O que é a parentalidade positiva, corrente que defende a criação 'firme e gentil' das crianças
De
forma geral, especialistas apontam haver três abordagens educacionais que
podemos praticar dentro de casa.
A
primeira é baseada na rigidez. As crianças não são envolvidas no processo de
decisão, e quem manda é o adulto: "Estas são as regras e essa é a punição
que você vai receber se as violar". Já na permissividade, não há regras
nem limites — e quem manda é a criança.
Mas
existe uma abordagem que é uma espécie de caminho do meio entre as duas pontas
deste espectro: a parentalidade positiva, que rejeita tanto a punição quanto a
permissividade e pressupõe que a criança pode ter um grau de autonomia e
participar da tomada de algumas decisões, dentro do que é adequado para sua
idade, do contexto familiar e de limites respeitosos.
Nesta
terceira via, o adulto continua sendo o responsável, mas em uma relação com
mais comunicação, respeito e valorização dos sentimentos — mesmo na hora de
dizer "não" para as crianças.
A
educadora Lua Barros, que estuda parentalidade positiva, define essa corrente
como o pensamento sobre as relações entre pais e filhos nesta "nova
sociedade em que vivemos". "Precisamos fazer que os pais entendam as
crianças como indivíduos e tenham respeito mútuo", diz ela.
"E
o afeto conduz todas as nossas ações. Quando nos regemos pelo afeto, tiramos
qualquer ponto de violência na relação. Conduzir o comportamento da criança com
firmeza, respeito é colocar essa autoridade sem autoritarismo."
• Sem violência
A
ideia é, também, que bater ou castigar as crianças não as ensinará a lidar com
os próprios sentimentos ou para terem comportamentos adequados, apenas as
educará para terem medo da reação do adulto.
Em
junho deste ano, a França se tornou o 56º país a proibir legalmente o castigo
físico em crianças. O primeiro, em 1979, foi a Suécia. No Brasil, a lei
antipalmada é de 2014.
A
ciência antropológica mostra que os nossos ancestrais, ao contrário do que se
acredita, não eram violentos com sua prole, praticavam muito contato físico,
eram disponíveis e viviam em ambientes cooperativos.
"Quando
deixamos de ser caçadores-coletores e passamos a ser agricultores, lentamente
construímos uma cultura de submissão, controle e busca de obediência da
infância", afirma a psicóloga Márcia Tosin, especialista em comportamento
infantil.
As
informações científicas que baseiam a educação e a criação infantil também
evoluíram muito nas últimas décadas, quando descobrimos mais sobre o cérebro humano
do que nos últimos 5 mil anos.
Uma
das descobertas é de que o cérebro cresce até os 23 anos de idade, ou seja, até
lá ainda não está totalmente maduro. E hoje sabemos que existe
neuroplasticidade, que é a capacidade de o cérebro se adaptar a mudanças por
meio do sistema nervoso.
O
organismo e o desempenho futuro de uma criança (na vida social e profissional)
são altamente influenciados pelas experiências iniciais de vida. E um ambiente
com baixo estresse e estímulos positivos leva a um bom desenvolvimento não
apenas mental, mas físico também.
Tosin
afirma que uma criação respeitosa fará com que as crianças, ao longo da vida,
não aceitem outra coisa que não viver sob o respeito.
"Há
duas décadas, escuto pelo menos uma vez por semana alguém me falando durante um
atendimento psicológico: 'Não consigo amar minha mãe (ou meu pai) por mais que
tente, não sinto nada por ela (ele)'. Isso é realmente devastador, porque esses
pais se centraram em um modelo de obediência de regras, entendendo que o
carinho poderia danificar seus filhos, sem saber que a moralidade acontece
através da fundação de uma relação."
• Como agir, na prática?
Um
primeiro entendimento importante, para pais que estejam buscando esse
"caminho do meio", é que o mau comportamento — birra ou coisas do
gênero — é uma forma de comunicação da criança. Na maior parte das vezes, ele
não é pessoal, ou seja, a criança não está fazendo isso para atingir o adulto,
mas porque ela não tem outros recursos emocionais naquele momento.
A
educadora parental Lia Vasconcelos alerta com exemplos como a parentalidade
positiva pode ajudar nesse dilema: "O primeiro ponto é olharmos para nós
mesmos para tentarmos entender o que pode ter causado o estresse. Pode ser
sono, cansaço, fome, nervosismo, insegurança?".
Um
jeito de tratar a birra, segundo Lia Vasconcelos, é limitar a energia dada a
ela. "É preciso dizer não com firmeza e gentileza e isso pode ser por meio
da validação do sentimento: 'Estou vendo que você está nervoso. Também estou
cansada de ficar aqui parada. Vamos brincar de alguma coisa? Jogo da velha ou
forca?'."
De
acordo com a educadora, pode ser também por meio de escolhas limitadas, dentro
de limites considerados razoáveis pelo adulto. Se a cena for em um
supermercado, por exemplo, e a criança "quer porque quer" algo que os
pais não querem comprar, é possível dizer: "Vejo que você está com muita
vontade de comer essa bolacha. Ela parece mesmo muito apetitosa. Que tal
escolhermos um lanche mais saudável?". O segredo também está em distrair a
criança, dando uma função a ela.
Mas
e quando a birra passa dos limites e vira aquelas cenas de filme de terror? É
importante, antes de tomar qualquer decisão, entender como o cérebro funciona.
Ele
está dividido em quatro grandes zonas: o hemisfério direito do cérebro é imaginativo.
