Como pobreza e
drogas têm transformado bibliotecas nos EUA
Para
alguns usuários, o objetivo é se proteger do frio ou do calor da rua, usar o
banheiro ou talvez os bebedouros. Outros estão em busca de acesso gratuito à
internet, computadores ou apenas um local para carregar o celular. Há quem
passe horas lendo jornais e livros, ou até mesmo cochilando, e também os que
procuram um lugar onde não vão sofrer assédio da polícia.
Presentes
em bibliotecas públicas ao redor dos Estados Unidos, tanto em grandes
metrópoles quanto em cidades pequenas, esses frequentadores assíduos têm uma
característica em comum: estão em situação de rua.
Em
um momento em que a população sem-teto no país é calculada em quase 600 mil
pessoas, e é comum ver calçadas tomadas por barracas em várias cidades, as
bibliotecas públicas americanas vêm assumindo um papel cada vez mais relevante
no combate aos efeitos da crise da falta de moradia.
Como
já desempenham informalmente a função de abrigo durante o dia para uma parcela
da população que não tem para onde ir, muitas vêm decidindo participar de
maneira mais ampla nas estratégias de suas comunidades para enfrentar a crise
habitacional.
Um
dos objetivos é servir de ponte entre esses usuários e instituições que prestam
serviços de moradia, saúde e educação.
Bibliotecas
ao redor do país passaram a oferecer programas específicos para esse público,
desde a contratação de assistentes sociais até o fornecimento de roupas e
produtos de higiene.
Em
várias delas, funcionários recebem treinamento para lidar com crises de saúde
mental, dependência de drogas ou até mesmo overdoses, problemas que afetam
parte dessa população.
Para
os bibliotecários, que antes tinham como foco recomendar obras e autores, a
profissão agora traz novas exigências.
“Muita
gente pensa em bibliotecas como basicamente depósito de livros”, diz à BBC News
Brasil a presidente da American Library Association (Associação Americana de
Bibliotecas), Lessa Kanani’opua Pelayo-Lozada.
“Mas,
nos últimos 20 anos ou mais, nós vimos as bibliotecas evoluírem e se tornarem
espaços comunitários”, afirma.
“E
também vimos uma mudança no tipo de habilidades que nossos funcionários
precisam para poder fazer seu trabalho”, acrescenta.
Segundo
Pelayo-Lozada, o trabalho dos bibliotecários não se restringe mais à curadoria
da coleção de livros, mas inclui também o desenvolvimento de habilidades
interpessoais e treinamento para lidar com clientes que estejam enfrentando
problemas de saúde mental, entre outros aspectos.
“Todas
essas coisas são mais recentes. E se devem, em parte, ao fato de as bibliotecas
serem espaços tão inclusivos e abertos, garantindo que todos tenham um ambiente
seguro para onde possam ir quando precisarem”, ressalta.
• Um perfil desse público
Pelayo-Lozada
salienta que as bibliotecas não coletam dados sobre a situação de moradia dos
frequentadores e, portanto, é difícil estimar o percentual de usuários que não
têm onde morar ou se houve aumento nessa parcela do público.
“Mas
os usuários de nossas bibliotecas refletem as comunidades em que vivemos, bem
como tendências sociais mais amplas. E sabemos que houve aumento na falta de
moradia, especialmente nos últimos dois anos, entre a pandemia e a recessão
iminente”, observa.
“E
sabemos também que esse público em particular costuma recorrer às bibliotecas,
porque estamos aqui para todos, e nossos serviços estão disponíveis para
aqueles que precisam, estejam ou não em situação de rua”, complementa.
Em
algumas cidades, como San Diego, na Califórnia, a imprensa local calcula que
moradores de rua formam a maioria dos frequentadores da biblioteca central.
O
aumento dessa fatia do público é fruto de uma queda no volume geral de
visitantes em anos recentes, aliada a um aumento no número pessoas sem-teto em
várias partes do país.
Um
estudo publicado no ano passado por pesquisadores da Universidade Estadual de
San Diego e da Universidade da Califórnia em San Diego afirma que “em todo o
país, as bibliotecas são cada vez mais reconhecidas como espaços públicos com
potencial para ajudar usuários em situação de rua ou instabilidade
habitacional”.
