quarta-feira, 29 de março de 2023

O que é o STF e como difere de outros tribunais pelo mundo

São 11 membros, chamados de ministros, com cargos vitalícios. Pelas suas mãos passam decisões importantes do país, do papel chamado de guardião da Constituição até o julgamento de casos em última instância, passando pelo julgamento penal daqueles com foro privilegiado – ou seja, políticos eleitos.

Supremo Tribunal Federal (STF), em tempos de polarização política exacerbada, vem sendo alvo de críticas e protestos. Mas, na prática, os discursos populares de quem chega a pedir o "fechamento do STF" carecem de entendimento de como o órgão funciona na República.

"O STF ganhou muita visibilidade porque o Brasil viveu momentos muito conturbados política e economicamente, com temas ganhando repercussão significativa na mídia", analisa o jurista Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). "Acredito que desde o impeachment da [ex-presidente] Dilma [Rousseff, em 2016], o protagonismo [do órgão] tenha aumentado. Algo que já vinha desde o Mensalão e da Lava Jato."

Um exemplo recente foram os próprios atos golpistas de 8 de janeiro, quando vândalos depredaram as sedes dos três poderes em Brasília e clamaram por um golpe de Estado. O STF empenhou-se em julgar e punir os golpistas. Em meados de março, a análise dos que foram detidos no ato se encerrou, e o tribunal determinou que 294 pessoas continuarão presas.

"O Supremo Tribunal Federal é a cúpula do Poder Judiciário, considerada a última instância recursal, mas também exerce o papel de corte constitucional, ou seja, de guardião da Constituição", explica a jurista Michelle Asato Junqueira, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Isso significa que é o responsável por dar a última palavra nas questões que envolvem a interpretação da Constituição."

É o que se convencionou chamar de "guardião da Constituição". E, nesse sentido, entendem alguns especialistas, está também a importância de que o cargo seja vitalício.

"Não creio que afronte [a democracia] essa ideia da vitaliciedade", afirma o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito. "Eles [os ministros] não estão ali para representar a vontade do povo. Têm uma missão contramajoritária."

Sundfeld explica que cabe aos membros do STF "fazer com que os valores fundamentais, constitucionais, prevaleçam". "Apesar das características de cada momento histórico e das tendências do eleitorado", pontua. "Os juízes da corte constitucional não estão lá para representar ninguém. Estão lá para fazer, de maneira isenta e equilibrada, aquele trabalho de interpretar a Constituição e fazer com que ela seja cumprida."

·         História

Nem sempre foi assim no Brasil e não é assim em todo o mundo. O STF é herdeiro da chamada Casa da Suplicação do Reino Português, uma corte jurídica trazida para a então colônia quando ocorreu a transferência da família real para o Rio de Janeiro, em 1808.

Na época, era um tribunal de última instância que atendia a todo o reino português. "Com a Independência, em 1822, a Constituição [de 1824] instituiu a criação de uma esfera superior jurídica, então chamada de Supremo Tribunal de Justiça", relata o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre o período.

De acordo com os pesquisadores, os membros dessa corte eram escolhidos dentre os juízes de segunda instância. Não eram chamados de ministros, mas de conselheiros. Mas ao órgão cabia a análise técnica de casos em que ainda não havia consenso nos tribunais inferiores.

"O papel de guardião da Constituição, na época, cabia ao chamado poder moderador, que era exercido pelo imperador", diz Rezzutti.

Em 1890, logo após a proclamação da República, ocorrida em novembro de 1889, a mais alta corte foi renomeada com o nome atual. E passou a assumir funções mais semelhantes às de hoje. "Aqueles que eram os conselheiros viraram ministros. E nessa passagem, além de ser o tribunal superior da justiça, passou também a ser o controlador da constitucionalidade das leis. E, com o tempo, sua missão foi se ampliando", explica Sundfeld.

·         Em outros países

A inspiração foi o modelo americano. Conforme pontua a jurista Junqueira, é dos Estados Unidos que veio a ideia de que a indicação seja feita pelo presidente da República, com aprovação pelo Senado. E que o cargo fosse vitalício.

Há variações pelo mundo. Na Alemanha, por exemplo, o Tribunal Constitucional Federal é formado por 16 integrantes – metade escolhida pelo Bundestag (Parlamento alemão), metade pelo Bundesrat (Conselho Federal, com representantes dos estados). Os eleitos assumem um mandato de 12 anos, sem direito a reeleição.

