Como a mineração de
bauxita vem expulsando, envenenando e matando quilombolas no Pará
Território tradicionalmente quilombola, o município de Barcarena, no Pará, pouco viu do desenvolvimento que lhe foi prometido com a instalação do complexo industrial que recebeu várias empresas de mineração — em especial Imerys e Albras Alunorte, empresa norueguesa hoje conhecida como Norsk Hydro.
Isso
ocorreu em 1979, quando o Governo Federal — na época uma ditadura militar —
criou a Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), responsável pela
implantação do complexo. Em pouco tempo, as mudanças no território foram acontecendo
para que as empresas pudessem operar de acordo com a demanda de um mercado
influenciado por um Estado que tinha pressa em transformar a Amazônia em um
ativo que só beneficiaria as mineradoras e seus empreendimentos nocivos ao meio
ambiente e à vida.
Os
acidentes ambientais vêm ocorrendo há anos em Barcarena, com três episódios
registrados de despejo de rejeitos de bauxita — altamente tóxicos — nos rios
Murucupi e Pará: em 2009, 2014 e 2018. O último levou a uma CPI que teve como
resultado várias recomendações ao Ministério Público Federal, além de
indiciamentos por crimes ambientais. A Hydro sempre negou de forma catedrática
qualquer acusação, mesmo com provas apresentadas por estudiosos e pela
população atingida.
Antes
da Codebar, o território onde se situa o município era território quilombola. O
documento mais antigo de legitimação de posse da terra data de 1986, onde se lê
que o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) detém direitos sobre a terra através
do adquirente Manoel Joaquim dos Santos, antecessor das principais lideranças
quilombolas que hoje lutam pelo direito de existir no território.
Um
desses líderes é Valter Bubuia, hoje à frente do quilombo Gibrié do São
Lourenço. Segundo ele, a invasão das mineradoras só foi possível porque, na
época, a Codebar não fez política fundiária na região. “Naquele tempo era
difícil avançar com negociação. Quem tinha documento conseguia, mas quem não
tinha dançava”, disse ele à Mongabay.
Hoje
o documento de 1986, considerado coletivo, é sua arma para reaver as terras
desapropriadas pela Codebar na época. “Eles não vão deixar a gente titular
porque dessa forma eles não conseguem vender ou negociar as terras no futuro”,
afirma Bubuia. “São mais de 300 famílias lutando pra existir.”
• Lideranças apontam cumplicidade da
prefeitura
Roberto
Cravo, conhecido como Chip, é uma das principais lideranças quilombolas em
Barcarena e conta que os problemas enfrentados pelo seu povo vão além da
contaminação pelas mineradoras. Ele relatou à Mongabay que há um consórcio
entre prefeitura e mineradoras que remonta ao início do processo de crescimento
de Barcarena, sob o comando da Codebar, e que ignorou por completo a existência
dos territórios quilombolas.
Segundo
ele, a primeira invasão foi no distrito de Vila dos Cabanos, onde foi
construída a estrutura para acomodar a elite de funcionários das empresas de
mineração. Só eles poderiam ter acesso à vila. Até as escolas passaram a ser
frequentadas apenas por filhos de funcionários. A questão, aponta Chip, é que
essas terras pertenciam historicamente aos quilombolas — incluindo o terreno
onde hoje é o quartel do 14° Batalhão da Polícia Militar.
“Se
você fizer uma pesquisa arqueológica nessas áreas onde se encontra o Batalhão e
o Cabanos Club, você vai encontrar artefatos que comprovam e legitimam nossa
preexistência nesta região”, diz Chip. Segundo ele, a prefeitura de Barcarena
usou de má-fé na ocasião, dado que estava ciente do processo de mapeamento e
demarcação da terra que estava sendo feito pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária) em favor dos quilombolas.
“Quando
o Incra terminou o trabalho, a prefeitura construiu um muro ao redor do local
que o Incra delimitou para a titulação, e que impossibilita nosso acesso à
área”, explica Chip. “Eles construíram em tempo recorde e colocaram uma placa
lá que diz que a área é de preservação e de propriedade do município de
Barcarena. A prefeitura invadiu o terreno que o Incra garantia que era nosso.”
