Fungos mágicos: como esses seres ajudam a moldar a vida no planeta e podem influenciar nossa rotina
Eles
estão por todas as partes: nas cascas de árvores, nas frutas que apodrecem, nas
algas, nos caules das plantas e em basicamente qualquer local úmido e quente
que possa mantê-los vivos. Além disso, sempre estiveram presentes no começo e
no final dos ciclos da natureza. Parte da magia do reino Fungi se deve
justamente ao seu papel decisivo para o surgimento da vida na Terra e também na
decomposição da matéria orgânica e na ciclagem de nutrientes, processo tão
importante para a fechar o ciclo da vida e da morte no planeta.
Para
completar, seja na construção de biomateriais que substituem o plástico, na
degradação de substâncias poluentes como agrotóxicos e petróleo, nos bastidores
das florestas ou na indústria farmacêutica, os fungos são protagonistas quando
o assunto é o enfrentamento da crise climática e a garantia da vida na Terra.
Não
por acaso, nos últimos tempos livros, documentários e até séries de televisão
têm colocado esses seres mágicos no holofote. É o caso do sucesso “The Last of
Us”, série ficcional da HBO lançada em janeiro deste ano que retrata uma
pandemia causada por um fungo, o cordyceps, popularmente conhecido como “fungo
da formiga zumbi”. Na série, ele sai do mundo dos insetos e age como parasita
controlando o comportamento humano. A ficção parte do pressuposto que o fungo
desenvolveu a nova capacidade de sobreviver dentro de nós em decorrência do
aquecimento global, já que, hoje em dia, estes fungos não conseguem prosperar na
temperatura do corpo humano.
Apesar
do cenário preocupante retratado pela série, os fungos ainda são raramente
associados à doenças humanas (são majoritariamente causadores de doenças em
plantas e outros animais). O cenário é justamente o contrário: pesquisas
apontam para os atributos medicinais das espécies de fungos, que garantem
atividades antivirais, antibacterianas, antiparasitárias, anti-inflamatórias e
até anticâncer e cicatrizante.
Em
1928, o primeiro antibiótico, a penicilina, foi desenvolvido a partir do fungo
Penicillium, descoberto vivendo em uma amostra de bactéria do gênero
Staphylococcus e inibindo o crescimento bacteriano. Segundo Patrícia Melchionna
Albuquerque, doutora e professora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA),
“as propriedades incríveis dos fungos se devem às suas células complexas,
extremamente interessantes do ponto de vista de metabolismo. Para realizar a
decomposição de matéria orgânica, eles produzem enzimas que também são
amplamente utilizadas pelas indústrias”, explica.
“Os
fungos estão divididos em três grupos: o das leveduras, utilizados em processos
de fermentação; os filamentosos, que formam micélios, parte subterrânea
responsável por absorver nutrientes e sequestrar carbono na natureza, e os
cogumelos, que são como a ponta do iceberg dos micélios, a estrutura de
reprodução, e podem ou não ser comestíveis”, afirma Patrícia, que lidera uma
linha de pesquisa sobre o uso de microrganismos amazônicos (principalmente
fungos) para produção de moléculas com interesse industrial.
Estima-se
que o número total de espécies de fungos seja de 1,5 milhão, seis vezes mais
que o número de espécies de plantas. Contudo, o número de espécies descritas
pela Ciência até o momento é de aproximadamente 100 mil. Dessas, apenas 20 mil
produzem cogumelos.
• Capacidade de armazenar carbono no solo
O
trabalho de mapear novas espécies de fungos e construir uma base de dados
sólida é fundamental não apenas para garantir os avanços nas aplicações
biotecnológicas, mas também para preservar a capacidade de absorver e armazenar
dióxido de carbono no solo, um dos principais gases de efeito estufa,
responsáveis pelas mudanças climáticas.
