Cosmovisões
ancestrais e resistências ao capitalismo
Para
os povos indígenas do rio Negro, dentre eles os Desana, os seus antepassados
eram “gente-peixe”, que vieram do cosmos para povoar a Terra, navegando numa
canoa em formato de uma enorme serpente. No meio da escuridão, surgiu, por ela
mesma, Yebá Buró, a Avó do Mundo, sustentada num banco de quartzo branco.
Mascando ipadu e fumando tabaco, ela começou a pensar em como deveria ser o
mundo. Enquanto ela pensava, levantou-se uma esfera: era o mundo, que ela
chamou de Maloca do Universo. Depois, Yebá Buró tirou um pouco de ipadu da boca
e os transformou em homens, eram os Trovões ou os Homens de Quartzo Branco.
Yebá Buró ordenou que eles criassem a humanidade, mas eles nada fizeram. A Avó
do Mundo, então, resolveu criar outro ser que seguisse suas instruções e no
mesmo momento surgiu, da fumaça do seu cigarro de tabaco, o Deus da Terra. O
Terceiro Trovão e o Deus da Terra uniram-se para criar a “gente-peixe”. O
Terceiro Trovão se transformou na “canoa serpente” e trouxe o Deus da Terra e a
“gente-peixe” para povoar o mundo, que ainda não existia. Durante muitos
séculos, a “gente-peixe” viveu na “canoa serpente”, até que surgiu uma enorme
parede de gelo. O Deus da Terra reuniu todo o seu conhecimento e, com seu
bastão, quebrou a parede de gelo. Quando a parede de gelo foi quebrada,
surgiram o céu, os mares, os oceanos e toda a terra, e a “gente-peixe”
desembarcou e começou a povoar o mundo todo. Para os Kaxinawá, povos que
habitam o estado do Acre (Brasil) e o Peru, a origem da vida é a “mulher
jiboia”, que vive nas águas do igarapé. Entre os Shipibos, povo da Amazônia
peruana, o rio, onde surgiu a vida, é uma grande serpente que se chama
Ronin.
Na
mitologia africana, o conceito de “serpente cósmica”, como força primeva da
criação, é muito importante. Para o povo Fon do reino de Daomé (que existiu
entre os séculos XVI e XIX, atualmente seu território integra o Benin, país da
região ocidental da África), ela era chamada Dan Ayido Hwedo. Mawu, a deusa-mãe
suprema, cavalgou a serpente Dan, em busca de um lugar para os humanos. Durante
o passeio elas criaram o planeta Terra no formato de uma cabaça, cercado de
água por todos os lados. Na Terra, toda a natureza foi moldada pelo ritmo de
Dan, que enquanto serpenteava, ia formando os continentes, vales, rios e
montanhas. Com toda a natureza e mais a humanidade, a Terra ficou muito pesada
e poderia afundar. Mawu pediu para que Dan entrasse na água e se enrolasse em
torno dela, protegendo-a.
Na
mitologia iorubá (da Nigéria e do Benin), que originou a religião do candomblé
no Brasil, a serpente é o símbolo do orixá do movimento contínuo, Oxumarê,
responsável por ligar o céu (mundo sagrado) à terra (mundo profano). Em iorubá,
Oxumarê significa a cobra arco-íris e pode ser representado por duas serpentes
entrelaçadas ou por uma única, que morde a própria cauda (ouroboros),
simbolizando o eterno ciclo da vida-morte-vida. Além de enrolado em si mesmo, Oxumarê
também está enrolado em volta da Terra, protegendo-a. Sem a sua força, o
planeta vagaria solto pelo espaço e seria o fim de tudo. Na África central e
meridional, a serpente é conhecida como Chinaweji ou Chinawezi; no norte do
continente é chamada de Minia, representada com cabeça no céu e cauda nas
águas, embaixo da terra; entre muitos povos da savana central, Ncongolo é o rei
do arco-íris e vive como uma serpente.
As
serpentes, como geradoras de vida e símbolos de fertilidade, estão presentes
nos mitos de uma grande variedade de povos. Trata-se de uma divindade muito
antiga e disseminada, praticamente, no mundo inteiro. Para os Quíchuas (povos
indígenas que habitam a Cordilheira dos Andes na América do Sul) a vida começa
na água, que é regida pela serpente Yakumama. Os dayaks, povos não-muçulmanos
de Bornéu, acreditam que, nos primeiros tempos, tudo estava preso na boca de
uma serpente aquática. Para os balineses, no início não havia nem céu, nem
terra. Foi por meio da meditação, que a serpente do mundo, Antahoga, criou
todas as criaturas. Os mitos dos povos australianos atribuem suas origens à
grande inundação provocada por uma serpente, Yurlunggur, associada ao arco-íris
e ao quartzo. Evidências arqueológicas sugerem que a elevação do nível do mar, que
se seguiu à última fase da Era do Gelo, teve grande efeito nas sociedades do
norte da Austrália. Nas ilhas Fiji é cultuado o deus-serpente Ratu-mai-mbula,
responsável pela agricultura e pelo mundo subterrâneo, onde faz a energia vital
fluir. Coatlicue, a grande-mãe asteca, deusa da vida e da morte, é representada
como uma enorme serpente. Dela nasceram, por partenogênese, os gêmeos
Quetzalcoatl e Xolotl, este último o deus da luz que conduz os mortos ao
submundo. Quetzalcoatl, cujo nome significa “serpente emplumada” ou “gêmeo
precioso”, é o símbolo da energia vital sagrada e está associado à fertilidade,
à morte e à ressurreição. Em asteca, a palavra coatl tem um duplo sentido,
podendo referir-se a serpente ou a gêmeo. A serpente emplumada é adorada por
muitos grupos indígenas mesoamericanos, tornando-se um forte símbolo religioso
e político. Nos mitos mais antigos da China figuram um casal serpente, Nü Gua e
Fu Xi, como criadores primordiais. Nü Gua é retratada com cabeça de mulher e
corpo de serpente. Ela saiu do céu para viver na terra e formou a humanidade
com lama.
