Jorge Souto Maior: por trás do escândalo do trabalho escravo está o escândalo da terceirização
As notícias dos últimos dias fizeram o Brasil discutir as implicações do trabalho escravo contemporâneo. Mais de 200 pessoas foram resgatadas em situação análoga à escravidão trabalhando nas colheitas de uva das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, no Rio Grande do Sul. Em São Paulo, outras 32 pessoas resgatadas de uma fazenda que fornece cana para o açúcar Caravelas, da Colombo Agroindústria S/A, conforme revelou o Brasil de Fato com exclusividade.
Em
comum nos dois casos, empresas tentam se eximir de responsabilidade e culpam
terceirizadas contratadas para fornecer mão-de-obra.
Buscando
entender como esse fatos recentes se relacionam com a história do trabalho no
Brasil, com a herança de quatro séculos de escravagismo e também com as últimas
reformas nas leis trabalhistas do país, o Brasil de Fato entrevistou o jurista
Jorge Luiz Souto Maior, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15º
Região e professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP).
"O
Supremo Tribunal Federal, a grande mídia, grandes juristas, os juristas
trabalhistas, empresas, associações, todos eles contribuíram para difundir e
naturalizar a terceirização como uma forma de melhorar a economia, mas eles
mentiram sobre a terceirização para realmente excluir a responsabilidade social
das empresas", analisou o jurista.
Se
por um lado, representantes dos empresários e políticos evocaram argumentos
preconceituosos e escravagistas como justificativas, o assunto também gerou
comoção e revolta.
"E
isso é importante. Mas muitos que se comovem, principalmente a grande mídia,
não refletem sobre a sua própria contribuição histórica para essa situação,
como a reforma trabalhista e a terceirização, que estão envolvidas em
praticamente todas essas notícias", explicou Souto Maior.
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Leia a entrevista:
• Em 2019, numa entrevista publicada pelo
Brasil de Fato, o senhor declarou que o Brasil era um "laboratório da retração
dos direitos trabalhistas". Temos acompanhado as reações ao resgate de
trabalhadores em situação análoga à escravidão em grandes vinícolas do Rio
Grande do Sul, e vemos que muitos dos argumentos que se utilizavam à época
(para justificar a Reforma Trabalhista) voltam a ser utilizados para justificar
o injustificável. O que essa repetição de argumentos nos diz sobre o mundo do
trabalho no Brasil?
Jorge
Souto Maior: A fala de 2019 estava ligada à experiência específica da reforma
trabalhista, que veio nesse contexto de algumas outras reformas trabalhistas
ocorridas no mundo, no mesmo período ou até um pouco antes, mas não com a mesma
profundidade que a verificada no Brasil em termos de retração de direitos.
O
mundo todo olhava para o Brasil nessa perspectiva de como seria possível fazer
uma reforma com tanta redução de direitos, como se fosse um laboratório. Em
nenhum país se fez o que foi feito no Brasil, que não foi propriamente uma
reforma, mas um achatamento muito grande dos direitos trabalhistas, a partir de
um movimento antidemocrático que gerou repercussões na ordem política.
Foi
muito grave, e também do ponto de vista das fundamentações que foram utilizadas
para se chegar a ter aquele ponto da redução de direitos trabalhistas.
Argumentos falaciosos, sempre pela necessidade econômica, de que direitos dos
trabalhadores impedem o movimento econômico e a competitividade. Coisas
mentirosas, porque a classe trabalhadora no Brasil nunca foi privilegiada,
muito pelo contrário.
Essas
mentiras e falácias fazem mal como um todo, quando são repetidas exaustivamente
passam a ser encaradas como verdades e acabamos naturalizando a mentira.
Esse
processo é um processo que se espraiou para outras áreas da nossa realidade,
como as fake news, que provocaram, alimentaram e justificaram tantas outras
mentiras, revisões históricas que causaram muito mal à realidade das pessoas.
Verificamos isso desde 2018 até o presente, quando fomos atropelados por uma
irracionalidade e brutalidade impressionantes, talvez nunca vistas ou, pelo
menos, nunca assumidas tão claramente assim na realidade brasileira.
É
uma divida que temos, de aceitar essas mentiras e de acomodarmo-nos a elas,
sobretudo para aprofundar o sofrimento da classe trabalhadora, como a reforma
trabalhista fez. Mas isso não significa dizer que as condições de trabalho, de
vida e os direitos trabalhistas propriamente ditos tenham sido em algum momento
da nossa história próximos do ideal ou do necessário.
É
triste reconhecer que, historicamente, sempre houve exploração do trabalho no
país. Essas mazelas fazem parte da nossa realidade. Não podemos ignorar os
problemas e horrores, como a reforma trabalhista de 2017, mas também não
podemos pensar que tudo estava bem antes dela.
