
Para
manter seus dois filhos seguros, a mãe de Genya mudou-se para Chelyabinsk.
Apesar de seu marido ser considerado "um inimigo do povo", ela
conseguiu um emprego como professora do ensino médio.
O
pai de Genya havia sido executado antes da guerra, mas a família ficou sabendo
de sua morte muito depois.
Mikhail
(ou Misha) Ulman — assim como Genya — também era de Leningrado. Mas sua família
permanecia unida. Seus pais se mudaram para Chelyabinsk no início da guerra
para trabalhar na fábrica de tratores, que na época fabricava tanques de guerra
em vez de equipamentos agrícolas.
Em
Chelyabinsk, a família de Misha vivia em um pequeno quarto e era obrigada a
dividir o espaço com um estranho. A sala era dividida por um varal com um
lençol pendurado.
Os
três meninos frequentaram a mesma escola. Ulman e Gershovich chegaram a ser
colegas de mesa na sala de aula.
Mesmo
com apenas 13 anos, os meninos já liam as obras de Marx, Lenin e Stalin como
parte do currículo escolar. Eles aprenderam com esses livros que aceitar
injustiças era errado.
Eles
também estudaram cuidadosamente a letra da Internacional, um hino do movimento
operário escrito na década de 1870 por um revolucionário francês, que era
entoado por todos que lutavam contra a injustiça social.
A
música serviu como o hino nacional soviético entre 1922 e 1944. Os meninos não
podiam acreditar que a letra — que convocava as massas a se levantarem contra a
desigualdade social — não fosse proibida na União Soviética.
Os
meninos e suas famílias enfrentaram graves dificuldades econômicas, vivendo à
beira da fome com as rações alimentares do pós-guerra.
Havia
uma piada popular na União Soviética sobre a época em que os líderes dos EUA,
Reino Unido e União Soviética — reunidos na Conferência de Yalta em fevereiro
de 1945 perto do fim da guerra — discutiam qual método deveria ser usado para
executar Hitler.
Segundo
a piada, Winston Churchill sugere o enforcamento. Franklin Roosevelt sugere a
cadeira elétrica. E Stalin diz que a maneira mais eficaz seria alimentar Hitler
com rações de comida soviética. Os outros dois concordam que esse seria o
castigo mais cruel.
Mas
nem todos na União Soviética eram obrigados a sobreviver com rações escassas.
Os três meninos tinham um colega de classe cujo pai era diretor da fábrica
local.
O
estilo de vida do colega era completamente diferente do deles: ele era levado
para a escola por um motorista, recebia comida muito mais saborosa em sua
lancheira e, em sua festa de aniversário, os meninos puderam provar água com
gás e assistir a filmes de Charlie Chaplin, projetados em uma parede.
Desnecessário
dizer que a família do diretor não morava em um quarto compartilhado com um
estranho, mas desfrutava de acomodações espaçosas e confortáveis. Tudo isso
parecia algo saído de um conto de fadas.
As
condições de vida dos trabalhadores da fábrica de Chelyabinsk eram difíceis
mesmo antes da guerra — muitos viviam em porões e abrigos. Com o início da
guerra, Chelyabinsk enfrentou uma invasão de refugiados das regiões ocidentais
da Rússia, o que piorou as condições de vida de todos.
Em
dezembro de 1943, a direção da fábrica descobriu que até 300 trabalhadores
dormiam no chão de fábrica, pois não tinham para onde ir. Alguns disseram que
não tinham roupas de inverno; outros, nenhum calçado. Eles não podiam deixar a
fábrica.
Embora
as pessoas estivessem preparadas para aguentar as adversidades da guerra, assim
que o conflito terminou, a paciência se esgotou. Embora felizes com a derrota
da Alemanha nazista, muitos em Chelyabinsk estavam cansados da constante
humilhação de viver na miséria.
Os
três meninos ouviam os adultos reclamarem de acomodações úmidas no porão,
vazamentos nos telhados, sopa feita de urtigas, falta de sabão por quatro anos
e muitos outros problemas. Eles viviam em pobreza extrema e sentiam que tinham
muito pouco a perder.
Eles
estavam cada vez mais irritados com a injustiça que observavam diariamente em
contraste com a propaganda soviética.
Um
dia, em abril de 1946, os meninos arrancaram uma página de um caderno escolar e
escreveram: "Camaradas, trabalhadores, olhem ao seu redor! O governo vinha
atribuindo seus problemas à guerra. Mas a guerra acabou. Suas condições
melhoraram? Não! O que o governo deu a vocês? Nada! Seus filhos estão com fome,
mas vocês estão tendo que ouvir histórias sobre uma infância feliz. Camaradas,
olhem ao redor e percebam o que realmente está acontecendo!"
No
começo, os meninos distribuíam e colavam seus panfletos apenas à noite, mas em
poucos dias eles se tornaram mais ousados e pararam de se preocupar com as
consequências. Eles até conseguiram alguns de seus colegas de classe para
ajudar.