As
serpentes também estavam presentes no panteão dos povos da antiguidade. Os
sumérios a chamavam de Ningizzida, a senhora da árvore da vida, ou ainda, de
Namu. Os babilônicos de Tiamat e os persas de Shahmaran, a rainha das
serpentes, com cabeça de mulher e corpo de serpente. Na Índia eram denominadas
de Anata, Vauski e Sesha, a serpente rainha das águas, reconhecida como a força
que cria e envolve a vida. Na mitologia do antigo Egito, Wadjet, deusa-cobra de
Buto (cidade próxima ao delta do Nilo), era associada à proteção; Aton, adorada
na cidade de Heliópolis, era uma divindade criadora que surgiu do caos
primitivo na forma de uma serpente; a deusa da colheita era a serpente
Renenutet; Ureaus era a deusa serpente que envolvia o Sol e Nehebkau era a
serpente primordial que protege outras esferas, além da vida. Do Egito, também,
vem a representação mais antiga do ouroboros. O principal deus do Egito, Hórus,
o deus-sol, era representado com um ouroboros acima da cabeça, como se fosse
uma coroa. Provavelmente, a primeira vez que o símbolo apareceu foi na tumba do
imperador Tutancâmon, datada do século XIV a.C.
As
serpentes mitológicas não possuem um gênero definido, tanto podem ser
femininas, como masculinas. Enquanto feminina, ela geralmente é a deusa-mãe,
associada à criação do mundo e de todas as criaturas. Como masculina, a
serpente surge como companheiro de uma deusa-mãe, como Dan era de Mawu. Fêmea
ou macho, ela surge como força criadora de todos os começos e se apresenta como
a possibilidade do fim, simbolizando o eterno ciclo da vida-morte-vida presente
em toda a natureza, tornando-se “um símbolo da origem da vida e um mistério do
além-túmulo”.
Para
Blaser, os mitos, com seus próprios critérios de veracidade e realidade,
explicitam aspectos importantes de uma cosmovisão, ou seja, os modos pelos
quais as pessoas pensam, sentem e compreendem o mundo e os seres, o que
influencia em seus modos de agir. Por acreditarem que todos os seres, inclusive
os próprios humanos, surgiram do mesmo princípio vital, os povos que cultuavam
a serpente como força criadora vital possuíam uma cosmovisão de profundo
respeito com a natureza, criando uma ética de compromisso com a preservação da
vida.
Um
dos melhores exemplos para compreender como os mitos intervêm na formulação de
cosmovisões e influenciam em modos de agir é a obra de Bachofen. A partir da
análise de várias narrativas mitológicas, que apresentam uma deusa-mãe
serpente, Bachofen criou uma hipótese (que após a utilização do método do
carbono-14 e da inclusão de novas técnicas e equipamentos refinados e modernos
nas pesquisas arqueológicas foi comprovada): que as primeiras sociedades
humanas possuíam um sistema jurídico baseado na mãe (mutter), com o predomínio
da maternidade (muttertum) e da afetividade na administração pública, tendo por
base o direito natural e sanguíneo do materno (mutterlich), diferentemente do
direito civil patriarcal, fundamentado na racionalidade. O direito materno não
pertencia a nenhum povo determinado. Antes, trata-se de um período cultural
comum, partilhado por vários grupamentos humanos, possuindo a mesma semelhança
organizacional e o mesmo caráter normativo da natureza humana. Esse sistema
organizacional, regido pelo princípio divino da vida, da concórdia e da paz,
estava baseado no amor que une a mãe aos seus filhos. A partir dos cuidados com
a criança, ainda em seu ventre, as mulheres aprenderam antes que os homens, a
importância de estender seus cuidados amorosos a um outro ser, transformando o
amor, a empatia e o cuidado nos traços éticos essenciais. As análises de
Bachofen, o levaram à conclusão de que o princípio materno é o da vida, da
unidade, da paz, da liberdade e da igualdade universais; possuindo uma
preocupação convicta e ativa com o bem-estar material e com a felicidade.
Uma
ética de cuidado e de preservação da vida sobrevive entre os povos indígenas e
afrodescendentes que habitam o Brasil. Eles percebem a natureza de forma
sensitiva, como sendo um corpo único, uma união dos elementos materiais e
imateriais, todos interligados. A compreensão do mundo e de si mesmos é
essencialmente orgânica, sendo que a fonte da vida é o paciente trabalho da mãe
Terra. A partir dessa existência integrada com a natureza, formulam mitos e
símbolos que, por sua vez, se constituem como um mundo real de energia das
forças naturais. Os quatros elementos naturais estão conectados e convergem
para a realização de todas as coisas, cujo símbolo máximo é a serpente: ela
pertence ao mundo aquático, mas transita com desenvoltura na terra e consegue
atingir os galhos mais altos das imensas árvores, enfrentando todos os reinos
da natureza (o da água, da terra e do ar), enquanto sua língua se movimenta
como uma chama de fogo.
• Quando o mito antecede a ciência
(múltiplas formas de saber)
A
serpente dual, que surge em vários mitos como fonte de vida, coincide com a
dupla hélice do DNA, a molécula da vida presente em todos os seres vivos. Foi o
antropólogo, Michael Harner, estudioso do xamanismo, um dos primeiros a
assinalar essa semelhança visual. Aliás, a descoberta do DNA corroborou com a
crença animista de muitos povos, que acreditam que todos os seres vivos são
animados pelo mesmo princípio vital. De acordo com Campbell, “em toda parte
onde a natureza é venerada como animada em si própria, ou seja, inerentemente
divina, a serpente é reverenciada como seu símbolo”.