Na França, o mandato é de nove anos. Aos nove membros eleitos – a cada três anos, um terço da casa é renovada – somam-se os ex-presidentes da República, em cargos vitalícios. Mas estes gozam de papel mais simbólico e raramente participam das discussões.

Em Portugal, os 13 juízes têm mandato de dez anos. Cabe à Assembleia da República (Parlamento) a eleição de dez deles. Os demais são escolhidos pela própria corte, chamada de Tribunal Constitucional.

·         Politização e controle

Mexer com o STF é sempre um ponto delicado, porque uma alteração nas regras do jogo pode influenciar na própria democracia. No best-seller Como as democracias morrem, os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mostram que interferir nas instituições de controle costuma ser um estratagema de governos autoritários pelo mundo.

No Brasil isso aconteceu na ditadura militar. Em 1965, para diluir o poder daqueles que haviam sido indicados por governos democráticos, o número de assentos saltou de 11 para 16. E com o Ato Institucional número 5, em 1969, três ministros foram compulsoriamente aposentados pelo regime.

Como o cargo é vitalício, até mesmo discussões sobre aposentadoria podem ter implicancia. Quando foi aprovada a chamada PEC da Bengala, em 2015, a então presidente Dilma Rousseff viu diminuída as suas possibilidades de indicação de nomes para o STF, já que a idade para a aposentadoria saltou de 70 para 75 anos.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, a tentativa de controle foi em sentido contrário. Aliada dele, a deputada federal Bia Kicis propôs revogar a PEC, para que a aposentadoria voltasse aos 70 anos – favorecendo assim Bolsonaro, que, em caso de aprovação da redução da idade, poderia indicar mais dois nomes antes do fim de seu mandato.

As nomeações também sempre suscitam críticas. Quando estava na Presidência, Bolsonaro costumava falar, em tons de provocação, que colocaria um ministro "terrivelmente evangélico" na casa, de olho nas chamadas pautas de cunho moral que passam pela corte. Em 2021, foi nomeado André Mendonça, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro.

Agora, a discussão da vez tem no centro o nome de Cristiano Zanin Martins, cotado para ser o primeiro indicado do governo vigente. Ele é amigo e advogado do atual mandatário, Luiz Inácio Lula da Silva.

Contudo, mesmo a indicação partindo do presidente da República, há um arcabouço constitucional que, em tese, protege o STF de abusos autoritários. Porque o nome apresentado não é automaticamente aceito. "[O candidato] é sabatinado pelo Senado, sendo que é necessário ser aprovado por maioria absoluta para que, de fato, se torne ministro", explica Crespo.

 

·         "Proximidade entre Lula e indicado ao STF não é demérito", diz ex-ministro

 

Em maio, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), irá se aposentar, abrindo espaço para a primeira indicação à corte no atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Um dos cotados para essa primeira vaga é Cristiano Zanin, de 47 anos, advogado de Lula em seus processos no âmbito da Operação Lava Jato. Uma segunda vaga também será aberta em outubro, com a aposentadoria da atual presidente do STF, Rosa Weber.

A proximidade dessas indicações tem sido tema de conversas no meio jurídico, e o nome de Zanin divide opiniões. Ministro do STF de 2003 a 2012 e presidente do tribunal de 2010 a 2012, Cezar Peluso diz em entrevista à DW que uma eventual indicação do advogado do presidente para uma vaga na corte não é demeritória, mas projeta que o petista pode vir a sofrer desgaste político se isso ocorrer.

"Vai atrair críticas para sua gestão, ainda que o presidente tenha liberdade para fazer essas indicações", diz Peluso, que foi indicado ao Supremo no primeiro mandato de Lula. O nome indicado pelo presidente da República precisa ser sabatinado e aprovado pelo Senado para assumir a vaga.

Ele avalia ainda que as futuras indicações à corte não deverão contribuir para a formação de correntes ideológicas, como existem na Suprema Corte dos EUA, onde indicados por presidentes democratas e republicanos têm posições claramente antagônicas. Isso teria ocorrido, porém, se Jair Bolsonaro tivesse sido reeleito, diz Peluso.

"Bolsonaro tentou reproduzir a lógica norte-americana com as escolhas de Kássio Nunes e André Mendonça, que são dois juízes declaradamente conservadores e que fazem uma oposição residual aos outro nove ministros da corte", afirma.