Os
autores entrevistaram 14 funcionários da biblioteca central de San Diego e 49
frequentadores em situação de rua, dos quais 51% eram homens, 43% tinham idade
acima de 50 anos e 33% diziam ter algum tipo de deficiência física ou mental. O
resultado é um retrato detalhado dessa parcela do público e de suas interações
com os bibliotecários.
Muitas
pessoas em situação de rua não querem ir para abrigos, que costumam estar
lotados e ter regras rígidas, como toque de recolher.
E
mesmo os que dormem em abrigos precisam de um local para passar o dia e sofrem
com “o estigma ou a exclusão de outros espaços públicos”, diz o estudo.
“Durante
o dia, somos todos sem-teto, independentemente de termos ou não um lugar para
dormir à noite”, resumiu um dos entrevistados que, assim como o restante, teve
sua identidade preservada.
“Se
você está em um abrigo, tem seis dias ou três dias, e depois (precisa ir para)
outro abrigo”, observou outro.
Nas
bibliotecas, onde tradicionalmente todos são bem-vindos e não há barreiras que
são comuns em outros locais, como exigência de pagamento ou apresentação de
carteira de identidade, essa parcela do público encontra um lugar acolhedor e
que proporciona estabilidade, nem que seja apenas durante algumas horas. Muitos
já estão de manhã cedo na porta, esperando o prédio abrir.
“Eu
posso simplesmente me isolar. Pegar um livro ou até mesmo um jornal e desligar
todo o resto. Você entende? Estou seguro e não preciso me preocupar em ser
roubado”, relatou um entrevistado.
De
acordo com Pelayo-Lozada, além de desfrutar de facilidades básicas, como
banheiros e cadeiras, esses frequentadores usam as bibliotecas para diversas
atividades, desde procurar empregos e enviar currículos até se conectar por
email e redes sociais com a família e amigos.
“Não
estão apenas em busca de recursos, também buscam alimentar seu lado humano,
encontrar maneiras de serem criativos”, destaca. “Vejo pessoas participando de
programas em que podem criar arte e sentir que são parte de uma comunidade.”
• Desafios para os funcionários
Segundo
o estudo em San Diego, as bibliotecas representam “uma oportunidade única” de
atender uma parcela da população muitas vezes oculta e vulnerável, e que
geralmente “carece de recursos adequados para os múltiplos riscos que
enfrentam”, como insegurança alimentar, dependência de drogas e transtornos
mentais.
Mas
esse novo papel das bibliotecas representa um desafio para os funcionários, que
nem sempre são capacitados para ajudar esse público. Enquanto alguns dos
bibliotecários entrevistados no estudo disseram que esta “não é sua função ou
propósito”, outros manifestaram a vontade de ter mais treinamento e
“informações para encaminhar esses usuários aos serviços apropriados”.
A
epidemia de opioides que afeta os Estados Unidos de maneira geral, com mais de
100 mil mortos por overdose a cada ano, também impacta diretamente a população
de rua. Conforme o estudo, há um aumento recente em casos de overdoses e até
tentativas de suicídio em bibliotecas do país.
“Os
funcionários podem nem sempre estar preparados para lidar com a miríade de
desafios sociais que seus usuários enfrentam, como overdose de opioides e
crises de saúde mental que ocorrem no local”, dizem os autores.
Nos
últimos anos, várias bibliotecas no país passaram a treinar seus funcionários
para administrar Narcan, um medicamento capaz de reverter overdoses.
Algumas
também passaram a contratar agentes de segurança pública treinados para
identificar, intervir e prevenir crises de saúde mental, outro problema que
muitas vezes afeta pessoas em situação de rua.
É
importante que os funcionários não apenas estejam capacitados para auxiliar
esses frequentadores em aspectos práticos, como navegar a burocracia envolvida
no acesso à moradia ou outros serviços, mas também desenvolvam empatia.
“Algo
que tentamos enfatizar com os funcionários é que não podemos julgar alguém por
sua aparência. Então, não sabemos se (determinados usuários) estão em situação
de rua ou algo assim até que venham falar conosco”, destaca Pelayo-Lozada.
“Uma
das coisas importantes que devemos fazer regularmente é desenvolver
relacionamentos com nossos clientes, independentemente de seu histórico. Para
que, quando precisarem de algo, sintam-se à vontade para vir até nós”, afirma.