A
imagem de duas serpentes entrelaçadas, popularizada pelo caduceu do deus grego
Hermes (Mercúrio entre os romanos), trata-se, na verdade, de um símbolo muito
mais antigo. A mais antiga representação de duas serpentes entrelaçadas foi
localizada num selo acádio datado de 2.350-2.150 a.C. Nele, figura uma
divindade humana sendo homenageada por três devotos. Ladeando a imagem, duas
duplas de serpentes entrelaçadas. Para o arqueólogo Henri Frankfort trata-se da
representação do Senhor Serpente, divindade recorrente entre os mesopotâmicos.
Outra imagem, igualmente antiga, foi encontrada num jarro pertencente, muito
provavelmente, a Gudea, mais notável príncipe da cidade de Lagas na Suméria,
tendo governado entre 2.144 e 2.124 a.C. No jarro, foi retratada a serpente
dupla Ningizzida, ladeada por dois grifos, figura mitológica com cabeça de
águia e corpo de leão.
As
similaridades entre as narrativas míticas e a ciência molecular são
impressionantes, revelando que existem várias formas de saber e que a
racionalidade antropocêntrica é apenas uma delas. Como bem afirmou Boff, os
mitos são metáforas que expressam dimensões profundas do humano. Eles lançam
luz às experiências ancestrais, onde se formaram e estruturaram, mas também se
atualizam, na medida que são confrontados com novas realidades, formando
sínteses.
O
ácido desoxirribonucleico (DNA) é formado por uma dupla hélice, que possui uma
linguagem universal de quatro compostos químicos, A, C, G e T. Trata-se de um
composto orgânico com as informações genéticas que coordenam o desenvolvimento
e funcionamento de todas as espécies, transmitindo as características
hereditárias dos ancestrais para seus descendentes, afirmando uma unidade
oculta da natureza. “O DNA e os seus mecanismos de duplicação são os mesmos
para todos os seres vivos. De uma espécie a outra, muda somente a ordem das
letras, numa constância que remonta às próprias origens da vida na Terra”,
explica Narby.
Essa
dupla hélice de proteínas possui dois metros de comprimento e fica enrolada em
si mesma, lembrando duas serpentes entrelaçadas. Essa torção só é possível
porque o ADN está em interação com a água salgada (com um teor de sais minerais
que se assemelha ao dos oceanos) que existe dentro de cada célula.
Estimativamente, o corpo de uma pessoa adulta possui mais de 30 trilhões de
células, ou seja, cerca de 60 bilhões de quilômetros de DNA. Metragem
suficiente para 5 viagens de ida e volta entre o Sol e Plutão (último planeta
do sistema solar), ou ainda, com o DNA de apenas 20 mil células do corpo
humano, seria possível dar uma volta em torno da Terra. A serpente africana
mamba-negra, que adulta chega a pesar 2 quilos e atingir 3 metros de
comprimento, possui mais de 20 mil células. Ou seja, o ADN de uma única
mamba-negra seria suficiente para contornar a Terra, o que lembra as serpentes
Dan e Oxumarê dos mitos africanos, que se enrolaram em volta do planeta. A rede
de vida à base de DNA rodeia a Terra inteira.
O
DNA é uma fonte de emissão de ondas magnéticas. Para medi-las, grande número de
pesquisadores utiliza o quartzo, por ser um excelente emissor e receptor. Não
por acaso, Yebá Buró, a Avó do Mundo na mitologia Desana, estava sentada num
banco de quartzo e criou os Homens de Quartzo. Existem sete tipos de onda
magnética (ondas de rádio, micro-ondas, infravermelho, luz visível,
ultravioleta, raios x e raios gama), o que determina a sua classificação é a
frequência e a oscilação com que as ondas são emitidas, como também o seu
comprimento. Por conta de sua frequência e oscilação, cada tipo de onda emite
uma cor. Ao todo elas formam as sete cores do arco-íris, como as serpentes
mitológicas Oxumarê, Ncongolo e Yurlunggur.
O
DNA também é um cristal de base hexagonal, mesmo que os lados sejam um pouco
diferentes entre si. As pequenas partículas de luz, geradas e emitidas por cada
célula de um ser vivo, e as bases hexagonais do ADN garantem a comunicação
entre as células e possivelmente entre as células de outros seres vivos.
Partindo dessas constatações, Narby formula a hipótese de que, sendo o
princípio vital animado, há a possibilidade de se estabelecer uma comunicação
entre o conjunto de seres vivos à base de ADN e a consciência humana: a
biosfera “é uma unidade mais ou menos plenamente interligada” e a natureza, em
seu conjunto, é capaz de se comunicar.
Ao
conviver com o povo Desana da Amazônia colombiana, o antropólogo e arqueólogo
Reichel-Domatoff localizou alguns esboços de desenho que pareciam com o cérebro
humano. Vários hexágonos, como o ADN, foram desenhados nos dois hemisférios
cerebrais e no centro deles, uma serpente ocupa a fissura. Em outro esboço, foi
desenhado um cérebro com duas serpentes entrelaçadas: uma fosca e escura e
outra de cores vivas. Para os Desana, as duas serpentes simbolizam os
princípios masculino e feminino, representando um conceito de oposição binária,
um equilíbrio de opostos, muito similar ao proposto pelo taoísmo. Elas “são
imaginadas no processo de rodar ritmicamente em volta de si mesmas, em
espirais”, coincidindo, novamente, com o DNA. Reichel-Domatoff também localizou
o desenho de uma anaconda cósmica, guiada por um cristal hexagonal. Dentro do
hexágono foi colocado o número 1 e o corpo da serpente está dividido em mais
cinco partes, do número 2 ao 6, ou seja, os Desana materializaram seu mito de
origem do mundo e do homem em iconografias.