O ex-ministro também analisou decisões recentes de Alexandre de Moraes envolvendo os atos golpistas do 8 de Janeiro, como o afastamento do governador do DF, Ibaneis Rocha, e a transferência das investigações de atos cometidos por militares da Justiça Militar para o Supremo, a pedido da Polícia Federal.

"Se estivéssemos em um clima de ambiente político institucional absolutamente normal, eu diria que algumas decisões do Supremo, e não apenas do ministro Alexandre de Moraes, poderiam ser questionadas. Não sabíamos o que poderia ter acontecido com a democracia brasileira, para além do ato abominável do 8 de Janeiro, se o ministro Alexandre de Moraes não tivesse feito o que fez."

LEIA A ENTREVISTA:

·         O presidente Lula fará duas indicações ao Supremo em 2023. A primeira em maio, com a saída de Ricardo Lewandowski, e outra em outubro, na vaga de Rosa Weber. Qual é o peso dessas duas escolhas para o futuro do Supremo?

Cezar Peluso: Acredito que duas nomeações não são suficientes para redefinir o pensamento da corte. São importantes, na medida em que o presidente da República possa nomear dois juízes à altura das exigências do Supremo. Mas, em termos de mudança de direção geral da corte, não creio que neste momento seja decisivo.

Não há dentro do Supremo atual um perfil ideológico definido, nem mesmo grupos que atuem para essa ou aquela ideologia, como acontece nos EUA, onde há um antagonismo tradicional entre republicanos e democratas. Os ministros que compõem o STF atualmente ora votam em algumas matérias de maneira mais liberal, às vezes de modo mais conservador. Olhando de fora, porque já não estou mais inserido no dia a dia do tribunal, me parece que Bolsonaro tentou reproduzir a lógica norte-americana com as escolhas de Kássio Nunes e André Mendonça, que são dois juízes declaradamente conservadores e que fazem uma oposição residual aos outro nove ministros da corte.

·         Entre os nomes cotados para uma das vagas está o de Cristiano Zanin, advogado de Lula nos últimos anos. A proximidade de ambos é um problema em uma eventual indicação? Isso pesa na escolha?

Na verdade, no primeiro mandato do presidente Lula, foi ao contrário. Nunca tive nenhuma relação com o Lula e fui nomeado por ele. A minha nomeação foi influenciada mais pelo então ministro da Justiça, o Márcio Thomaz Bastos. Jamais tive qualquer proximidade com o presidente ou com o Partido dos Trabalhadores. Isso também foi reproduzido em outras escolhas de Lula para o STF, os ministros Ayres Britto e Joaquim Barbosa.

Por outro lado, é preciso ressaltar que a proximidade entre o indicado e o presidente da República não é um demérito. O Celso de Mello [ex-ministro aposentado em outubro de 2020] foi indicado quando estava no gabinete do então ministro da Justiça, Saulo Ramos. Ele não era amigo íntimo, mas o Sarney conhecia o trabalho do Celso de Mello. O caso do Zanin não é inédito, mas pelo que tenho visto é que a nomeação dele [Zanin] seria em decorrência da sua atuação na Lava Jato e na época mais difícil do Lula.

·         Essa proximidade é um problema?

Para mim, não. Mas para o presidente pode ser um problema político. Ele pode, com essa nomeação, atrair muitas críticas para a sua gestão, ainda que o presidente tenha liberdade para fazer essas indicações. Está na lei. Nos EUA, os democratas estão ferozes com as indicações do Trump. Faz parte.

·         A política tem peso maior do que critérios técnicos na escolha de um ministro do STF? Há como melhorar ou torná-lo mais transparente?

Há um exagero aí, não é assim. Não é um sistema de escolha perfeito, mas também não o considero ruim. Um dos problemas está no fato de o Senado não exercer com rigidez o controle das indicações. E defendo algo semelhante ao que acontece na Argentina, quando o escolhido pelo presidente é levado ao escrutínio público [um decreto presidencial de 2003 determina que o candidato seja entrevistado em programas de televisão e tenha o currículo analisado pela sociedade civil]. Isso também é uma forma de controle social que pode ser benéfico aqui no Brasil. Mas o principal é o Senado, que muitas vezes parece não estar preocupado em realizar uma sabatina que de fato examine as qualidades do indicado.