De
acordo com o estudo em San Diego, é comum que usuários em situação de rua
pensem que não se qualificam para os serviços disponíveis ou não saibam onde
obter ajuda. Para muitos, as bibliotecas são um primeiro ponto de contato, a
partir de onde podem ser encaminhados a serviços de moradia, saúde, tratamento
para dependência de drogas e outros.
Cada
biblioteca tem um modelo diferente, de acordo com a comunidade onde atua e os
recursos disponíveis.
Em
2012, a biblioteca pública de Tucson, no Arizona, foi a primeira do país a
contratar um enfermeiro especializado em saúde pública, responsável por
serviços que vão desde primeiros socorros até ajudar usuários a se inscrever
para planos de saúde.
Em
várias cidades, como Las Vegas ou Salt Lake City e outras, as bibliotecas
oferecem roupas e kits de higiene. Em muitas, como Chicago ou Denver,
funcionários costumam ajudar quem precisa a preencher formulários para acessar
serviços de moradia, fazer currículo para procurar emprego ou simplesmente
aprender a usar computadores e outras tecnologias.
“Nos
últimos anos, houve um aumento no número de bibliotecas com assistentes sociais
na equipe, para ajudar pessoas que podem estar em situação de rua ou
enfrentando outros problemas”, afirma Pelayo-Lozada.
“Frequentemente
também fazemos parcerias com outras entidades públicas e sem fins lucrativos
para conectar as pessoas a informações e recursos de que precisem.”
• O exemplo de Washington
A
capital americana é uma das cidades que vêm ampliando os serviços oferecidos em
suas bibliotecas aos usuários em situação de rua.
Em
2014, o sistema de bibliotecas públicas de Washington foi um dos primeiros do
país a contratar uma assistente social em tempo integral, após iniciativa
semelhante alguns anos antes em San Francisco, na Califórnia.
Essa
assistente social, Jean Badalamenti, atua como gerente de saúde e serviços
humanos do sistema que inclui 26 bibliotecas públicas ao redor da cidade e é
parte do governo municipal.
Calcula-se
que cerca de 4,4 mil pessoas em Washington não tenham onde morar, segundo os
dados mais recentes, do ano passado.
Em
entrevista à BBC News Brasil na biblioteca central da cidade, que leva o nome
do líder de direitos civis Martin Luther King Jr., Badalamenti conta que sua
missão ao assumir o cargo era descobrir maneiras de usar os recursos e
especialistas já disponíveis na comunidade para ajudar os clientes sem-teto.
“Quando
cheguei, há nove anos, o número de pessoas em situação de rua na cidade vinha
crescendo. Ao mesmo tempo, a biblioteca havia contratado cerca de cem novos
funcionários, muitos dos quais estavam pela primeira vez trabalhando em uma
biblioteca pública urbana”, lembra.
Uma
das iniciativas foi familiarizar os funcionários sobre os recursos disponíveis
na comunidade, como banco de alimentos, locais para tomar banho, doação de
roupas e outros serviços, para que pudessem orientar melhor os usuários em
situação de rua.
A
equipe também recebeu treinamento para entender de maneira mais profunda a
crise habitacional na cidade.
Entre
as várias medidas adotadas para demonstrar às pessoas em situação de rua são
que são bem-vindas nas bibliotecas da cidade está a distribuição de kits com
produtos como xampu, sabonete, escova e pasta de dente, absorventes íntimos,
máscaras, gorros, meias e luvas, entre outros.
Qualquer
visitante pode pedir um kit, e os funcionários também tomam a iniciativa de
oferecer a usuários que demonstram precisar desses produtos. Um funcionário
lembrou recentemente da alegria de um homem que usava sacos plásticos para
aquecer os pés ao ser abordado e receber meias novas.
Outro
programa bem-sucedido em Washington é o chamado Coffee and Conversation (Café e
Conversa), aberto a todos, no qual funcionários conduzem uma conversa informal
sobre assuntos variados, com direito a um cafezinho.
“O
objetivo era achar maneiras de reunir pessoas com e sem moradia para conversar,
e a biblioteca é o lugar perfeito para isso”, diz Badalamenti.