Tantas
similaridades não podem ser meras coincidências. A descoberta do DNA confirmou
cientificamente o que mitologias ancestrais repetem há milhares de anos: o
princípio vital em forma de duas serpentes entrelaçadas é único para todas as
formas de vida e a vida se originou na água. Toda a experiência e sabedoria
humana está acumulada no DNA e pode ser acessada e reproduzida em cada impulso
ou desejo realizado por cada ser humano, reconectando-o com sua natureza
arcaica e colocando-o em sintonia com todas as formas de vida. Como bem afirmou
Ailton Krenak, “incontáveis serpentes duplas estão dentro de cada ser vivo, imersas
no ambiente líquido de cada célula. A água dentro de cada célula tem a mesma
composição da água do mar. Duas serpentes luminescentes dançam numa porção de
água do mar e viajam desde o princípio dos tempos por dentro de nossos corpos.
A vida é transformação. O futuro é ancestral”.
• A derrota da serpente: emergência de uma
relação destrutiva com a natureza
Com
a ascensão do patriarcado antropocêntrico (aproximadamente 4.000 a.C.) e da
cultura judaica (aproximadamente 2.000 a.C.), apropriada pelo cristianismo, as
serpentes se transformaram em agentes do caos. Por isso, elas deveriam ser
subjugadas, derrotadas e assassinadas, dando lugar à ordem celestial, regida
por grandes guerreiros e representada por elementos masculinos. Não raro, a
derrota das serpentes se dá com objetos fálicos, como raios, lanças e espadas.
Essas antigas divindades telúricas precisavam ser substituídas ou subordinadas
aos deuses espirituais, numa ruptura com a trajetória mitológica da serpente da
vida.
Em
Enuma Elish, um dos mitos de criação babilônico, Tiamat, a grande deusa-mãe das
águas salgadas, que muitas vezes foi representada como um dragão ou uma
serpente, foi derrotada por Marduc, transformado em rei da Babilônia por sua
coragem e bravura. Na mitologia egípcia, a serpente Apep foi assassinada com
uma lança por Seth, deus honrado em diversas aldeias do norte do Alto Egito. Na
Índia, Indra, o mais ilustre guerreiro do panteão védico e soberano de todos os
deuses, assassinou a serpente Vritra com um raio. Na mitologia grega, Zeus
assassinou a serpente Tífon, filho de Gaia, a grande mãe Terra. E Apolo, filho
de Zeus e Leto, assassinou a serpente Píton com várias flechadas. A partir de
então, o oráculo que tinha seu nome, passou a ser denominado de Delfos. De
acordo com Bachofen, o mito de Apolo, que originou a religião apolínea, muito
praticada em Roma, é o melhor representante do patriarcado antropocêntrico, que
substituiu toda uma religiosidade e organização social baseadas nas
deusas-mães, associadas às energias telúricas e representadas como
serpentes.
Para
os povos de língua germânica, que migraram para o norte e povoaram a
Escandinávia, Noruega e Islândia, os deuses, sobretudo homens, eram
responsáveis em estabelecer a ordem, as leis, a riqueza, a arte e a sabedoria
nos reinos divino e humano. Enquanto as serpentes e os dragões eram
considerados monstros gigantescos do gelo, representando uma constante ameaça à
ordem, e por estarem sempre tentando restaurar o caos, precisavam ser
subjugados. Os mitos de heróis, que mataram um grande dragão ou serpente,
integram toda a tradição do norte. O melhor exemplo é a derrota da Serpente do
Mundo, pelo deus do trovão, Thor; ou ainda, os assassinatos de dragões pelos
heroicos Beowulf e Sigurd.
Similarmente,
no judaísmo-cristão, as serpentes e os dragões também foram associados ao caos
e precisavam ser subjugados, para a restauração da ordem. Jorge da Capadócia
(275-303) é homenageado pela sua bravura e coragem no assassinato do dragão,
que mantinha como reféns todos os habitantes de Sylén, uma cidade da Líbia.
Pela sua defesa aos princípios cristãos, desafiando a autoridade do imperador
romano Diocleciano, São Jorge é considerado um dos maiores mártires do
cristianismo, tendo sido canonizado em 494, pelo Papa Gelasio I. No Gênesis, primeiro
livro da Bíblia, onde está sintetizada a doutrina judaico-cristã, uma serpente,
síntese do pecado, instigou Eva a comer o fruto da árvore proibida, por isso,
ela e Adão (e por decorrência toda a humanidade) foram banidos do Paraíso. No
Novo Testamento (coleção de livros que compõem a segunda parte da Bíblia), a
serpente foi transformada em Satanás, a personificação de todo mal.
Não
por acaso, os colonizadores europeus que chegaram à América, consideraram os
povos originários, como já tinham feito com os africanos, como povos sem
direitos civis, destinados a serem dominados e domesticados. Esses
colonizadores se consideravam os “senhores de Deus”, herdeiros das cruzadas,
que benditos pelos reis, rainhas e pelo papado católico-apostólico-romano, se
autoatribuíram a tarefa de civilizar as terras descobertas e instaurar a
racionalidade do capital, através do princípio do valor de troca e do lucro.
