DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: O aborto que não fiz e a liberdade de decidir
Durante a campanha eleitoral e após a composição do novo ministério do governo Lula, o tema do aborto voltou a tomar conta das redes sociais, da imprensa, dos meios de comunicação, enfim, da opinião pública do país. Esse debate de uma questão candente para nós, mulheres – e pessoas capazes de gestar –, é republicano, democrático e saudável. Foi o engajamento público de diversos setores da sociedade que permitiu a legalização na Argentina e também na Colômbia. A discussão pública esclarece pontos cruciais para que se compreenda a questão em todos os seus âmbitos: o do direito, o da justiça social e racial, e o da ética.
Feministas
e defensores da necessidade de se legalizar a interrupção voluntária da
gravidez (IVG) reiteram que o estabelecimento de uma lei regulatória desse
direito permitirá a realização do abortamento, porém não obrigará qualquer
mulher a fazê-lo contra sua vontade. Ao contrário, as leis existentes em
diferentes países e uma proposta discutida em nosso país há alguns anos punem
quem obrigue uma mulher a abortar. Seu consentimento é imprescindível,
imperioso. Remete-se, assim, a decisão à vontade de cada cidadã. Cabe à mulher
– e somente a ela – julgar livremente sobre a continuidade, ou não, de uma
gestação, um processo que ocorre em seu corpo e que muda para sempre sua vida.
A invocação da vontade da mulher e ao respeito à sua decisão, se quisermos
lembrar a fé cristã, remete a um dos seus mais antigos princípios: o recurso à
própria consciência para se tomar decisões difíceis no âmbito individual. Esse
direito de recorrer ao foro íntimo traduz-se, em termos legais, na objeção de
consciência, que pode ser invocada por profissionais de saúde que, em virtude
de convicções próprias se recusem a realizar o procedimento, sendo então
obrigação do equipamento hospitalar buscar a solução para que seja respeitada a
decisão da mulher pelo abortamento.
Considerando-se
a realidade do Brasil, um país cuja cultura foi e é fortemente moldada por
valores religiosos, e particularmente, cristãos, referências a questões de foro
íntimo, de doutrinas particulares e fé aparecem comumente no debate e mesmo,
indevidamente, em decisões judiciais, no Legislativo e até no Executivo. Em
grande parte, essas incursões religiosas sobre o tema trazem argumentos
contrários à possibilidade da efetivação do direito de gerir a própria
capacidade reprodutiva. O equívoco dessa argumentação esbarra, pelo menos, em
duas questões. A primeira delas diz respeito a um elemento constitucional: a
Constituição brasileira de 1988 reitera que o Estado respeita a
irreligiosidade, assim como permite a todas as religiões liberdade para
expressarem crenças e realizarem cultos em seu território. Contudo, não pode
referir as políticas públicas a qualquer credo religioso. É, portanto, um
Estado laico, não teocrático, em cujo contexto argumentos religiosos não
deveriam ser invocados pelos poderes constituídos republicana e
democraticamente. Muito menos para impedir que mulheres e todas as pessoas com
capacidade de gestar possam gozar plenamente de seus direitos sexuais e
reprodutivos. Argumentos de caráter religioso são importantes apenas e somente
para aquelas pessoas e grupos para quem a religião orienta decisões. A profunda
religiosidade da população deve ser respeitada, porém, a invocação de doutrinas
religiosas deveria ser dirigida às e aos fiéis, nos templos. Isso não invalida
que sejam objeto de debates no âmbito da sociedade civil. E é o que tem
acontecido, como se verá a seguir, na medida em que diferentes interpretações
de credos religiosos têm se tornado uma questão de divergência e mesmo conflito
público.
A
segunda consideração refere-se, pois, a grupos organizados de mulheres que
declaram publicamente sua fé religiosa e, em nome dela, defendem o direito das
mulheres de decidirem por interromper uma gestação. Tais manifestações
cresceram nos últimos anos, congregando número cada vez maior de apoiadoras e
apoiadores. Invocam o caráter laico do Estado brasileiro e insurgem-se contra a
manipulação de doutrinas e textos considerados sagrados para restringir a
autonomia das mulheres e seu campo de decisão. Argumentam que defender a vida é
denunciar as condições humilhantes e perigosas em que a ilegalidade do aborto
coloca as mulheres, com risco de morte pelas condições insalubres e degradantes
resultantes da ilegalidade em que são realizados os procedimentos. E é,
portanto, um constante risco à vida das mulheres.
No
contexto da escrita deste texto, voltei à história pessoal do título, sobre a
qual comecei a escrever há algum tempo. Annie Ernaux, Nobel de literatura,
afirma a relevância dos relatos pessoais em seu livro O Acontecimento: “Ter
vivido uma coisa, qualquer eu seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la.