Um
dos principais programas trazidos por Badalamenti, e que também já foi adotado
por outras cidades, envolve contratar e treinar pessoas que no passado viveram
como moradores de rua, para que possam ajudar os usuários atualmente nessa
situação.
A
iniciativa é conjunta com o departamento municipal de Saúde Comportamental, e
faz parte de um esforço maior da cidade para combater a falta de moradia.
“São pessoas que já viveram a experiência de
estar em situação de rua, (muitas vezes) lidaram com problemas de saúde mental,
dependência de drogas, encarceramento”, afirma Badalamenti. “Eles interagem
diretamente com os frequentadores que podem estar precisando de algum tipo de
ajuda, são muito conhecidos na comunidade (de serviços aos sem-teto).”
Além
da empatia de quem já passou pela mesma situação, esses funcionários têm a
experiência de já terem decifrado a burocracia muitas vezes difícil para
acessar os diferentes serviços disponíveis para essa parcela do público.
Chamados
de “pares”, eles ajudam os usuários a se conectar com serviços de saúde mental,
abrigos, receber tratamento, obter documentos e várias outras tarefas.
Segundo
Badalamenti, muitos dos usuários ajudados pelos “pares” acabam conseguindo se
mudar para habitação permanente.
“Conseguimos
conectar muitas pessoas com serviços de moradia, e vimos pessoas mudarem da rua
para abrigos, de lá para moradias transitórias, e então para habitação
permanente”, salienta.
• ‘São pessoas como você e eu’
Um
dos desafios das bibliotecas é atender às necessidades da parcela mais
vulnerável dos clientes de maneira respeitosa e sem alienar os outros
frequentadores.
“Temos
de equilibrar as necessidades de todos os membros da comunidade, o que é
complexo e delicado. Para garantir que todos se sintam seguros e tenham seu
espaço”, ressalta Pelayo-Lozada.
“Assim
como em outros espaços públicos, usuários e funcionários podem encontrar
pessoas se comportando de maneira inapropriada ou ilegal”, afirma.
“Oferecer
treinamento para que nossos funcionários sejam capazes de lidar com essas
situações é cada vez mais importante”, acrescenta.
O
fato de alguém estar em situação de rua não significa que vá causar problemas,
e os funcionários se esforçam para não estigmatizar essas pessoas.
O
foco não é no histórico dos usuários, e sim em comportamentos, vindos de
qualquer pessoa, que possam perturbar os outros, como uso de drogas nas
dependências, agressividade ou até mesmo ronco alto ao cochilar.
Há
relatos na imprensa americana de casos de conflito. Em Anaheim, na Califórnia,
um morador de rua foi preso no ano passado após derrubar um funcionário da
biblioteca central com um soco, em um incidente documentado em vídeo.
Nos
últimos meses, bibliotecas nas cidades de Boulder e Englewood, no Colorado,
tiveram de ser fechadas temporariamente para passar por um processo de “limpeza
especializada” depois que testes revelaram contaminação por metanfetamina em
algumas áreas, como os banheiros.
Em
anos recentes, diversas cidades, entre elas Chicago, San Francisco e Seattle,
registraram reclamações de moradores por causa de acampamentos de sem-teto nas
áreas externas de algumas bibliotecas, como estacionamentos.
Mas
funcionários ouvidos no estudo em San Diego ressaltam que muitos dos usuários
em situação de rua “valorizam tanto a biblioteca que são quase um par extra de
olhos e ouvidos” e que “se surgir um problema, eles ajudam, porque não querem
que a biblioteca tenha problemas” e querem “preservar o ambiente seguro” do
qual desfrutam.
“De
nossa perspectiva, temos todos os tipos diferentes de clientes”, salienta
Badalamenti. “Para mim, o mais importante é (ressaltar) que as pessoas em
situação de rua são pessoas como você e eu.”
A
assistente social diz que, nas bibliotecas em Washington, reclamações por parte
de outros usuários incomodados com a presença de moradores de rua são raras.
“Talvez,
de tempos em tempos, alguém reclame”, afirma. “E minha resposta é: ‘Se você
está preocupado com as pessoas em situação de rua na biblioteca pública, eu
sugiro que entre em contato com seu vereador e converse com sobre moradias mais
acessíveis na cidade’.”
Fonte:
BBC News Brasil
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