Muito embora eles mesmos não tivessem tamanha consciência – vez que estavam
apenas sedentos de riqueza e do domínio pela força, fizeram a conexão extensa
das redes mundiais do capitalismo, que unificou todas as regiões do planeta em
um sistema de produção e comércio mundial. A intensidade destrutiva e genocida,
impingida pelos navegadores e colonizadores do capitalismo, à natureza e aos
gigantescos contingentes populacionais da imensa ameríndia, tentou destruir,
também, todos os seus paradigmas mitológicos e cosmogônicos, implantando o
catolicismo.
O
resultado da derrota da serpente da vida foi a criação de uma cosmovisão em que
a humanidade se compreende como separada e superior à natureza. Com base no
cálculo e na subalternização, a humanidade estabelece uma relação hierarquizada
com a natureza, podendo dominá-la e destruí-la. Essa cosmovisão antropocêntrica
do patriarcalismo e do judaísmo-cristão tornou-se dominante em todo o mundo
ocidental e é o alicerce da modernidade, dificultando (muitas vezes impedindo)
a expressão de outras formas de entender e explicar o mundo, como as narrativas
míticas, reforçando seus próprios marcos de valoração.
Ao
adotar um ponto de vista exclusivamente racional, a modernidade rompeu com o
princípio vital das serpentes cósmicas. De forma paradoxal, foi exatamente essa
“ciência” racional, que herda o dualismo das concepções judaico-cristãs, que
considera os povos originários como incultos e ignorantes e despreza seus mitos
de origem, que descobriu a existência material do ADN. E, também é ela,
exatamente por ignorar outras possibilidades de conhecimento e menosprezar
outras formas de existência, que vem destruindo todas as formas de vida no
planeta Terra, seus sistemas ecológicos e toda a biosfera. Pela primeira vez na
história, o “ser humano consciente” se compreende como completamente separado
da natureza, culminando com a emergência de duas alienações fundamentais. A
primeira, que coloca capitalistas, colonizadores, comerciantes e seus agentes
como sujeitos dominadores e exploradores da natureza. E, a segunda, como
exploradores também daqueles homens integrados à natureza, tão explorados
quanto ela, criando, assim, uma divisão entre os próprios homens, a classe dos
exploradores e dos explorados.
A
modernidade foi inaugurada no século XVI, sobretudo pelo projeto de transição
teórica do pensamento medieval para o estabelecimento do domínio da razão
empreendido por René Descartes (1596-1650), considerado o primeiro filósofo da
modernidade. A filosofia cartesiana apresenta a natureza como uma soma de
componentes que podem ser separados e, por isso, dominados, controlados e
manipulados, tornando-se úteis aos seres humanos. O dualismo cartesiano opera
como um princípio gerador de pares opostos em permanente expansão, como
cultura-natureza, representação-realidade, mente-mundo. Nesse processo, o homem
passou a se reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente e universal,
movido principalmente pela razão, podendo atuar sobre a natureza e a sociedade.
No
século XVIII, com a emergência do capitalismo industrial, a modernidade,
dualista e hierárquica, já estava consolidada, aprofundando sobremaneira a
relação de exploração e dominação entre o capitalista e os trabalhadores
assalariados, assim como em relação à natureza. A partir de então, o processo
de retirada de recursos naturais acelerou-se, a tal ponto, que enormes
florestas foram devastadas, rios, mares e oceanos foram poluídos, várias
espécies animais entraram em extinção ou foram dizimadas. A natureza passou a
ser subordinada e controlada, não apenas para atender às necessidades da
sobrevivência humana, mas sobretudo, para satisfazer os desejos de lucro
incessante do capitalista. O capitalismo possui uma dinâmica marcada pela
reprodução ampliada do capital, o que significa acumulação, produção e consumo
crescentes de mercadorias e aumento de extração de mais-valor. Ora, se tudo o
que o homem precisa vem da natureza e se o capitalismo estimula cada vez mais o
consumo, inevitavelmente, institui-se uma relação destrutiva com o ambiente,
podendo levá-lo ao seu completo esgotamento. O capitalismo e sua tecnociência é
um sistema de adoecimento, destruição e morte, como afirma Fromm, pois os
processos de espoliação são constituintes e permanentes em sua dinâmica de
produção de valor. No capitalismo vigora uma racionalidade que subordina a
utilidade ao valor de troca e do controle social, que sufoca a vida e o mundo
da vida.
Para
Jason Moore, a modernidade é a idade do capitalismo, que em termos de crítica
geológica e ecológica, socioeconômica e política, pode ser denominada de
capitaloceno, pois assinala uma mudança comportamental da sociedade humana com
a natureza, concebida como algo distinto do ser humano e um objeto a ser
dominado. O capitaloceno descreve melhor os impactos humanos sobre a geologia
da Terra, reconhecendo as sociedades capitalistas (suas formas de organizar e
se relacionar com a natureza e as novas relações de trabalho) como as
responsáveis pela crise ambiental mais notável da história do planeta. Ao
colocar a natureza no centro do pensamento sobre o trabalho e o trabalho no
centro do pensamento sobre a natureza, o capitaloceno permite pensar a crise
ecológica mundial de forma mais clara e profunda, dando conta do caráter
destrutivo do capital em relação à natureza.
Desde
a crise de 2007-2008, o capitalismo vem aprofundando seus aspectos destrutivos
e autofágicos, que se tornaram mais evidentes com a generalização da pandemia
de Covid-19, em 2020. O comportamento dos Estados e governos em geral, na
defesa da vida de suas populações, revelaram, que sob relações sociais
capitalistas, não apenas as vacinas tornam-se mercadorias, mas, antes delas, as
covas nos cemitérios, os leitos nos hospitais e os respiradouros de oxigênio.