Entre
as decisões arbitrárias da prefeitura de Barcarena, a mais recente foi a
tentativa da empresa Águas de São Francisco de desocupar uma área onde
funcionava uma unidade de tratamento de esgoto que estava instalada em
território quilombola. A empresa chegou a derrubar algumas casas, expulsando
famílias do local na época em que a pandemia de covid-19 estava em seu período
mais mortal, mas o Supremo Tribunal Federal, através do ministro Eduardo
Fachin, deu ganho de causa para as famílias por se tratar de área na qual nem a
prefeitura, nem a empresa de saneamento conseguiram comprovar posse.
“Isso
é uma derrota muito grande pra prefeitura, que agiu de forma truculenta com
aquelas famílias e inclusive mentiu na televisão e nas redes sociais, falando
que as pessoas daquela área queriam o terreno pra venda”, afirma Chip. “Morava
gente lá e eles derrubaram casas com móveis dentro sem ordem judicial nem nada.
Sem comprovação de posse.”
• Rios contaminados, feridas na cabeça
Em
2018, Damiana Oliveira dos Santos notou que havia uma falha no couro cabeludo
da filha Rebeca, de apenas 4 anos. Os cabelos encaracolados da menina estavam
caindo, e onde antes havia pêlos agora eram feridas. Ela e seu marido levaram a
filha para o hospital em Belém e, ao chegar, Damiana, que vinha sentindo
náuseas, desmaiou. Sua pressão estava alterada. No hospital, descobriu que sua
cabeça também estava cheia de erupções.
“Tivemos
que raspar o nosso cabelo. Toda a comunidade chorou quando viu nossa filha e eu
carecas”, disse ela à Mongabay em sua casa, situada a apenas 3 km do complexo
industrial da Hydro. “Fomos buscar nossos exames e ninguém nos disse o que
significavam aqueles números. Hoje a gente sabe.”
O
que elas agora sabem, e os estudos comprovam, é que tudo em Barcarena —
pessoas, solo, ar, água e peixes — apresenta indícios de contaminação. A origem
seriam os dejetos químicos despejados pelas mineradoras nos rios da região.
Metais como alumínio, chumbo e níquel estão presentes em laudos médicos de
institutos como Evandro Chagas e laboratórios como o Laboratório de Química
Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará (Laquanam/UFPA).
Os
sintomas de contaminação incluem coceira, dores de cabeça, enjoo, diarreia,
dores intestinais, episódios de esquecimento recorrentes, feridas pelo corpo,
pele fina quebradiça e vários casos de câncer. A Norsk Hydro nega que esses
casos tenham relação com suas atividades.
A
química Simone de Fátima Pinheiro Pereira, coordenadora do Laquanam, tem mais
de 40 anos de pesquisa na área de mineração, 15 deles acompanhando de perto os
crimes ambientais praticados em Barcarena. Em 2012, a pedido do Ministério
Público Federal, ela analisou a água usada para consumo na região. O resultado
foi estarrecedor.
“Eu
analisei a água de 26 comunidades e a água de 24 delas estava contaminada por
chumbo”, contou ela à Mongabay. “Água, peixes, plantas, sedimentos do rio: tudo
que eu coletei para análise estava contaminado. Fiz análise dos cabelos das
pessoas da comunidade também e encontrei números 27 vezes acima do meu
controle”, disse ela, comparando a índices de pessoas fora da área de estudo.
Simone
relata que as duas empresas que mais impactam essa região são Hydro e Imerys. A
primeira, até recentemente, possuía a DRS1, uma área de depósito de resíduos de
bauxita, instalada perto das comunidades quilombolas. A barragem foi desativada,
mas os milhões de toneladas de lama vermelha tóxica continuam lá. Quando chove,
a lama transborda e vai para os rios do entorno, o Murucupi e o Pará,
carregando com ela metais como cromo, chumbo e níquel — todos cancerígenos,
caso o indivíduo seja exposto por muito tempo.
“Fui
coletar na Hydro a lama vermelha para análise a pedido do Ministério Público
Federal, mas eles me proibiram de divulgar os valores da análise”, conta
Simone. “Mesmo com ordem do MPF, eles me ameaçaram de processo caso eu
analisasse. Cheguei a coletar, mas tive que assinar um termo de
confidencialidade. A Hydro está no mundo todo e para eles um processo não é
nada.”
• Lideranças ameaçadas, doenças e
expulsões
“Era
pro meu marido estar aqui comigo. Ele era minha vida. Vi meu marido perder um
pé e ficar numa cadeira de rodas por causa desse desenvolvimento desenfreado”,
conta Maria do Socorro Costa da Silva. Conhecida como Socorro do Burajuba, ela
é uma das mais importantes lideranças de Barcarena.