Já o hemisfério esquerdo do cérebro é o lado racional e lógico — ali está a
noção de tempo. O andar de baixo é o cérebro primitivo, a sede das emoções. O
andar de cima é a localização do juízo e de todos os componentes do cérebro
racional. Funciona como um filtro para as emoções.
"Quando
uma birra do andar de baixo acontece significa que ali há muita energia e são
aquelas birras em que a criança fica fora de si. E aí, não vale a pena gastar o
seu latim porque a criança não tem capacidade nos escutar", afirma a
autora portuguesa Magda Gomes Dias no livro Crianças Felizes.
"A
melhor abordagem nesse caso é acalmar a criança, pegando-a no colo e levando-a
para outro lugar. Muitas vezes isso já é suficiente. Em seguida, abrace-a,
mesmo que seja a última coisa que queira fazer. Peça para a criança respirar
fundo e diga-lhe que vai passar. Diga isso de uma forma calma, firme, generosa
e carinhosa. É o carinho no tom de voz que vai ajudar a criança a se acalmar.
Recapitule com a criança o que aconteceu e deixe a correção para um segundo
momento. Importante corrigir o comportamento, não apontar a criança como
má", prossegue a autora.
Já
quando uma birra do andar de cima acontece, em que a criança está calma o
suficiente para entender, a recomendação das especialistas é não negociar. É
possível acolher os sentimentos de frustração das crianças ("entendo que
você quer muito esse brinquedo, mas hoje não vamos comprar infelizmente. Vamos
pensar em outra brincadeira?"), mas sem ceder, dentro dos limites
definidos pelo adulto.
• 'Me cansei de quem eu estava me
tornando'
Tanto
Lia Vasconcelos como Lua Barros se tornaram educadoras parentais por se
sentirem mães muito aquém do que poderiam ser. "Minha busca por esse
modelo foi depois que me enxerguei uma mãe muito autoritária, que só gritava
com as crianças, que não tinha admiração por elas", conta Barros.
"Fui
me cansando de quem eu estava me tornando. Ser mãe sempre foi muito prazeroso,
até que deixou de ser. Com três filhos, as coisas saíram do controle. Fui
buscar orientação, informação. Tinha três filhos, estava grávida do quarto e
não tinha lido nenhum livro sobre como o cérebro da criança se
desenvolve."
Barros
passou a enxergar as crianças como seres humanos em desenvolvimento e que podem
crescer melhor, mais fortes, mais saudáveis, dependendo da interação com elas.
"Hoje,
escuto tudo o que os meus filhos têm pra dizer. Isso não significa que atendo
tudo. Eu os ensino a se colocarem diante do desejo deles. Sou responsável por
aquilo que sinto e não sou ingênua de achar que isso é a tábua da salvação do
mundo. Mas, ao mesmo tempo, precisamos ter mais adultos equilibrados
emocionalmente para a geração futura ter a possibilidade de criar pessoas mais
equilibradas também."
• Telas x crianças
Para
Lua Barros, a ideia de "nessa nova sociedade em que vivemos" engloba,
também, o mundo digital. A TV ou o celular acabam sendo, algumas vezes, as
"babás" em que pais sobrecarregados se apoiam para dar conta da
rotina com filhos, mas é preciso lembrar que o espaço virtual também exige
supervisão.
"Você
não deixa seu filho sozinho na Praça da Sé. Porque deixaria na internet? Não
faz sentido. A internet é um lugar onde tudo acontece", diz Barros.
Em
abril deste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou suas
recomendações sobre uso de aparelhos eletrônicos para crianças de até 5 anos.
De
acordo com a entidade, crianças de até 5 anos não devem passar mais de 60
minutos por dia em atividades passivas diante de uma tela de celular,
computador ou TV. Bebês com menos de 12 meses de vida não devem passar nem um
minuto na frente de dispositivos eletrônicos. "Muito melhor que proibir os
eletrônicos é criar estratégias para que eles se tornem desinteressantes",
opina Tosin.
"As
crianças, quando estão na frente da TV, por exemplo, em cinco minutos começam a
se escorregar no sofá, ficam de cabeça para baixo ou jogam almofadas. A criança
sente desejo pelo movimento, e a sociedade precisa se organizar para trazer
novamente a convivência com outras crianças, bem como dinamismo, mobilidade e
animação de forma segura."
A
Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que a criança brinque ao ar livre
diariamente.
Essa
é uma das premissas que o pediatra e sanitarista Daniel Becker, professor do
Instituto de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro, aplica
em suas palestras e atendimentos.
"Vivemos
uma desvalorização do brincar e do convívio ao ar livre. Uma 'adultização' da
criança. Vários estudos comprovam que o brincar evita diversos comportamentos
depressivos e até suicídios no futuro. A criação não pode ser autoritária, nem
violenta, nem permissiva demais. É importante fazer com que a criança
desenvolva uma consciência emocional", diz Becker.
O
jornalista americano Richard Louv, autor do livro A Última Criança na Natureza,
cunhou o termo Transtorno do Déficit de Natureza para descrever o fenômeno
bastante contemporâneo que é a falta de acesso a espaços livres e naturais, que
permitam o livre brincar e o contato com a natureza.
Vasconcelos
acredita que o transtorno acomete crianças e adultos e está intimamente ligado
ao crescimento do uso de aparelhos eletrônicos. "Diante desse quadro, que
também provoca sedentarismo e obesidade, acredito que as palavras que me
ocorrem quando penso na relação de crianças com eletrônicos é bom senso,
equilíbrio e acompanhamento."
Fonte:
BBC News Brasil
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