Ficou claro que o problema para as empresas e laboratórios
químico-farmacêuticos não estava (como ainda não está) relacionado com salvar
as vidas humanas. É preciso admitir, que as vacinas foram produzidas e
distribuídas em tempo recorde, mas não visando, exatamente, o bem-estar da
humanidade, pois os países mais ricos tiveram seu esquema vacinal mais
acelerado que os mais pobres. A meta da Organização Mundial da Saúde (OMS), era
que todos os países estivessem com, pelo menos, 10% da população imunizada com
duas doses de vacina, até setembro de 2021. Contudo, 50 países não alcançaram a
meta, a maior parte deles no continente africano. A Nigéria, por exemplo, o mais
populoso país da África, era o mais atrasado do continente, apenas 3% da
população havia tomado as duas doses. A situação é similar em outras regiões.
Na América Latina e no Caribe, em fevereiro de 2022, quatorze países ainda não
tinham conseguido atingir nem 40% de sua cobertura vacinal. Enquanto existirem
pessoas não vacinadas, a possibilidade de mutações viróticas mais agressivas
permanece como uma ameaça.
Essa
situação se acha coerente com dois outros fenômenos: a COP26, em 2021, e as
disputas entre as potências dominantes pela hegemonia na geopolítica mundial. A
grave crise ecológica não conseguiu sensibilizar os governantes dos países mais
poluidores do mundo, reunidos em Glasgow, a acabarem com as emissões de CO2,
nem mesmo a reduzirem. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, iniciada em março
de 2022, parece ressurgir como um trágico pesadelo da possível destruição da
humanidade. Tudo em nome do progresso, da democracia, da civilização, do bem
contra o mal. Nesse cenário, os noticiários querem convencer de que existe um
lado bom, um lado menos “inimigo”, corolário da ideia de um possível
capitalismo bom, amigo e não destrutivo.
• A sobrevivência e a resistência das
serpentes da vida: alternativas face à catástrofe
No
mundo inteiro têm ocorrido várias experiências que resgatam a sincronia entre
as sociedades humanas e o ambiente, que revivem ou reinterpretam criativamente
mitos e cosmovisões dos indígenas e tradições religiosas mais antigas,
recuperando todo um conjunto de saberes e práticas fundamentado nas serpentes
da vida. Todas essas perspectivas transformadoras, afirmam Kothari, Salleh,
Escobar, Demaria e Acosta, que buscam fazer as pazes com a Terra e a natureza
em geral, compõem um “pluriverso: um mundo onde caibam muitos mundos (…). Os
mundos de todas as pessoas devem coexistir, com dignidade e paz, sem
depreciação, exploração ou miséria”, num diálogo horizontal e harmonioso.
Esses
múltiplos mundos, mesmo que diferentes, estão conectados. As filosofias do
Agaciro em Ruanda, do Sentipensar entre os afrodescendentes de comunidades
ribeirinhas da Colômbia, os Agdals do Marrocos, o Ubuntu da África subsaariana,
o Kyosei no Japão, o Swaraj da Índia e o Hurai do povo tuvano na China são
apenas alguns exemplos de práticas integradoras e inclusivas, com elementos
afirmadores da vida e que consideram a natureza como um ser senciente com
direitos.
Sempre
aparecerão os que questionam e se perguntam como se pode considerar a natureza
como um ser de Direito, uma vez que consideram o Direito como sendo algo instituído
pela ética (o justo) e pela consciência humana, que busca regras mais perfeitas
de convivência. Marx já desmontou, de forma lapidar, a ideia de que o Direito
é, sobretudo, o fruto de uma consciência que busca justiça. Ele lembrou dos
“direitos e costumes” em comum, prática vivida naturalmente pelos camponeses
lenhadores, em várias partes da Europa, em contraposição às regras e leis
decretadas pelos reis, que começavam a fazer alianças com os terratenentes das
“enclosures”. Ao lembrar disso, ao escrever um de seus primeiros artigos de
jornal, Marx explicou que o Direito, longe de ser o fruto do espírito
iluminado, era a imposição na letra de uma instituição baseada na violência
física e militar, que assegurava o direito de propriedade e de exploração de
algo comum, fruto direto da natureza, pela classe burguesa.
De
forma geral, as iniciativas transformadoras são denominadas de “territórios e
áreas conservadas por povos indígenas e comunidades locais”. Existem, também,
várias experiências de organizações sociais, econômicas e políticas
alternativas, como a agroecologia, a permacultura, as ecovilas e a economia
solidária. A Vía Campesina, por exemplo, fundada em 1993, que agrega mais de
200 milhões de pequenos agricultores em 73 países da África, Ásia, Europa e
América, é uma forte coalizão camponesa, com a proposta de “alimentar o mundo e
esfriar o planeta”, adaptando práticas agrícolas aos ciclos naturais, por meio
de métodos agroecológicos restauradores, garantindo a soberania alimentar.
Nesse sentido, é importante destacar que, de acordo com a Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a maior parte da produção
de alimentos do mundo é fruto do trabalho de camponeses e agricultores
tradicionais de pequena escala, que realizam essa façanha com apenas 25% da
superfície agrícola total. Outro exemplo são as agroflorestas, sistemas
antropogênicos milenares, surgidos nos primórdios da agricultura, na região do
crescente fértil, e aplicado, na atualidade, de forma empírica e quase instintiva
por diversos povos nativos e pequenos produtores rurais no mundo todo. Trata-se
de uma técnica de cultivo em harmonia com a natureza, que integra a produção de
alimentos com a vegetação nativa, de acordo com os princípios da própria
natureza, que nada mais é do que a produção da vida. O resultado é a
recuperação do solo e de todo o bioma, numa lógica natural de amor
incondicional e de respeito por todas as formas de vida.