Os
temidos agentes da NKVD — que posteriormente se tornaria a KGB e hoje se chama
FSB — rapidamente souberam da situação e logo descobriram que os panfletos
antigovernamentais eram feitos por crianças em idade escolar.
As
escolas fizeram checagens na caligrafia de cada aluno para identificar os
culpados. As crianças em Chelyabinsk foram obrigadas a escrever palavras como
"camarada" e "infância feliz".
Yevgeny
Gershovich foi o primeiro a ser preso. Depois foi Alexander Polyakov, E no
final de maio de 1946, Mikhail Ulman. Suas famílias ficaram consternadas e
apavoradas.
Os
meninos enfrentaram questionamentos implacáveis por parte dos serviços de
segurança, que tentaram condená-los por simpatia ao nazismo. Os adolescentes
ficaram indignados: como marxistas devotos também podem ser nazistas?
Gershovich
e Polyakov foram julgados em agosto de 1946 e considerados culpados de espalhar
propaganda antissoviética. Eles foram condenados a três anos de prisão juvenil.
Quando
já eram adultos, eles se lembraram daquela época horrenda, cheia de
espancamentos e perseguições por parte de outros jovens internos que estavam
presos por crimes.
Ulman
teve sorte — como não tinha completado 14 anos na época da prisão, escapou
completamente da punição. Seus pais voltaram para Leningrado rapidamente para
ficar longe dos Serviços de Segurança de Chelyabinsk.
Gershovich
e Polyakov também escaparam com relativa facilidade, pois foram soltos no final
de 1946, com suspensão de suas penas.
Talvez
a pouca idade dos meninos os tenha ajudado a escapar de consequências muito
mais duras.
Mas
também é possível que os serviços de segurança e os juízes tenham ficado surpresos
com a seriedade dos jovens rebeldes que, apesar de viverem em um dos regimes
mais totalitários da história, acreditaram que poderiam protestar contra a
injustiça social e obrigar o governo a melhorar a vida dos trabalhadores.
Já
adultos, tanto Ulman quanto Polyakov emigraram para Israel, onde este ainda
mora com sua esposa. Foi onde a BBC conseguiu falar com ele.
Yevgeny
Gershovich foi preso novamente no final dos anos 1940, logo depois de ser
expulso da universidade, acusado de ter tendências antissoviéticas.
Ele
foi condenado a dez anos de prisão, mas foi libertado logo após a morte de
Stalin, junto com milhões de outras vítimas da repressão. Ele morreu na década
de 2010.
A fábrica secreta de veneno da KGB para
'liquidar' inimigos da URSS
Segundo
alguns relatos, tudo começou quando, depois de sofrer um AVC em 1922, o líder
da União Soviética, Vladimir Lenin, pediu ao seu sucessor, Josef Stalin, que
desse a ele cianureto para cometer suicídio. E Stalin negou.
Outros
garantem que foi depois que um revolucionário socialista disparou contra Lenin
em 1918. Seus médicos determinaram que as balas haviam sido recobertas com uma
resina venenosa, curare, o que gerou intrigas.
Mas
as diversas fontes concordam que, por ordem de Lenin, foi criada, no início da década
de 1920, uma fábrica de venenos do Kremlin.
Essa
instituição de pesquisa dos soviéticos inventou novos métodos de envenenamento
dos inimigos do Estado sem deixar rastros.
Ela
começou como um segredo da Tcheka — a primeira organização de inteligência
política e militar da União Soviética — e seu objetivo era "suprimir e
liquidar" qualquer ato "contrarrevolucionário" ou oposto à linha
política do país.
Assim
como ocorreu com os serviços secretos soviéticos, o nome da fábrica de venenos
também foi mudando com o passar do tempo. Originalmente, ela se chamava Sala
Especial, depois Laboratório n° 1, Laboratório X e Laboratório n° 12, até que
ficou conhecida simplesmente como Kamera, ou "a Câmara", sob o poder
de Stalin.
Embora
ainda paire um ar de mistério sobre a fábrica, alguns detalhes das suas
operações secretas foram revelados depois do colapso da União Soviética,
confirmando o que dissidentes haviam revelado anteriormente.
• Arma discreta e eficaz
O
veneno como arma política é uma tradição antiga. Não é à toa que, ao longo da
história, servidores foram encarregados de provar os alimentos dos poderosos
antes das refeições.
Naturalmente,
os soviéticos não foram os únicos a usar esse artifício e não serão os últimos.
Em 1960, a CIA tentou assassinar o líder cubano Fidel Castro com charutos
contaminados com toxina botulínica.
Quando
o assunto é matar uma pessoa específica, venenos mortais e eficazes podem ser
muito discretos.
Um
dos objetivos da Kamera era fornecer venenos inodoros, insípidos e que não
pudessem ser detectados em autópsias — características demonstradas por algumas
das inovações desenvolvidas por aquele laboratório.
Uma
de suas vítimas foi um emigrante da URSS, o escritor antissoviético Lev Rebet,
morto em 1957. Acreditava-se que sua morte teria sido causada por um ataque
cardíaco, até que o assassino da KGB desertou quatro anos depois e contou que
havia lançado uma nuvem de gás venenoso de uma ampola de cianureto triturado no
rosto de Rebet, ao encontrar com ele em uma escada em Munique, na então chamada
Alemanha Ocidental.