Enquanto
mostra os laudos do Instituto Evandro Chagas e da UFPA que detectam a presença
excessiva de metais pesados em seu cabelo, ela nos conta o que aconteceu a seu
marido, que teve a diabetes agravada pela contaminação: “Ele começou a coçar os
olhos, dizendo que não estava enxergando bem. Em 2008, ele começou a emagrecer,
mas a gente não desconfiou de nada. Em 2009, houve mais um transbordo de lama,
mas continuamos consumindo a água até que vieram equipes da universidade pra
fazer exames na gente. Entre 2012 e 2015, a gente teve a confirmação oficial de
que a água estava contaminada. Se passaram dez anos nessa luta. Ele não
aguentou. Se foi.”
A
própria Socorro coça muito o corpo enquanto conversa com a reportagem. Nos
mostra sua pele fina e cheia de áreas vermelhas e conta que parte da população
de Barcarena está como ela. Nem por isso, Socorro do Burajuba deixou de lutar.
Levou as reivindicações quilombolas, inclusive, para além das fronteiras do
Pará e do Brasil, movendo uma ação coletiva de 40 mil pessoas afetadas pela
produção de alumínio. A ação foi aceita pela Holanda, onde seguirá para uma
decisão de mérito na Corte de Roterdã.
A
Mongabay entrou em contato com a Norsk Hydro perguntando sobre a ação na
Holanda, ao que a mineradora respondeu que “o caso apresentado na Holanda está
relacionado a questões locais no Brasil, que já estão sendo discutidas nos
tribunais brasileiros. O caso é apenas um derivado das mesmas acusações contra
as entidades brasileiras. A Hydro apresentará sua defesa de acordo com o
processo definido pelo Tribunal”.
A
Hydro acrescentou ainda que “nega veementemente as alegações apresentadas pelos
autores da ação. A empresa está comprometida em ser um bom vizinho, agindo com
responsabilidade e colocando a saúde, meio ambiente e segurança em primeiro
lugar onde quer que opere. As atividades da Alunorte e da Albras na região
estão devidamente licenciadas e as operações das plantas são monitoradas e
auditadas pelas autoridades.”
A nova política eco social. Por Liszt
Vieira e Renato Cader
“A
sustentabilidade não é só econômica, não é só ambiental, ela é também social e
é também política.” Essa declaração da ministra Marina Silva na reunião de 16
de janeiro no Fórum Econômico de Davos, na Suíça, demonstra claramente que a
nova política ambiental deve perseguir a perspectiva da transversalidade, em um
processo dialético entre os diversos setores, desde o agronegócio até a
indústria de transformação. O grande desafio é fazer com que os problemas
socioambientais e seus equacionamentos conduzam a ações que contribuam para o
desenvolvimento econômico com comprometimento socioambiental. Para que isso
aconteça, a nova política deve partir da reconstrução de tudo aquilo que foi
desmantelado nos últimos anos.
O
quadro é deplorável e urge agir com fundamentos técnicos e científicos para uma
rápida transformação dos indicadores e metas socioambientais. A gestão atual já
se inicia com a perspectiva de formular políticas públicas com base nas evidências
e fatos da realidade. Os dados apresentados no Relatório de Transição
demonstraram que é preciso empreender esforços redobrados para reverter um
quadro de destruição de marcos regulatórios, de controle e de participação
social nas políticas ambientais. Foi como um tsunami que trouxe consequências
nefastas, como 60% de aumento do desmatamento na última gestão, a maior taxa
que já ocorreu em um mandato presidencial, desde o início das medições por
satélite, em 1988.
Temos
diante de nós um robusto repertório de dados que só reforçam a urgência de uma
nova política ambiental. Apenas 0,4% do Cadastro Ambiental Rural foi validado,
enfraquecendo sobremaneira a aplicação do Código Florestal. E a situação ainda
fica mais grave com a escassez de recursos orçamentários e humanos. O Fundo da
Amazônia, na gestão passada, teve mais de R$ 3,3 bilhões paralisados e o quadro
de servidores do Ministério do Meio Ambiente e de suas autarquias encontrava-se
com mais de 2 mil cargos vagos. É patente a necessidade de reforçar a
capacidade institucional para que a nova política ambiental consiga atingir
níveis satisfatórios de performance.
As
mudanças climáticas se destacam cada vez mais como eixo primordial da nova
política ambiental e isso ficou claro no discurso da ministra Marina na COP 27,
no Egito, e em medidas já adotadas e em andamento, como a nova nomenclatura do
Ministério do Meio Ambiente, passando a se chamar “Ministério do Meio Ambiente
e Mudança do Clima”, bem como a previsão de criação da Autoridade Nacional de
Segurança Climática na nova estrutura do Ministério.