Todas
essas alternativas à modernidade racional e hierárquica buscam formar, explica
Grzybowski, uma “biocivilização”, uma civilização da vida, ecocêntrica,
diversificada e multidimensional, capaz de encontrar equilíbrio entre as
necessidades individuais e comunitárias. Na biocivilização, as lutas pela
justiça social e contra a destruição ambiental estão interligadas, porque uma
depende da outra; assim como a economia está voltada para a vida, tendo o
cuidado como seu princípio de gestão e de simbiose entre a vida humana e a vida
natural.
Faz-se
necessário superar a dualidade entre o valor de uso e o valor de troca, e
instituir um retorno ao princípio do valor de uso. As formações sociais, que se
organizarem postergando o valor de troca e a exploração do trabalho e da
natureza, herdarão um acúmulo de valores e tecnologias que, sob a base de novas
relações sociais, não terão necessidade de serem destruídas ou desprezadas. Não
há como repetir a história da evolução das formações sociais humanas de forma
eco/socialmente puras e perfeitas, mas pode-se instituir formas societais
baseadas em fundamentos que possibilitem a vida em comum, e no tratamento
adequado para renovar e deixar-se renovar a natureza.
No
Brasil, ironicamente, essa cosmovisão alternativa de superação, que busca
integrar a humanidade à natureza, se apresenta nos valores e práticas de dois
grupos de povos que, desde 1500, vêm sendo espoliados, subjugados e
marginalizados. Os mitos dos povos indígenas e africanos bem como a
religiosidade do candomblé formam uma cosmovisão de resistência, podendo chegar
a ser transformadora, à racionalidade antropocêntrica dualista e hierárquica
dominante, que subalterniza outras formas de saber. Todo um saber ancestral
sobrevive nas vivências dos povos indígenas e na religiosidade dos
afrodescendentes. É com eles que toda a humanidade pode aprender a se
reconectar com suas serpentes duplas da vida, elaborando uma cosmovisão de amor
e de compaixão, respeitando todas as formas de vida. Ao instituir um tratamento
da vida natural, respeitando suas leis de reprodução, a natureza não deixará de
permitir a reprodução da vida social/natural em comum. Ela se dará para tal e
reflorescerá com a humanidade. O fundamento da nova vida societal deve ser a
compreensão de que o planeta e seus ecossistemas são a casa do homem social. A
unidade inalienável entre homem/natureza torna-se um princípio de vida e uma
tomada de consciência superadora da destrutividade do capital.
Os
povos indígenas sempre estiveram muito atentos à natureza, se considerando como
parte dela. Ela é compreendida como ancestral à existência humana e é a partir
dela que esses povos se afirmam no mundo objetivo, aprendendo sobre o mundo e
sobre si mesmos. Essa forma de relação com a natureza incentiva atitudes de
conservação do ambiente. Zelar pela natureza significa, também, proteger quem nela
vive, ou seja, defender os direitos dos povos indígenas. As experiências de
vida dos indígenas giram em torno da natureza e dela recebem influências. Para
o povo Sateré-Mawé, por exemplo, o rio não é apenas o rio, de onde provém o
alimento de todos os dias (como os peixes), é também a morada da mãe-deusa
Iara. A terra não é apenas o solo fértil que pode ser cultivado, é também a
morada do Guaraná, chefe do povo Sateré-Mawé. O céu não é apenas o lugar dos
astros, dos planetas e de todo o cosmos, é também a morada de Tupana, o ser que
criou tudo o que existe.
Também
é do contato com a natureza, que os povos indígenas formulam todo um saber
medicinal. As folhas, as plantas e as árvores são seus parentes ancestrais. Em
1992, na Cúpula da Terra (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
o Desenvolvimento), realizada no Rio de Janeiro, o mundo já havia tomado
consciência da erudição fitoterápica dos indígenas. Empresas farmacêuticas e
biotecnológicas divulgaram, que mais de 74% dos remédios ou drogas de origem
vegetal, aproveitados na farmácia moderna, foram descobertos pelos indígenas,
que já os utilizavam, há séculos, no tratamento e na cura de doenças.
Outro
exemplo do conhecimento indígena associado à natureza é a terra preta,
encontrada em grande quantidade na Amazônia. Trata-se de um tipo de solo
antrópico (ou seja, modificado pelo homem), de alta fertilidade, rico em
fósforo, cálcio, magnésio e manganês. Nesse solo foi localizada uma quantidade
abundante de fragmentos de cerâmicas, produzidas há centenas de anos, revelando
que os povos indígenas possuem uma larga visão sobre suas atitudes, pois ao
enterrar as cerâmicas, o objetivo era criar solos de alta fertilidade. As
enormes manchas de terra preta da Amazônia possuem uma elevada biodiversidade
florestal, comprovando que as áreas de maior diversidade também são aquelas com
a presença de povos tradicionais. A terra preta é um produto, mas não o único,
do saber-fazer indígena, que pode aportar relevantes contribuições para
problemas atuais da humanidade, como a degradação dos solos. Na Amazônia, como
bem afirmam Malheiro, Porto-Gonçalves e Michelotti, vigora uma visão integrada
de floresta-solo-água-povos, o que explica a sua riqueza, transformando-a num
patrimônio biocultural de seus povos.