Não existe realidade inferior”. Ler seu emocionante relato animou-me a colocar
também no papel uma experiência tão pequena e íntima como a que vivi. O sentido
de trazê-la aqui é demonstrar como a legalidade abre a possibilidade da
reflexão informada sobre a decisão a se tomar. Como repito há anos, trazer à
comunidade humana um novo ser é um ato de tal grandeza e com tais consequências
para a vida de uma mulher ou de um casal e da sociedade, que não pode ser
tratado levianamente, remetido apenas à capacidade biológica de gerar. Não é
somente a escolha pela IVG que deve ser objeto de pensamento, de reflexão e
desejo. Também a maternidade deve ser objeto de discussão. É absolutamente
necessário que resulte da possibilidade de se escolher realizá-la, ou não.
Ao
finalizar o relato de sua experiência vivida na juventude, quando era uma
estudante universitária, e tornada pública quase quarenta anos depois, Annie
Ernaux fala de seus sentimentos após o procedimento: “Escutava em meu quarto ‘A
paixão segundo São João’, de Bach. Quando vinha à tona o solo do evangelista
recitando em alemão a paixão de Cristo, parecia que minha provação de outubro a
janeiro era contada em uma língua desconhecida. Depois vinham os coros Wobin!
Wobin! Um horizonte imenso se abria, a cozinha da passagem Cardinet, a sonda e
o sangue se fundiam no sofrimento do mundo e na morte eterna. Eu me sentia
salva. Eu andava pelas ruas com o segredo da noite do dia 20 ao 21 de janeiro
em meu corpo, como uma coisa sagrada. Não sabia se tinha estado à beira do
horror ou da beleza. Sentia orgulho. (…) Com certeza foi algo desse orgulho que
me fez escrever este texto”.
E
aí vai minha story, como se diz no mundo digital. Anos atrás, achei que estava
grávida. Fiz o teste. Deu negativo. Não tenho ideia de como meu companheiro
reagiria, àquela altura – eu, mais de 40 anos, fazendo um doutorado, nenhuma
gravidez anterior; ele, mais de 60 anos, sem filhas/os, sem um relacionamento
anterior. Não me ocorreu na ocasião perguntar a ele o que faríamos, se
realmente eu estivesse grávida. Felizmente, estávamos em um país em que o
aborto é legalizado. Portanto, podíamos decidir o que desejávamos fazer. Talvez
tivéssemos decidido interromper a gravidez. O mais provável. Ou talvez, não.
Uma vez que a questão não estava posta, nunca conversamos a respeito.
Certo
é que grande parte das mulheres em idade reprodutiva, ou a maioria delas,
segundo pesquisas recentes, se vê, em algum momento da vida, diante do dilema
de manter ou não uma gravidez. Não é esse, certamente, o único momento da vida
em que nos vemos diante de situações que exigem discernimento e uma decisão nem
sempre fácil. Porém, para nós, mulheres, decidir por trazer ao mundo um novo
ser ou realizar um abortamento é um momento crucial de nossa existência. E como
é bom vivê-lo com liberdade, na legalidade e com dignidade.
Termino
invocando Simone Veil, ministra da Saúde da França, em 1974, cujo discurso por
ocasião da votação da lei naquele país foi publicado no Brasil com o título Uma
lei para a história. A legalização do aborto na França. Eu vivia em Paris, no
momento do relato acima, e é a Simone Veil que devo a possibilidade que tive de
pensar em uma possível decisão, sentindo-me respeitada e digna. Em seu discurso
perante uma assembleia majoritariamente masculina, Simone Veil fez uma
brilhante e impactante defesa da legalidade do procedimento. Ao final, depois
de lembrar o quanto a realização de um aborto pode ser dramática para uma
mulher, ela diz: “Entretanto, não podemos mais fechar os olhos aos 300 mil
abortos que a cada ano mutilam as mulheres deste país, desrespeitam nossas leis
e humilham ou traumatizam aquelas que a eles recorrem. A história nos mostra
que os grandes debates que dividiram por um momento os franceses se revelam,
com o recuo do tempo, como uma etapa necessária à formação de um novo consenso
social, que se inscreve na tradição de tolerância e sensatez de nosso país. Não
faço parte dessas pessoas que temem o futuro”.
Seu
discurso “soa como uma convocação para dar prosseguimento a seus combates e
jamais ceder”, diz a jornalista francesa na apresentação do livro. Como
feministas, essa é nossa tarefa histórica no Brasil: seguir na luta pela
descriminalização do aborto e por sua legalização, sem jamais ceder. Porque é
uma luta pela vida de todas as mulheres, mas em especial, das mulheres
indígenas, negras e pobres, aquelas que mais sofrem e morrem em decorrência da
ilegalidade. Jamais ceder!
Fonte:
Por Maria José F. Rosado-Nunes, no Le Monde
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