Quando
vemos os casos recentes de trabalho em condições análogas à escravidão, como na
produção de vinho no sul do país, essas notícias não são consequências da
reforma trabalhista. Na verdade, há registros históricos de exploração do
trabalho em condições deploráveis. É importante lembrar da Cosan, em 2011,
entre outros casos. Grandes empresas envolvidas com trabalho escravo no Brasil.
A
gente não pode esquecer que temos mais de 400 anos de história de escravidão no
Brasil em pouco mais de 500 anos. A legislação trabalhista só começou a ser efetivada
a partir da década de 1930. Então, nossa experiência de trabalho assalariado
com plenos direitos e direitos sociais efetivos é bem curta, não chega a 100
anos. Nossa história é marcada pela escravidão e todos os seus males e
problemas.
O
impacto dessa notícia específica sobre trabalho em condições análogas às de
escravos gera comoção social. E isso é importante. Mas muitos que se comovem,
principalmente a grande mídia, não refletem sobre a sua própria contribuição
histórica para essa situação, como a reforma trabalhista e a terceirização, que
estão envolvidas em praticamente todas essas notícias.
• De que forma se dá essa relação entre
reforma trabalhista, terceirização e esses casos de trabalho análogo à
escravidão?
O
Supremo Tribunal Federal, a grande mídia, grandes juristas, os juristas
trabalhistas, empresas, associações, todos eles contribuíram para difundir e
naturalizar a terceirização como um fator de reengenharia da produção, como uma
forma de melhorar a economia. Todo mundo sabe disso, não é mesmo?
Mas
eles mentiram sobre a terceirização para realmente excluir a responsabilidade
social das empresas, transferindo-a para outras empresas com menos capital ou
sem capital algum. Isso levou a uma pressão cada vez maior nas empresas
subcapitalizadas, que precisam competir com outras empresas para prestar
serviços e, por sua vez, acabam conduzindo a exploração do trabalho a níveis
que estamos vendo hoje.
E
aí vem o Supremo Tribunal Federal e diz: 'não, a terceirização é boa, a
terceirização é uma reengenharia de produção'. E no final, agora vivemos um
momento em que há terceirização da atividade-fim, ou seja, de tarefas
essenciais, com a desculpa da liberdade econômica e outros argumentos. Isso nos
leva a uma situação presente como a do trabalho em condições análogas à
escravidão na produção do vinho no sul do país, que comove a todos, mas ao
mesmo tempo não gera autocrítica, nem culpa pessoal. Não serve para refletir
sobre o equívoco da terceirização, do rebaixamento dos direitos trabalhistas,
do rebaixamento da ação dos sindicatos, os equívocos que vêm se cometendo
historicamente no Brasil quanto aos direitos sociais previstos na Constituição
e nos tratados internacionais. Ninguém reflete sobre nossos problemas que
conduzem a essa realidade.
Essa
realidade não ocorre apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo o país, em
situações como na produção de pisos, no trabalho doméstico, no trabalho de
motoristas de caminhão, no trabalho de cortadores de cana e no trabalho de
vendedoras ambulantes. Temos milhões de pessoas no Brasil trabalhando em
condições degradantes, que não afetam nossas instituições, a não ser que se
tornem casos midiáticos. As pessoas começam a se mobilizar, mas não contra o
cotidiano escravista da realidade brasileira, quanto a isso ninguém se
manifesta. A terceirização, por exemplo, corre solta em todas as instituições
públicas do país.
• Se por um lado, uma parte da sociedade
se sensibiliza, mas não faz essa reflexão sobre o que há por trás da
terceirização, por outro lado, uma parcela da sociedade se mobiliza para
defendê-la. Esse tipo de situação que levanta questionamentos sobre o
pensamento da elite brasileira e sobre os caminhos para superar essa herança
escravagista.
Temos
um problema histórico, mas na realidade atual, talvez tenhamos um problema
adicional gerado pela explicitação, a naturalização do ódio e da bestialidade.
Muitas pessoas buscam argumentos lógicos e racionais para explicar o
inexplicável e encontram motivação para retomar um retrocesso ao período da
própria escravidão.
Estamos
retomando teorias racistas de supremacia e intelectualidade que justificam a
escravidão. É preocupante quando entidades que se dizem defensoras do
desenvolvimento sustentável, ético dos negócios e empreendimentos econômicos,
como o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, fazem uma
defesa das vinícolas sem se preocupar minimamente com a questão da
terceirização, com o que ocorreu com aquelas pessoas. Está preocupada com a
preservação das empresas e defendê-las, dizendo que elas, coitadas, não sabiam
que aquilo estava acontecendo com os trabalhadores e trabalhadoras, né? Porque,
afinal de contas, a empresa empregava uma empresa prestadora de serviços, né?
Era a tal terceirização.