E
um novo projeto promete esquematizar pela primeira vez os fungos subterrâneos
ao redor do mundo. A Sociedade de Proteção de Redes Subterrâneas (SPUN),
responsável pelo estudo, é uma instituição independente que trabalha com uma
rede de colaboradores para criar esses mapas de fungos micorrízicos
subterrâneos (aqueles que apresentem filamentos associados às raízes das plantas)
e utilizar esses dados para futuras pesquisas e para a criação de políticas de
conservação ambiental. A SPUN busca contribuir também para o aumento do
conhecimento em torno das espécies de modo que as pesquisas biotecnológicas
realizadas em um determinado país possam ser feitas com fungos nativos,
evitando a dependência da busca por fungos exóticos.
“Mais
de 90% das plantas não poderiam sobreviver sem as suas interações com os
fungos. Enquanto a rede de micélios subterrânea ajuda a armazenar o dióxido de
carbono no solo, esses fungos também solubilizam o fósforo presente na terra,
permitindo que esse mineral possa ser melhor absorvido pelas plantas,
garantindo o seu crescimento. Essa relação mantém a estabilidade dos
ecossistemas e ainda contribui para a captura de carbono da atmosfera”, explica
a colombiana Adriana Corrales, líder de expedições e planejamento da SPUN e
professora na Universidade de Rosário, em Bogotá, na Colômbia.
Segundo
a pesquisadora, o solo armazena 75% do carbono existente na Terra e são essas
redes micorrízicas que facilitam este processo, pois chegam a lugares profundos
que as raízes das árvores não alcançam, facilitando a extração de nutrientes
utilizados por elas. Em troca, os fungos utilizam o carbono sequestrado pelas
plantas para crescer.
• Capacidade de decompor substâncias
tóxicas
Uma
das características mais fascinantes dos fungos é que eles decompõem
praticamente todas as matérias orgânicas do planeta e ainda são o único ser
vivo presente em quase toda a Terra. Isso inclui a decomposição de
microplástico, garrafas PET, óleos (inclusive o petróleo), e de outras
substâncias contaminantes como os agrotóxicos.
“Os
fungos são conhecidos por realizarem a biorremediação de diversos tipos de
matéria orgânica. Mesmo no caso de madeira dura, os fungos são capazes de
produzir enzimas que degradam a matéria até se tornarem moléculas pequenas que
garantem a sua própria nutrição”, explica Tatiana Gibertoni, coordenadora do
Programa de Pós Graduação em Biologia de Fungos (PPGBF) da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE).
Tatiana
conta que um estudo brasileiro já comprovou também a capacidade do
fungoTrametes lactinea de decompor tingimentos da indústria têxtil que
frequentemente contaminam o solo e a água, quando descartados de forma inadequada.
O índigo carmim é um corante sintético muito utilizado na coloração de jeans e
foi a peça-chave utilizada por esta pesquisa.
“Apesar
da realidade nos mostrar que já existem inúmeros estudos revelando o potencial
da atividade de biorremediação dos fungos, a maioria dessas pesquisas está em
fase acadêmica. Ainda precisamos de investimento, de inúmeros parceiros, seja
do próprio governo ou de empresas interessadas nessas biotecnologias para
trazer isso como uma solução para o dia a dia, visando um futuro mais
sustentável. No Brasil, também temos o desafio da legislação, que é bastante
rigorosa para colocar essas descobertas no mercado”, afirma.
No
estudo “Degradação de petróleo por cultura mista de fungos e bactérias”,
realizado pela Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadores constataram
que, após absorverem o óleo pela produção de enzimas que quebram
hidrocarbonetos, os fungos que surgem no local liberam esporos, que passam a
atrair insetos e pássaros e permitem àquele ambiente contaminado retomar o
ciclo da vida. “Para atingir tal objetivo, é preciso ir ao local contaminado e
procurar o tipo de fungo que cresce na região. Muitas vezes, trata-se de fungos
endofíticos, que habitam os tecidos internos de plantas e interagem
positivamente com o hospedeiro”, conta Patrícia.
Matéria-prima
biodegradável: bioplástico e tijolos de micélios
A
aplicação dos fungos na construção civil já é uma realidade. Além de produzirem
materiais biodegradáveis que podem substituir o isopor e o plástico, por
exemplo, estudos a respeito do uso dos micélios para fabricar tijolos estão
crescendo ao redor do mundo. Esse caminho é uma solução poderosa frente às
indústrias de aço e de concreto, que são responsáveis pela emissão de cerca de
de 10% do CO2 global.
