O dreno financeiro que paralisa o país: a farsa do déficit
“Nosso
sistema financeiro é gigante e disfuncional, pois não atua como criador de
crédito e de financiamento do investimento e do consumo do setor privado; mas
como corretor dos rentistas que vivem às custas do financiamento da dívida
pública.” - Bresser Pereira e outros, 2022.
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O
básico é o seguinte: quando rende mais o rentismo financeiro, ou seja, a
aplicação em títulos e diversos “produtos” financeiros, do que abrir uma
empresa e realizar um investimento produtivo, o dinheiro flui para onde rende
mais: para ganhos improdutivos. Um exemplo: quando o governo eleva a taxa
básica de juros (Selic) para 13,75%, este valor será pago pelo governo, aos
detentores privados dos títulos da dívida pública, basicamente os 10% mais
ricos da sociedade, usando os impostos que pagamos. Ou seja, esses impostos, em
vez de financiarem educação, saúde ou infraestruturas, vão para os grandes
grupos financeiros, que aqui chamamos de “mercados”. O Estado não se endividou
para construir escolas, por exemplo, ou no Bolsa Família: 82% do aumento da
dívida pública resultam de juros acumulados. Sem nenhuma contribuição
produtiva, esses grupos drenam anualmente, só nesta modalidade, cerca de 600
bilhões de reais, ou seja, o equivalente a cerca de 6% do PIB. Esses 6% do PIB podiam se transformar em
investimentos produtivos, mas para que um dono de fortuna vai arriscar no
mercado real, se pode ganhar 13,75% sem risco e sem esforço?
O
endividamento público poderia se justificar se, por exemplo, financiasse um
programa de apoio tecnológico à agricultura familiar: resultaria uma
produtividade mais elevada, mais produto, cujo consumo por sua vez permitiria o
retorno para os produtores, os empresários da cadeia alimentar, e o próprio
Estado no imposto sobre o consumo e diversos pontos do ciclo produtivo
dinamizado. No nosso caso, o fato de 82% do aumento da dívida resultar de juros
acumulados, significa que estamos simplesmente alimentando especuladores
financeiros. Segundo pesquisa de Carlos Luque (et al.) “Desde 1995 o governo
pagou aos detentores da dívida pública o equivalente a 5-7% do PIB ao ano,
muito mais do que o déficit das aposentadorias ou outros itens de gastos objeto
de muita discussão no Congresso e na mídia.”
Um
dreno improdutivo deste porte necessita de uma narrativa: se trataria de
proteger a população da inflação. É uma farsa evidentemente, pois só numa
economia sobreaquecida, que precisa ser esfriada, e, portanto, com inflação por
excesso de demanda, elevar a taxa sobre a dívida pública seria eficiente. O
último ano de crescimento significativo no Brasil foi em 2013, 3,0%. Numa
economia estagnada, transferir mais recursos públicos para grupos financeiros
que reaplicam para obter mais juros, em vez de financiar infraestruturas, por
exemplo, o que dinamizaria a economia, constitui uma apropriação indébita de
recursos públicos. Em 2022 terão sido entre 600 e 700 bilhões drenados. Para
termos uma ordem de grandeza do que este montante significa, lembremos da
batalha parlamentar que foi, em dezembro de 2022, obter no Congresso a
autorização de 145 bilhões, com a PEC da Transição, para enfrentar situações
mais críticas da população. Esse montante representa aproximadamente 1,5% do
PIB.
Outro
dreno é a evasão fiscal. O SINPROFAZ estima que “de 1º de janeiro a 23 de
novembro [2020], o Brasil perdeu R$ 562 bilhões devido a práticas ilícitas para
evitar o pagamento de impostos. São recursos que, se tivessem entrado no caixa
do Governo, poderiam ser revertidos em políticas públicas: em estradas,
construções de escolas, ou como agora, na pandemia, com mais investimentos em
saúde ou ajudando a população mais vulnerável com o auxílio emergencial.” São
7,6% do PIB da época. As pessoas comuns não têm como praticar a evasão, ou
porque são assalariados, e têm desconto na folha, ou porque são consumidores: a
massa da população gasta o essencial com compras e paga os impostos incorporados
no preço. Já temos aqui, somando a dívida pública e evasão, por baixo, um dreno
de 12% do PIB. Lembremos que o Bolsa Família antigo representava 0,5% do PIB.