Conviver
com a natureza de forma sustentável sempre esteve presente na filosofia e na
prática dos povos indígenas. O avanço da crise ecológica e a iminência da
destruição da humanidade tem resgatado a importância dessa sabedoria,
colocando-a no centro das discussões e como uma forma legítima de preservação
do planeta Terra e do homem. Nesse contexto, explica Acosta, o Bem Viver surge
como uma proposta alternativa eficaz. Trata-se de uma filosofia originária dos
povos indígenas sul-americanos, preocupada com a reprodução da vida, que possui
como fundamento básico o convívio respeitoso e harmonioso entre todos os seres
vivos, formando sociedades sustentáveis e democráticas, baseadas na lógica
econômica da solidariedade, do valor de uso, no exercício da criatividade e do
pensamento crítico. O Bem Viver é um novo ordenamento social, econômico e
político, que busca uma ruptura radical com o “desenvolvimento”, o “progresso”
e o crescimento do capitalismo neoliberal, que são a raiz da crise geral
mundial. A competitividade, o consumismo e o produtivismo são substituídos pelo
consumo consciente e pela produção de forma renovável, sustentável e
autossuficiente, aspirando o bem-estar das coletividades, o que colocaria fim
às classes sociais, redefiniria os padrões culturais e as formas políticas de
gestão social geral em comum. O Bem Viver, que está fundamentado na vigência
dos Direitos Humanos e dos Direitos da Natureza, resgata os valores de uso,
abrindo as portas para uma formulação de visões alternativas de vida e de organização
econômica. É chegado o momento de as pessoas se organizarem para recuperarem e
reassumirem o controle de suas próprias vidas, não apenas defendendo a força de
trabalho e opondo-se à exploração da mão de obra, mas, sobretudo, superando
esquemas antropocêntricos de organização produtiva, que culmina com a
destruição das mais diversas formas de vida (inclusive a humana) no planeta.
Uma
cosmovisão de valorização de todas as formas de vida também está presente na
religiosidade e sabedoria dos afro-brasileiros. O candomblé é uma religião que
mantém viva toda uma sabedoria ancestral. Para sobreviver ao evento traumático
da perda de identidade e de território, os povos africanos miscigenaram, de
forma mais ou menos harmônica, os seus próprios costumes com elementos de
cosmogonias e práticas indígenas e do catolicismo popular. O resultado foi a
criação de uma cosmovisão sincrética singular, que recuperou territórios
existenciais e desenvolveu subjetividades resistentes às forças dominantes, que
subalterniza povos, culturas e saberes.
No
candomblé, os orixás são forças inteligentes da natureza, explica Martins, pois
são identificados com os elementos e manifestações naturais, e são entidades
espirituais regentes, uma vez que estão vinculados às pessoas. Para os seus
praticantes, a natureza é o elemento central no modo de perceber o divino e é
um espaço sagrado de comunhão entre o mundo material e espiritual, existindo
uma relação de pertença entre a natureza e o candomblé. Respeitando e cuidando
da natureza, se está também cuidando dos orixás, a ela vinculados em cada um de
seus elementos. Os múltiplos orixás do candomblé pressupõem múltiplas formas de
vida a serem vividas. Viver para os seus praticantes é sempre cultivar a vida
em harmonia com a natureza, com suas próprias naturezas. A falência da natureza
seria o fim dos orixás e o fim de tudo.
A
preservação e o cuidado da natureza também estão associados à realização dos
rituais, pois os praticantes do candomblé realizam seus ritos a partir de
banhos de folhas e fazem oferendas aos orixás utilizando velas de cera de
abelha, esteiras de palha, recipientes do fruto do coité, de barro e de
madeira. As oferendas são entregues nas matas, rios, mares e outros ambientes
naturais e são consideradas como uma energia sagrada, intermediando o contato
dos homens com os orixás. Cada terreiro, como são chamados os locais de culto,
possui uma grande quantidade de árvores e plantas, fornecedoras das folhas
sagradas para a realização dos rituais. Com essa prática, os terreiros são
espaços que preservam a biodiversidade e contribuem para a manutenção cultural
dos afrodescendentes. Todo o sistema religioso do candomblé está sustentado no
respeito à natureza, pois ela é sua fonte primeira, em todas as suas forças e
expressões. A correta utilização dos recursos naturais garante a prática do
candomblé não apenas no presente, mas para as gerações futuras.
Pela
cosmovisão do candomblé, tudo emana de uma única força vital, denominada de
axé, que em iorubá significa força e energia em movimento, numa espécie de
continuum ligando tudo que existe. Exatamente como as duplas serpentes do DNA.
Modulações diferentes do axé constituem tudo o que existe no universo, em
primeiro lugar, os orixás, e em seguida, todos os seres, inclusive os humanos:
“cada ser constitui, na verdade, uma espécie de cristalização ou modulação
resultante de um movimento do axé, que de força geral e homogênea se
diversifica e se concretiza ininterruptamente”, explica Goldman. Porque tudo e
todos são “modulações” da mesma força vital, o axé, é possível aos sujeitos, em
sua condição humana, estabelecerem uma relação de afeto com outras condições
(vegetais, animais ou minerais), que ultrapassa a identificação psicológica, ao
ponto de considerar que tudo o que acontece a esse outro ser, pode acontecer à
própria pessoa, orientando seus praticantes numa relação de empatia e cuidado
por todas as formas de vida. O resultado é uma cosmovisão de relações
harmoniosas e convivências igualitárias, em que todos os seres vivos podem viver
com dignidade e respeito.
As
cosmovisões dos povos indígenas e afrodescendentes surgem como possibilidades
de construção de sociedades amorosas e solidárias em completa sintonia com a
vida no planeta Terra, numa relação integradora com a natureza e com o mundo em
sua totalidade. Sociedades onde as pessoas se percebam como parte do
ecossistema e estejam em harmonia com todos os seres vivos, superando formas de
saber e práticas de existência baseadas na dominação e na hierarquia, que
vigoram no neoliberalismo. As serpentes foram o DNA da vida na cosmovisão de
inúmeros povos ao longo da história, representando, sempre, um princípio de
afirmação da vida. É preciso que este princípio se torne dominante.
Fonte:
Por Soleni Biscouto Fressato, em Outras Palavras
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