Um
exemplo desse tipo de aplicação foi feito em 2014 para o Museu de Arte Moderna
de Nova York (MoMA), com um edifício de 14 metros construído com tijolos de
fungos. A inovação foi uma parceria entre a Ecovative, uma empresa
especializada em embalagens e tijolos feitos de micélios, e um grupo de
arquitetos do The Living, especializados em construção sustentável a partir de
sistemas biológicos.
Para
enfrentar os problemas de circularidade na produção de dispositivos
eletrônicos, com sua vida útil limitada e seu descarte muitas vezes imprudente,
uma pesquisa publicada na Revista Science Advances focou na substituição de
materiais não degradáveis e difíceis de reciclar para permitir a biodegradação
ou a fácil reciclagem destes dispositivos. Os cientistas demonstraram a possibilidade
de criação de "peles" usando micélios fúngicos como um material de
substrato biodegradável para circuitos eletrônicos sustentáveis.
Em
outra frente, a empresa Magical Mushroom Company surgiu determinada a reduzir o
uso de embalagens plásticas no mercado, desenvolvendo uma alternativa mais
sustentável a partir de resíduos naturais. Sua proposta combina resíduos
agrícolas com micélios para criar embalagens biodegradáveis, duráveis e com
valor próximo de suas primas derivadas do petróleo. A empresa afirma que suas
embalagens se degradam naturalmente no meio ambiente em cerca de 45 dias, sem a
adição de químicos ou facilitadores industriais.
• Onde a Ciência encontra a arte
Para
dar maior visibilidade ao extraordinário universo dos fungos, nota-se também um
movimento que une a arte à Ciência. Esse é o caso da exposição “Simbiose: a
conexão pelos fungos” que foi inaugurada ontem, 9 de fevereiro, no Rio de
Janeiro (RJ), com entrada gratuita. “Queremos mostrar a diversidade dos fungos
e levar o público a experimentar. Queremos desmistificar a ideia de que fungo
significa podridão. Mostraremos suas características e também as suas várias
aplicações: na indústria alimentícia, na moda, na construção civil, na
indústria funerária, no uso medicinal com os psicodélicos, entre outros. Esses
seres mágicos coexistem junto com a gente e queremos ressaltar a sua
relevância”, conta Eduardo Carvalho, curador da exposição, jornalista e
especialista em eventos na área de sustentabilidade e clima.
A
mostra conta com a consultoria científica de um grupo de pesquisadores do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), especialistas em cogumelos
do bioma. “Esse tipo de exposição é fundamental para fazermos a divulgação
científica de trabalhos que têm sido desenvolvidos no Brasil. É uma
oportunidade de mostrar o papel e importância da ciência na nossa vida e
inspirar pessoas”, conclui.
A
cientista-artista, educadora e bióloga Fabíola Fonseca fará parte da exposição.
“Eu não busco trabalhar em uma perspectiva utilitarista porque penso que essa
forma de nos relacionar com os outros seres nos trouxe até este cenário de
mudanças climáticas. Minha pesquisa está mais focada em como podemos compor com
eles. A natureza é uma composição”, explica.
Fabíola
trabalha diretamente com a Ciência, arte e educação para as mudanças
climáticas, partindo de diferentes estratégias biológicas para pensar em como
se pode experimentar com elas para a construção da sustentabilidade. “A Ciência
é criativa. Temos a oportunidade de experimentar e nunca saber ao certo para
onde vai aquele experimento. Quando trabalhamos com microorganismos tudo pode
acontecer. A Ciência me ensina a ter intimidade com as coisas e ter noção de
que quanto mais eu me aproximo, mais o objeto de estudo permanece
desconhecido”, conta.