Os
juros praticados no Brasil, para pessoa física e pessoa jurídica, constituem um
dreno mais amplo. Pesquisa apresentada em manchete do Estado de São Paulo,
apontava que os juros tiravam um trilhão de reais da economia real, em 2016, o
que representava na época 16% do PIB. O relatório Estatísticas monetárias e de
crédito do Banco Central, de janeiro de 2023, apresenta os dados do volume de
crédito privado concedido a pessoas físicas e jurídicas, com um total de 5,3
trilhões, distribuídos em 1,4 trilhão para pessoa jurídica no crédito livre,
pagando juros de 23,1% (seria 3 a 4% na Europa); 1,8 trilhão concedido a
pessoas físicas, com juros de 55,8%; e 2,2 trilhões em crédito direcionado. “A
taxa média de juros das contratações finalizou o ano de 2022 em 29,9% a.a.”
Essa média sobre os 5,3 trilhões concedidos em 2022 daria um dreno da mesma
ordem que o de 2016, cerca de 1,5 trilhão.
As
pessoas em geral têm dificuldade em “materializar” na sua cabeça o que
representa um trilhão e meio de reais. Mas dividido pela população, 215
milhões, é um custo de 7 mil reais para cada um de nós. Daria também para construir
15 milhões de casas populares. Esse volume de juros extraídos de famílias e de
empresas reduz drasticamente o consumo privado e o investimento empresarial,
atingindo também o emprego, e contribuindo para a desindustrialização do país.
Alguma parte disso volta para a economia? Não temos esse dado para o Brasil,
mas o cálculo equivalente nos Estados Unidos, do Roosevelt Institute, é de que
são apenas 10%. Mariana Mazzucato, no caso da Grã-Bretanha, calcula 15%. De
toda forma, trata-se de um gigantesco dreno improdutivo, que gera as fortunas
impressionantes dos bilionários brasileiros que a Forbes apresenta, e também
dos grandes gestores de ativos internacionais.
Esse
rentismo institucionalizado é hoje legal, já que uma emenda constitucional no
início de 2003 retirou da constituição o artigo 192 que tipificava a usura como
crime: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras
remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não
poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite
será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos
termos que a lei determinar.” Lembrando que o princípio geral na Constituição
reza que “o sistema financeiro nacional, [será] estruturado de forma a promover
o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da
coletividade.” Não se trata de generosidade, pois o dinheiro que o banco nos
empresta é nosso, e o dinheiro da dívida pública é dos nossos impostos. As
pessoas também não têm visão clara do que é usura, ou agiotagem. Na França, por
exemplo, a proibição da usura está no código do consumidor, definida como
cobrança de uma taxa de juros que ultrapasse em um terço a taxa média praticada
pelas instituições financeiras no trimestre anterior. O exemplo é que um
empréstimo entre 3 mil e 6 mil euros, em que a taxa de juros média no mercado é
de 7,35% ao ano, não poderá ultrapassa 9,80%. Para um montante acima de 6 mil
euros, em que a taxa média anual é de 3,70%, não poderá ultrapassar 4,93% ao
ano.
Importante
referir que só no Brasil se usa apresentar as taxas de juros no setor privado
como juros mensais. Isso foi herdado da fase da hiperinflação, em que chegamos
a variações mensais tão elevadas que os juros também passaram a ser calculados
ao mês. A hiperinflação foi derrubada em 1994, mas os bancos continuaram a
apresentar a taxa de juros ao mês, o que a torna comparável ao que se cobra no
resto do mundo, só que ao ano. Na Constituição, os 12% de juros reais se
referiam obviamente a juros ao ano, e a taxa Selic, juros interbancários e
sobre a dívida pública, também são calculados como anuais. Um exemplo prático:
o Santander mandou para o meu celular essa oferta que transcrevo textualmente:
“Santander: Ladislas, ótima notícia p/os momentos de sufoco! A taxa de juros do
seu limite da conta caiu p/5.9% a.m., até 31/01/2023.” Não pedi esta oferta,
invadem o meu celular, imagino que chegou a milhões, e que muita gente no
sufoco poderia achar que é realmente uma “ótima notícia” e se enforcar num
empréstimo inicial que nunca vão conseguir saldar. Juros ao mês de 5,9%
equivalem a praticamente 100% ao ano (98,95%). O banco trabalha com
desinformação, pouca gente saberá calcular o juro composto anual.