·         Como o senhor analisa a situação do Supremo pós-governo Bolsonaro e a diminuição do acirramento entre Executivo e Judiciário?

O Supremo foi muito atacado nos últimos quatro anos. Não só atacado, como desprestigiado. Foram ataques organizados e orquestrados pelo ex-presidente da República, por ministros, e isso influiu na imagem do STF. Evidentemente, as pessoas que atacavam o Supremo continuam aí e elas não vão deixar de existir. O que me parece é que as condições político-institucionais que ajudavam a atacar o Supremo desapareceram.

Assim, a atuação da corte fica um pouco mais resguardada, as decisões ficam menos reativas e distantes de uma suposta ortodoxia decorrente de momentos extremos. Tudo indica que esse acirramento não deve ressurgir. O que pode acontecer, e isso faz da dinâmica da democracia, é que o Executivo ou o Legislativo podem não ficar contentes com essa ou aquela decisão. Mas é uma insatisfação longe do que vimos nos últimos anos.

·         Qual a sua opinião sobre mandatos com tempo estipulado?

Não tenho nada contra e não vejo problema no debate. Há um fato objetivo, tirando a tendência norte-americana onde há vitaliciedade de fato, de que os ministros das Supremas Cortes têm mandatos. Isso acontece em Portugal, na Espanha, Alemanha... Às vezes, sete, oito ou nove anos para exercer o mandato específico. Acho a discussão válida. Eu, por exemplo, fiquei no STF por nove anos e fiz o que podia fazer dentro das minhas limitações. Pode ser algo razoável para pensarmos na constituição da corte.

·         Como ex-ministro, qual a avaliação do senhor sobre a atuação do ministro Alexandre Moraes e as críticas que ele recebe por algumas de suas decisões, como o afastamento do governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), após os atos golpistas de 8 de janeiro?

Precisamos distinguir algumas coisas. Se estivéssemos em um clima de ambiente político institucional absolutamente normal, eu diria que algumas decisões do Supremo, e não apenas do ministro Alexandre de Moraes, poderiam ser questionadas. Um exemplo é o famoso inquérito das fake news aberto pelo Dias Toffoli [em março de 2020, Toffoli abriu inquérito sem ser provocado pela Procuradoria-Geral da República e entregou a relatoria das investigações a Alexandre de Moraes. Posteriormente, em junho do mesmo ano, a corte julgou a abertura do inquérito legal].

Em um quadro normal, uma atitude como essa a crítica seria geral. E eu concordo que isso extravasa um pouco os limites do Supremo. Mas a situação era de ameaças dos mais variados tipos, então houve uma excepcionalidade justificada pelos atos em si. Não sabíamos o que poderia ter acontecido com a democracia brasileira, para além do ato abominável do 8 de janeiro, se o ministro Alexandre de Moraes não tivesse feito o que fez.

·         Moraes, inclusive, tirou da Justiça Militar as investigações de membros das Forças Armadas envolvidos nos atos do 8 de Janeiro, a pedido da Polícia Federal. Segundo coluna do jornal O Globo, o gesto foi visto como afronta pelos militares. Como vê a relação do Supremo com as Forças Armadas a partir de agora?

Não vejo com preocupação. Isso faz parte do nosso quadro constitucional. É função do Supremo definir a interpretação da lei e da Constituição. Instituições privadas e públicas, como o Exército, podem divergir. Mas a crítica é permitida no sistema democrático. E só. O Supremo não pode abdicar do poder que ele tem.

Essa decisão isolada do Alexandre de Moraes, que ainda não foi avaliada em plenário, faz uma distinção que tem fundamento. A competência da Justiça Militar é para julgar crimes militares, e não para julgar crimes que não são militares supostamente praticados por militares. É isso que ele quer dizer e está correto. Se um militar mata a sua esposa esse crime não deve ser julgado pela Justiça Militar. É preciso ter sensatez para analisar se a reação não é meramente corporativa ou se há algum embasamento jurídico. E o fato de ir para o STF, em tese, não significa nada de especial. Ou quer dizer que o Supremo é mais rigoroso que a Justiça Militar? Ou que a Justiça Militar é mais benigna com os seus? No fundo, se for isso, é um argumento triste, porque quer dizer que há uma leniência, algo que não acredito.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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