Holodomor: a grande fome que matou milhões na Ucrânia durante o comunismo soviético de Stalin
Noventa
anos atrás, milhões de ucranianos morreram em uma grande fome durante o regime
soviético de Joseph Stalin.
E
até hoje, o Holodomor, como o evento ficou conhecido, continua a dividir
opiniões tanto de historiadores quanto do público.
Há
os que o rotulam como genocídio e traçam paralelos com o Holocausto — o
assassinato em massa de milhões de judeus, bem como homossexuais, ciganos,
Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a 2ª Guerra Mundial, a partir
de um programa de extermínio sistemático implementado pelo partido nazista de
Adolf Hitler.
Outros
rejeitam tal definição e consideram a comparação inadequada, apesar de
reconhecerem a dimensão humana da tragédia.
Afinal,
a grande fome foi uma política de extermínio deliberadamente planejada por
Stalin ou consequência da industrialização soviética?
Em
meio a visões distintas, as redes sociais acabaram por acirrar ainda mais essa
discussão, tornando-se plataforma de vozes exaltadas contra e favor do
comunismo.
• O que foi o Holodomor?
O
Holodomor, ou Fome-Terror, ou mesmo Grande Fome, foi uma crise generalizada de
fome que atingiu a Ucrânia durante o regime comunista soviético liderado desde
1922 por Joseph Stalin (1878-1953).
O
nome vem das palavras em ucraniano "holod" (fome) e "mor"
(praga ou morte).
Alguns
historiadores, como Timothy Snyder, da Universidade de Yale, nos Estados
Unidos, que fez uma extensa pesquisa na Ucrânia, estimam o número de mortos em
cerca de 3,3 milhões. Outros dizem que o número foi muito maior.
Qualquer
que seja o número real, é um trauma que deixou uma ferida profunda e duradoura
nessa nação de 44 milhões de habitantes.
Aldeias
inteiras foram dizimadas e, em algumas regiões, a taxa de mortalidade chegou a
30%. O campo ucraniano, lar da "terra negra", algumas das terras mais
férteis do mundo, foi reduzido a um deserto silencioso.
Cidades
e estradas ficaram repletas de cadáveres daqueles que deixaram suas aldeias em
busca de comida, mas morreram ao longo da jornada. Houve relatos generalizados
de canibalismo.
Em
2013, a ucraniana Nina Karpenko, então como 87 anos, contou, em entrevista à
BBC, como conseguiu sobreviver.
"Um
pouco de fubá barato, palha de trigo, folhas secas de urtiga e outras ervas
daninhas" — essa era a essência da vida durante o terrível inverno e o
início da primavera de 1932-33 na Ucrânia.
Quando
as aulas recomeçaram no outono seguinte, dois terços das carteiras estavam
vazias, segundo Karpenko. Seus colegas de classe haviam morrido.
Mas
a dor do Holodomor não vem apenas do número de mortos. Muitas pessoas acreditam
que suas causas foram intencionais e decorrentes da ação humana.
E,
segundo elas, o homem por trás disso tinha nome e sobrenome: o então líder
soviético, Joseph Stalin.
Em
outras palavras: um genocídio.
Elas
alegam que Stalin queria submeter o campesinato ucraniano rebelde à fome e
forçá-lo a integrar suas propriedades em fazendas de exploração coletiva.
A
coletivização daria ao Estado soviético controle direto sobre os ricos recursos
agrícolas da Ucrânia e lhe permitiria controlar o fornecimento de grãos para
exportação. As exportações de grãos seriam, então, usadas para financiar a
transformação da URSS em uma potência industrial.
A
maioria dos ucranianos rurais, que eram agricultores independentes de pequena
escala ou de subsistência, resistiu à coletivização. Eles foram forçados a
entregar suas terras, gado e ferramentas agrícolas, e trabalhar em fazendas
coletivas do governo ("kolhosps").
Houve
milhares de protestos, que foram reprimidos pela polícia secreta soviética
(GPU) e o Exército Vermelho. Dezenas de milhares de agricultores foram presos
por participar de atividades antissoviéticas, fuzilados ou deportados para
campos de trabalho forçado.
Além
da repressão em massa, o Kremlin passou a requisitar mais grãos do que os
agricultores podiam fornecer. Quando resistiram, brigadas de ativistas do
Partido Comunista varreram as aldeias e levaram tudo o que era comestível.
"As
brigadas levaram todo o trigo, cevada — tudo — então não sobrou nada",
disse Karpenko. "Até mesmo feijões que as pessoas tinham reservado para
uma eventualidade".
"As
pessoas não tinham nada a fazer a não ser morrer."
Ao
passo que a fome aumentava, as autoridades soviéticas tomaram medidas extras,
como fechar as fronteiras da Ucrânia, e os camponeses se viram impedidos de
viajar para o exterior onde poderiam obter comida.
Isso
significou uma sentença de morte, dizem especialistas.
"O
governo fez todo o possível para impedir que os camponeses entrassem em outras
regiões e buscassem pão", afirmou à BBC Oleksandra Monetova, do Museu
Memorial Holodomor de Kiev.