Não
à toa temos 79% das famílias no Brasil atoladas em dívidas, trabalhando para
pagar juros, e frequentemente apenas alongando a dívida. Cerca de um terço
estão em bancarrota pessoal. Não há controle, o Banco Central é “autônomo”, ou
seja, controlado pelos grupos que deveria regular. A facilidade com a qual os
grupos financeiros se apropriaram da instituição reguladora, tão importante
para que os recursos financeiros sirvam à economia, e não o contrário, lembra
muito a facilidade com a qual conseguiram tirar o artigo 192 da Constituição:
não precisaram de constituinte, apenas se apoiaram nos interesses financeiros
dos deputados e senadores. Lembrando que entre 1997 e 2015, as corporações
foram autorizadas a financiar as campanhas eleitorais; apenas no final de 2015
o STF se deu conta de que o artigo primeiro da Constituição, “todo poder emana
do povo” tinha sido violado, e a autorização foi revogada. Mas o mal já estava
feito. Nos Estados Unidos, onde autorização semelhante foi adotada em 2010, e
segue em vigor, os americanos comentam que “temos o melhor congresso que o
dinheiro pode comprar”. O Banco Central passa a ser um veículo de transferência
de recursos públicos para as elites.
Outro
dreno é representado pelas renúncias fiscais. Segundo informe da Câmara dos
Deputados, “as renúncias de impostos concedidos pela União a parcelas da
sociedade devem chegar a R$456 bilhões em 2023, ou 4,29% do Produto Interno
Bruto (PIB). O total é um pouco superior ao que o governo gasta anualmente com
o pagamento de pessoal.” Aqui também se trata de grupos que utilizam, como
todos nós, recursos públicos (universidades públicas, ruas asfaltadas etc.) mas
que não pagam impostos. Não é propriamente vazamento, é dinheiro que deixa de
entrar. Com uma carga tributária da ordem de 34%, o problema nosso não é de falta
de recursos, e sim de para onde são canalizados, e isso inclui o não pagamento
do imposto devido.
Alguns
drenos são mais escandalosos. Mas de forma geral, o que chamamos de elites, uma
colusão de bilionários nacionais com as grandes corporações transnacionais,
usam o Estado (que criticam) para que drene os próprios recursos do Estado, e
facilite a apropriação improdutiva dos recursos das famílias e das empresas.
Até aqui temos, como ordens de grandeza, e com variações na composição segundo
os anos, 6 a 7% do PIB drenados pela dívida pública, cerca de 6% por evasão
fiscal, cerca de 15% do PIB por juros extorsivos, mais de 4% por renúncias
fiscais. Ou seja, por dreno do que entrou, e por não entrada do que é devido, o
desequilíbrio é da ordem de 30% do PIB. Não à toa a economia está estagnada. Se
o PIB não apresenta números ainda mais fracos, é porque lucros financeiros –
rentismo sem contribuição produtiva – e exportações de bens primários aparecem
como “produção”, apesar de constituírem drenos igualmente.
Desde
1995, lucros e dividendos distribuídos, no Brasil, não pagam impostos. Ou seja,
os 290 bilionários que aparecem na Forbes de 2022 são isentos de impostos, com
a justificativa de que as empresas que possuem já os pagaram. Naturalmente, a
capitalização da empresa e o enriquecimento dos seus acionistas, como pessoas
físicas, são coisas diferentes, mas o resultado é que os muito ricos
simplesmente são isentos. Eu, como professor universitário, pago 27,5%. Com a
aprovação da isenção em 1995, não pagar impostos se tornou legal. No caso do
imposto territorial, o ITR (Imposto Territorial Rural), está vigente a
obrigação, mas o imposto simplesmente não é cobrado, resultado do peso político
do agronegócio, tanto na sua dimensão moderna corporativa como na dos
latifúndios tradicionais herdados do passado. Caberia aqui acrescentar a
grilagem, totalmente ilegal, mas tolerada.