• Capacidade fotoprotetora
O
Brasil é palco de uma descoberta recente: a atividade fotoprotetora dos fungos
Penicillium echinulatum, isolado da alga Adenocystis utricularis, encontrada na
Antártida. A pesquisa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto
(FCFRP), da USP, é liderada pela professora Hosana Maria Debonsi, orientadora
do estudo. “Por existir uma alta incidência de radiação dos raios ultravioleta,
UVA e UVB, no Continente Antártico, sabíamos que os seres que ali vivem
deveriam apresentar um sistema de proteção muito potente. Fizemos uma viagem
para a região com outros pesquisadores, por meio do Programa Antártico
Brasileiro (PROANTAR) e recolhemos algumas amostras”, explica.
Os
fungos encontrados nas algas recolhidas foram isolados e analisados a partir de
suas características e, portanto, aplicações para a indústria farmacêutica e de
cosméticos. “A forma como reservamos e multiplicamos esses fungos também é
sustentável. Não precisamos de mais de uma amostra da alga, podemos continuar
reproduzindo esses fungos em biorreatores que garantem as condições adequadas
de reprodução”, afirma.
Durante
a pesquisa, que também contou com a participação da professora Lorena Gaspar
Cordeiro, da FCFRP, foram descobertas substâncias produzidas pelo fungo
Penicillium echinulatum com potencial de atividade fotoprotetora. “Em seguida,
testamos em pele artificial para verificar se haveria algum dano para o ser
humano para que essas substâncias possam ser associadas a filtros solares”,
enfatiza Lorena.
Segundo
as pesquisadoras, os tipos de fungos analisados por elas nos últimos anos, que
já somam mais de dez, apresentam atividades extremamente promissoras, com ações
antifúngicas, antioxidantes e anti-inflamatórias. “Já fizemos a patente dessa
substância e agora falta realizar a fase de testes clínicos, como exigido pela
ANVISA. Além disso, esse é um tipo de filtro solar que não gera agressão para
os corais”, afirma.
• Produção de medicamentos anticâncer e
cicatrizante
Outro
estudo que ainda segue em curso no Brasil investiga o uso de amido extraído da
mandioca aliado a fungos amazônicos no tratamento do câncer de pele. Realizado
pelo Governo do Estado via Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam),
o estudo analisa curativos com a liberação controlada de medicamentos com
atividades anticâncer e cicatrizante que podem vir a ser aplicados na pele
“Na
busca pela geração de bioprodutos a partir de matéria-prima da Amazônia surgiu
a ideia de utilizarmos a fécula da mandioca para servir de base para o nosso
curativo cicatrizante. Extraímos a substância antioxidante gerada pelo fungo e
adicionamos à esse bioplástico e vimos que o resultado foi ainda melhor do que
o imaginado. Esse curativo libera o extrato de atividade antioxidante e
cicatrizante e auxilia nesse processo na pele da pessoa, além de ser produzido
com matéria-prima sustentável”, explica Patrícia.
Em
agosto deste ano, o grupo espera encerrar a fase de testes clínicos do curativo
cicatrizante. Além disso, já foi iniciada a pesquisa para as atividades
anticâncer a partir do mesmo modelo. A análise feita testou se o extrato
proveniente da ação metabólica do fungo era capaz de impedir o crescimento de
células cancerígenas. Alguns dos resultados foram bastante promissores, mas a
pesquisa segue em fase inicial.
• Controle biológico
Na
agricultura, além de auxiliarem na decomposição de agrotóxicos, os fungos
também podem ser usados para realizar o controle biológico de pragas, reduzindo
a contaminação da água, do solo o risco a vida dos seres vivos na Terra.
“Para
diminuir o uso de agrotóxicos, é possível utilizar os fungos para controlar
doenças que ameaçam diversos cultivos, já que alguns deles possuem
características que inibem o crescimento desses patógenos”, explica Natália
Ferraz Bertachini Speltri, bióloga e pesquisadora no Centro Pluridisciplinar de
Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas CPQBA/UNICAMP.
Segundo
a bióloga, é a atuação do fungo junto com as plantas que oferece a capacidade
de controlar doenças. “É preciso selecionar os microrganismos que estão vivendo
junto das plantas para entender quais deles fazem o controle de possíveis
pragas. Por exemplo, é amplamente disseminada no mercado a utilização dos
fungos do gênero Trichoderma para controle biológico de culturas
agrícolas".
Fonte:
Um só Planeta
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