A
meta do desmatamento zero aliada à criação de uma Secretaria Extraordinária de
Controle do Desmatamento e Ordenamento Territorial e Fundiário anunciados pela
ministra Marina demonstram o ambicioso e necessário caminho que a política
ambiental deve seguir. A postura e a imagem internacional da nova ministra
constituem um diferencial nessa empreitada. Seu discurso em Davos sobre o Fundo
da Amazônia e os apoios anunciados por diversos países já demonstram a retomada
do protagonismo brasileiro na política ambiental em escala global.
A
nova política ambiental deve demonstrar que é possível promover o
desenvolvimento econômico tendo a dimensão socioambiental como elemento
constitutivo de novos modelos nas políticas púbicas e empresariais. A economia
de baixo carbono deve ser compreendida como vantagem competitiva, haja vista
seu potencial para gerar produtos e serviços com reduzidas emissões de carbono,
contribuindo para as medidas de mitigação e adaptação das mudanças climáticas.
Há
muito a ser feito e o novo governo já colocou o pé no acelerador inaugurando
uma nova forma de fazer política ambiental, com o foco na promoção da
infraestrutura para o desenvolvimento sustentável e na transversalidade,
dialogando com as diversas políticas setoriais. Isso aconteceu recentemente com
a rápida resposta do governo decretando emergência em Saúde Pública para
atender os Yanomamis, vítimas de uma política genocida.
Essa
perspectiva vai além, alcança uma cooperação coletiva, envolvendo sociedade
civil, comunidade científica, servidores públicos e também a cooperação
internacional, como foi o caso do uso do Fundo da Amazônia para apoiar a
população Yanomami, anunciada pela ministra Marina em entrevista coletiva no
dia 30 de janeiro.
De
fato, a transversalidade e a cooperação internacional são questões chaves na
perspectiva da nova política ambiental. Um dos desafios atuais é a proposição
de políticas e ações ancoradas nos chamados Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ODS), da ONU, com os quais o Brasil e mais 192 países membros se
comprometeram como signatários. Se no governo anterior essa agenda foi
ignorada, é hora de retomá-la com novos paradigmas.
Os
ODS são um chamado para a ação com o objetivo de alcançar o fim da pobreza, a
proteção da biodiversidade e dos recursos naturais do planeta e garantir paz e
prosperidade a todas as pessoas até 2030. Para isso, será necessária a adoção
de um plano de ação global composto por dezessete objetivos, com um conjunto de
metas que pressupõem a atuação sistêmica envolvendo diversas categorias e
finalidades, o que demanda ações integradas e transversais.
Essa
nova política socioambiental deve ser pensada, formulada e colocada em prática
sob uma ótica que vai muito além da dimensão ambiental stricto sensu. Deve ser
concebida a partir de uma visão sistêmica de sustentabilidade, com foco na
erradicação da pobreza, na educação e saúde de qualidade, na agricultura de
baixo carbono, na igualdade de gênero, na energia limpa e acessível, na produção
e consumo sustentável, na redução da emissão de gases de efeito estufa,
responsáveis pela crise climática que ameaça a sobrevivência da humanidade.
Essa perspectiva exige um esforço de articulação e sinergia entre diversos
atores e, com esse objetivo, a ministra Marina já anunciou a criação de um
Conselho, ligado ao presidente Lula, com a participação de todos os
ministérios, da sociedade civil, além dos estados e municípios.
Lembrando
o filósofo Felix Guattari, a crise do mundo contemporâneo só pode ser
enfrentada com uma revolução político-social a partir de uma articulação entre
as três ecologias: a do meio ambiente, a das relações sociais e a das ideias. O
objetivo é reorientar a produção de bens materiais e simbólicos. Como o poder
repressivo é introjetado pelos oprimidos, é necessária uma visão
transversalizante de sustentabilidade, abrangendo elementos ambientais, sociais
e culturais. Ou seja, trata-se de construir uma nova política eco social.
Assim,
a nova política ambiental é a busca da sustentabilidade no plano econômico,
social, ambiental, político e cultural, com o objetivo de transformar o Brasil
num país economicamente próspero, socialmente justo, politicamente democrático,
culturalmente diverso e ambientalmente sustentável.
Fonte:
Mongabay/Le Monde
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