O
mesmo peso político (nacional e internacional) permite que a produção destinada
à exportação não pague impostos. Trata-se da Lei Kandir, de 1996, que isenta de
tributos a produção de bens primários e semielaborados destinados à exportação.
Ou seja, ao mesmo tempo que se procedia à privatização da Vale, por exemplo,
colocando-a nas mãos de acionistas privados nacionais e internacionais, o dreno
de minérios, que constituem uma riqueza natural do país, passa a gerar
dividendos, mas não receitas para o Estado. Exportações primárias, nas suas
diversas dimensões, passam a ter vantagem sobre a produção para o mercado
interno, mas geram poucos empregos, muitos desastres ambientais, e maior
dependência relativamente aos interesses dos gigantes mundiais de intermediação
de commodities. A reprimarização geral da economia que vivemos nos últimos
anos, bem como a desindustrialização do país, estão diretamente ligados a este
marco institucional.
O
caso do petróleo é particularmente instrutivo. O Brasil controla o ciclo
completo do petróleo: a tecnologia, a extração, o refino, a distribuição, a
indústria petroquímica. Mas antes de tudo o petróleo está em território
nacional, é uma riqueza da nação. Países que não têm petróleo são obrigados a
pagar os preços internacionais. Mas o Brasil, que controla o ciclo completo,
não tem nenhuma razão para se submeter às variações de preços internacionais,
que resultam de escolhas políticas de um grupo restrito de corporações. A
privatização, ao colocar o controle das empresas nas mãos de acionistas
nacionais e internacionais, equivale a uma desnacionalização. Os lucros que
anteriormente financiavam reinvestimento na empresa e políticas públicas
financiadas pelos impostos correspondentes, se transformaram em grande parte em
dividendos, eles mesmos isentos de impostos. Trata-se de uma apropriação de
bens públicos, em nome da eficiência e da luta contra a corrupção. A população
que agora paga o dobre pelo botijão de gás ou para encher o tanque do carro
está alimentando acionistas, essencialmente grupos financeiros.
Seria
um desfio importante calcular quanto se perde pelos impostos não pagos, somando
a isenção de lucros e dividendos distribuídos, as perdas que resultam da lei
Kandir, o ITR não aplicado, ou a elevação de preços de derivados do petróleo
que elevam os custos de vida da população e os custos de produção das empresas
– o custo da energia penetra inúmeros setores e multiplica elevações de preços
– sem contribuição produtiva correspondente. Somando os drenos, pelos juros
sobre a dívida pública, a evasão fiscal, a agiotagem bancária, as renúncias
fiscais, a isenção de lucros e dividendos, a isenção de exportações primárias
(lei Kandir), e o não-pagamento do ITR, e mesmo considerando que uma parte dos
ganhos financeiros volta para a economia real, o fato é que o conjunto
inviabiliza a economia do país. Hoje apenas funcionam o setor de exportação
primária e o mercado financeiro.
Os
chamados “mercados” e a direita em geral clama pelo equilíbrio fiscal, ou seja,
limitar os ‘gastos’ com educação, saúde, infraestruturas e semelhantes, na
realidade investimentos nas pessoas e na economia real, enquanto geram
exatamente o déficit ao drenarem os recursos do setor público, das famílias e
das empresas produtivas, em proveito de lucros sobre exportações primárias e
intermediação financeira, que chamam de ‘investimentos’. Afirmar que uma elite
improdutiva desvia 25% da economia real, é hoje uma conta conservadora.
Lembremos que a fase distributiva do país, de 2003 a 2013 (a ofensiva
neoliberal já começou em 2014), assegurou empregos, alimentação e um
crescimento médio de 3,8% ao ano, mesmo com a crise mundial de 2008). O desafio
que temos pela frente, é o de reorientar os nossos recursos para a economia,
real, maior consumo das famílias, maior investimento produtivo das empresas, e
expansão das políticas sociais e infraestruturas por parte do setor público.
Quem paga por isso? É só reduzir moderadamente o dreno dos improdutivos.
Fonte:
Por Ladislau Dowbor, no Jornal GGN
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