Houve
um outro político que foi assassinado por uma substância esfregada na sua
lâmpada de leitura. O calor da lâmpada fez com que ela se dispersasse pelo
quarto, sem deixar rastros.
Os
agentes da KGB usavam também fluoreto de sódio, que, em certas doses, é letal e
de difícil identificação como causa de morte — o que se deve ao seu uso mais
comum, que é prevenir a cárie dental. Muitas pessoas já têm essa substância na
sua corrente sanguínea.
Irradiações
do elemento tálio também eram usadas por motivo similar. Os médicos conseguiam
reconhecer os sintomas do envenenamento com tálio, que costumava ser usado em
veneno para ratos.
Mas
eles tratavam dos pacientes sem saber que, na verdade, eles estavam morrendo
por exposição à radiação. Quando era realizada a autópsia, o tálio havia se
desintegrado, sem deixar provas físicas do envenenamento.
Mas,
até quando é detectado, o veneno protege o anonimato do assassino, já que o uso
de uma arma invisível em um homicídio, observada apenas por toxicólogos, fica
sujeito a explicações alternativas.
Enquanto
um assassinato a tiros dificilmente pode ser confundido com um suicídio, a
intoxicação frequentemente deixa aberta essa e outras possibilidades, que os
próprios autores podem explorar a seu favor.
E,
se a operação for cuidadosamente planejada e executada por agentes experientes,
a culpa não pode ser definida de forma contundente na grande maioria dos casos.
Por
outro lado, o veneno pode servir também de lição ou advertência para outras
pessoas sobre o que as espera se cruzarem uma determinada linha.
Algumas
misturas químicas podem causar a morte rápida e sem suspeitas, enquanto outras
podem causar mortes horríveis e agonizantes, atormentando seus entes queridos,
que acompanham o horror de ver as vítimas sucumbirem de forma lenta e dolorosa.
• Experimentos em seres humanos
Uma
das primeiras menções da existência do laboratório de venenos chegou ao
Ocidente em seis baús de anotações feitas secretamente à mão por Vasili
Mitrokhin, ao longo dos 30 anos em que trabalhou como arquivista da KGB, no
serviço de inteligência exterior e na Primeira Direção Geral.
E
diversos ex-oficiais de inteligência soviéticos, aposentados e desertores,
forneceram mais informações sobre as instalações ultrassecretas ao longo dos
anos.
Mas
talvez o mais perturbador foi a publicação das memórias de Pavel Sudoplatov,
ex-chefe de espionagem de Stalin, que escreveu sobre o laboratório e seu
diretor, o professor Grigory Mairanovsky.
No
livro Operações Especiais, de 1994, Sudoplatov revelou que Mairanovsky injetava
veneno nas pessoas, simulando verificações médicas de rotina.
Obedecendo
às ordens do general Vasili Blokhin, supervisor do laboratório e principal
carrasco do chefe da polícia secreta de Stalin, Lavrenti Beria, ele também
testou os produtos da Kamera em prisioneiros dos campos de trabalhos forçados
do sistema Gulag. Esses produtos incluíam gás mostarda, ricina, digitoxina,
curare, cianureto e muitos outros.
As
vítimas incluíram Raoul Wallenberg, diplomata sueco que morreu misteriosamente
sob custódia soviética, bem como nacionalistas ucranianos e possíveis
desertores. O próprio Sudoplatov foi encarregado de encobrir a operação
posteriormente.
Especialistas
indicam que, no apogeu da Guerra Fria, surgiu um padrão claro de uso, pelos
soviéticos, de agentes nervosos e armas químicas contra rivais políticos,
dissidentes, desertores, exilados e líderes de movimentos separatistas nas
repúblicas soviéticas.
Foram
"literalmente" incontáveis as quantidades de pessoas que tiveram esse
destino, segundo Boris Volodarsky, veterano do serviço de inteligência militar
russo e autor do livro The KGB's Poison Factory ("A fábrica de veneno da
KGB", em tradução livre). Em artigo para o jornal norte-americano The Wall
Street Journal, ele perguntou: "Quem pode contar as vítimas do veneno se
nenhum veneno é detectado?"
Sabe-se
que a KGB seguiu silenciando seus inimigos durante o último período soviético.
O general da KGB Oleg Kalugin admitiu que os soviéticos participaram do complô
para assassinar o jornalista Georgi Markov, do Serviço Búlgaro da BBC, em 1978.
A
Kamera produzia ricina em pequenos grânulos, especialmente projetados para
serem injetados sem que fossem detectados e sem gerar mais dor que uma picada
de inseto, provocando a morte sem deixar rastros. Os búlgaros colocaram o
veneno na ponta de um guarda-chuva e levaram a cabo a operação.
Mas
o que não se sabe com certeza até hoje é se a fábrica de venenos da União
Soviética realmente foi fechada, ou se ainda existe uma versão desse laboratório
em algum lugar da Rússia.
Fonte:
BBC News Mundo
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