Isso
também fez a Cosan, isso também fez a Zara. Sempre que a terceirização e as
condições análogas à escravidão aparecem na produção em rede dessas empresas,
elas sempre têm esse argumento de que são as empresas prestadoras de serviços
que fazem isso. Não são elas, né?
E
um argumento ainda mais ofensivo, ofensivo à nossa condição humana, é o de que
o que aconteceu está justificado porque havia pouca mão-de-obra disponível.
Primeiro não tem lógica nem econômica dizer isso, porque, se a mão de obra é
escassa, o preço da mão de obra é mais caro, do ponto de vista da lógica da
oferta e da procura. O que eles querem simplesmente é justificar que isso se
fez porque, afinal de contas, foram conduzidos a isso.
Dizer
que as pessoas não queriam trabalhar porque tinham políticas assistenciais. As
políticas de assistência já são, digamos, uma fonte de renda muitíssimo baixa.
Se elas chegam a impedir o trabalho, é porque quem está oferecendo o trabalho
está oferecendo trabalho em condições piores do que a do assistencialismo.
Então, o nosso capitalismo está muito ao mesmo nível do trabalho em condições
análogas a de escravizados.
Esta
fala é ofensiva, mas ao mesmo tempo é reveladora. Para muitas dessas entidades,
o que se pretende é que o trabalhador e a trabalhadora sejam explorados, como
se escravizados fossem. Sendo, na verdade. Não é nem uma suposição, né? Então
eles estão, em outras medidas, dizendo: 'fizemos e talvez faremos de novo'.
Isso
quando não chegam coisas piores, como aquele vereador que, logo em seguida, que
os trabalhadores locais estavam recebendo assistência, e por isso empresários
estão sendo obrigados a contratar pessoas de outros estados e, assim, deu no
que deu. Isso é impressionante, tentar justificar a escravidão por culpa do
próprio escravizado. Isso é muito ofensivo e trágico. Mas é um momento histórico
que nós chegamos e é fruto de muita barbárie do ponto de vista daquilo que
estamos dizendo ao longo de várias décadas no mundo do trabalho no Brasil.
Esforços
têm sido feitos para justificar esse tipo de comportamento quando a mídia, e o
próprio Judiciário, economistas põem a culpa do problema econômico do país na
CLT, nos direitos de férias, de descanso e nos direitos dos trabalhadores. O
resultado só pode ser esse. Porque os empregadores se consideram vítimas dos
direitos trabalhistas e se consideram livres para conseguir qualquer mecanismo
para justificar uma exploração sem limites.
• O que a lei prevê para esses patrões e
como ela poderia ser aperfeiçoada para que esse tipo de condição não exista
mais no Brasil?
O
crime está definido no código penal, mas o que observamos é que não há punição
concreta, mesmo quando se chega a situações como essa. As coisas não passam de
comoção social. Alguém é preso? Alguém é realmente responsabilizado
criminalmente? No Brasil, concretamente, até hoje, houve alguma condenação pelo
crime de exploração do trabalho em condições análogas à escravidão? Houve
alguma empresa foi expropriada? Alguma empresa perdeu seu patrimônio para o
Estado ou teve todo seu patrimônio direcionado para indenizar as pessoas que
estavam escravizadas?
O
que precisa ocorrer do ponto de vista jurídico para que isso nunca mais
aconteça é que as vinícolas sejam expropriadas e o valor seja direcionado a
indenizar essas pessoas, num valor milionário. E que sejam direcionadas também
políticas públicas para combater o trabalho escravo no Brasil. Não pode haver
uma atividade econômica com base nessa realidade.
Assim
como não aconteceu nada com aquelas empresas que eu mencionei, não aconteceu
com alguém no Brasil. O máximo que gerou foi a liberdade das pessoas e o
pagamento de verbas nesse valor ínfimo, sem nenhum tipo de condenação social
por danos e indenizações que seriam realidades em outro lugares.
Eu
acho que a gente tem que olhar para o Brasil e achar soluções sem ficar
flanando nos outros países, porque é sempre uma ideia colonial de ver o mundo.
A gente precisa achar nossas soluções. Mas, já que o argumento tanto se usa, se
uma situação dessa acontece nos Estados Unidos, essa empresa vai pagar milhões
de dólares de indenização. Não é simplesmente um pedido de desculpas que vai
resolver.
Nós
precisamos levar isso com a seriedade que essa situação implica, do ponto de
vista jurídico e econômico. Infelizmente, o nosso histórico é de minimizar a
importância da classe trabalhadora, dos direitos sociais e da efetivação da
justiça social. Como consequência, lidamos com essa quantidade de condições
análogas à escravidão e não conseguimos reprimir devidamente quando essas
realidades se explicitam, porque elas estão presentes na nossa realidade de
forma muito intensa.
Fonte:
Brasil de Fato
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