"As
intenções das autoridades eram claras. Para mim é um genocídio. Não tenho
dúvidas."
Mas
para outros, a questão ainda está em aberto.
A
Rússia, em particular, se opõe ao rótulo de genocídio, classificando-o de
"interpretação nacionalista" da fome.
Autoridades
do Kremlin insistem que, embora o Holodomor tenha sido uma tragédia, não foi
intencional, e outras regiões da União Soviética também sofreram na época — e
isso, de fato, aconteceu.
Kiev
e Moscou entraram em conflito sobre a questão no passado.
Atualmente,
além da Ucrânia, pelo menos 15 países — entre os quais Portugal e Canadá, e
Argentina, Colômbia, Paraguai, Peru, Equador e México na América Latina —
consideram o Holodomor um genocídio.
O
Brasil não faz parte desse grupo.
Em
2018, o Senado dos Estados Unidos adotou uma resolução que definiu o Holodomor
como genocídio.
• 'Holocausto comunista'?
Se
ainda há intenso debate sobre se o evento pode ser considerado um genocídio, a
comparação com o Holocausto também divide opiniões entre especialistas.
Em
comum, as duas tragédias resultaram em milhões de mortes.
Do
ponto de vista legal, o Holocausto é considerado genocídio porque possui tanto
o que a Convenção sobre Genocídio da ONU chama de "elemento mental"
("intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso, enquanto tal") e "elemento físico". Este inclui
cinco atos, que são:
• Matar membros do grupo
• Causar danos físicos ou mentais graves a
membros do grupo
• Infligir deliberadamente ao grupo
condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou
parcial
• Impor medidas destinadas a prevenir
nascimentos dentro do grupo
• Transferir à força crianças do grupo
para outro grupo
Quem
considera o Holodomor como genocídio, acredita que muitos desses atos foram
praticados pelo regime stalinista contra os ucranianos.
Na
visão de Eric D. Weitz, professor de História da City University de Nova York,
nos Estados Unidos, o problema da definição de genocídio da ONU é que "não
inclui grupos definidos por sua orientação política ou origem de classe".
Ele
especula que "nas negociações da década de 1940, a União Soviética e seus
aliados forçaram a exclusão dessas categorias por medo de que suas políticas
para o campesinato e opositores políticos poderiam ser consideradas
genocídios".
Nessa
linha, alguns especialistas apontam ainda que o regime soviético tinha claras
intenções de destruir a "identidade nacional ucraniana".
"Os
assassinatos na Ucrânia não foram numerosos apenas na fome de 1932-1933. O
número de mortos na Ucrânia depois que os bolcheviques chegaram ao poder também
foi bastante alto. Nos anos antes da fome, o regime bolchevique tentou acabar
com os sentimentos nacionalistas do povo ucraniano passando por expurgos da
elite intelectual, impondo língua russa e dissolução da igreja nacional",
diz um artigo na revista romena de Ciências Políticas Studia Politica assinado
por Alexandra Ilia.
"O
fato de que os bolcheviques estavam tentando destruir a identidade nacional dos
ucranianos também pode significar que a fome pode não ter sido uma tentativa
fracassada de forçar a coletivização, mas uma tentativa bem-sucedida de esmagar
a Ucrânia como um todo", acrescenta.
Ilia
vai além e argumenta que tanto no nazismo quanto no comunismo "havia
algumas razões ideológicas subjacentes à intenção de matar".
"Os
perpetradores do Holocausto haviam estabelecido sua crença na falsa biologia e
no antissemitismo, sob uma visão nacional-socialista do mundo. Os responsáveis
pelo Holodomor, por outro lado, eram fanáticos comunistas, acreditando na falsa
sociologia, procurando eliminar a classe kulak (camponeses mais prósperos) mas
também trazer uma nação (Ucrânia) de joelhos para fortalecer sua influência
sobre ela. Embora as razões para cometer assassinato pareçam muito diferentes,
a ideologia que ocasionou isso contém alguns pontos comuns", diz.
Michael
Mann, autor de The Dark Side of Democracy: Explaining Ethnic Cleansing (O Lado
Negro da Democracia: Explicando a Limpeza Étnica), argumenta que no comunismo
"o povo era o proletariado, e as classes opostas ao proletariado eram
inimigos do povo. Os comunistas eram tentados a eliminar as classes através do
assassinato. Chamo isso de classicídio".
• 'Descomunização'
As
atrocidades cometidas pelo comunismo personificado por Stalin ainda estão vivas
na memória dos ucranianos.
Após
a anexação da Península da Crimeia pela Rússia em 2014, o Parlamento da Ucrânia
aprovou, em abril de 2015, uma ampla legislação sobre
"descomunização".
Foi
proibida a promoção de símbolos de regimes e propaganda comunistas. Monumentos
foram removidos e milhares de ruas, renomeadas. Os três partidos comunistas
foram banidos de participar de eleições.
Pela
mesma legislação, símbolos e propaganda do nacional-socialismo também foram
proibidos.
Fonte:
BBC News Mundo
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