Banco Central, juros e independência: em defesa de Lula
Depois
de ter escrito Brasil Delivery[ 20 anos atrás, jamais
imaginei que escreveria um artigo com o título deste. Eu argumentava ali que a
política macroeconômica de Lula era mais realista que o rei, aprofundando os
princípios neoliberais que haviam guiado o governo anterior, sobretudo aqueles
que prevaleceram no segundo mandato de Fernando Henrique (depois do abandono do
câmbio fixo e da adoção do regime de metas de inflação). De fato, Lula iniciara
seu primeiro governo com um pacote pesado de medidas (elevação da Selic de 22
para 26%, elevação da meta de superávit primário para 4,25% — quando
o exigido pelo FMI era 3,5% — e forte arrocho monetário que,
do dia para noite, via elevação do compulsório dos bancos, cortou cerca de 10%
dos meios de pagamento da economia), então justificadas pela necessidade de
driblar um suposto descontrole monetário, que ameaçava trazer de volta a
inflação, e mais uma crise externa, que estaria colocando a economia brasileira
“à beira do precipício”, correndo o risco de se “desfazer como gelatina” ou
“derreter como manteiga” (eram essas as expressões da parceria mercado
financeiro/mídia mais utilizadas à época).
A
verdade é que o terrorismo econômico correu solto ao longo de 2002,
apresentando intensidade cada vez maior à medida que iam se consolidando as
perspectivas de vitória de Lula e do Partido dos Trabalhadores. A maior
evidência desse terrorismo foi o valor alcançado pelo dólar ao final daquele
ano, uma marca até hoje não superada, se a considerarmos em termos reais.
Assim, Lula ganhou mas não levou, aliás, começou a ganhar perdendo ainda antes
do pleito, quando assinou a Carta aos Brasileiros, o salvo-conduto exigido pelo
mercado para que o futuro presidente fosse aceito.
Relembro
esses fatos não só porque nos ajudam a entender melhor o tumulto hoje criado
pelos recorrentes reclamos de Lula com relação à atuação do Banco Central,
senão também para evidenciar há quanto tempo o país é refém da riqueza
financeira e de seus imperativos. Depois do pacote mais realista que o rei,
atravessamos todo o restante da década dos anos 2000 como os campeões do mundo
em termos de taxa real de juros, que chegou a inacreditáveis 12% em meados de
2005, deixando em seu rastro o aprofundamento da desindustrialização precoce do
país. A boa imagem que, ainda assim, os dois mandatos de Lula conseguiram
construir perante a população, deveu-se aos programas sociais de forte impacto
que adotou e ao boom internacional de commodities que
caracterizou o período.
Depois
da complicada quadra Dilma-golpe-Temer-Bolsonaro, cá estamos nós no mesmo
ponto, com as mesmas explicações de sempre para novamente termos assumido o
primeiro lugar no ranking mundial dos pagadores de juros.
Aliás, sobre isso é interessante notar o comportamento sui generis do
mandato de Bolsonaro: as médias anuais das taxas reais de juro mensais
anualizadas de seu mandato foram anormalmente baixas para o padrão do país,
mesmo se desconsiderarmos os dois anos mais afetados pela pandemia (2020 e
2021): 2,18% para 2019, -0,39% para 2020, -3,21% para 2021 e 3,07% para
2022.
Considerados
tais números, é o caso de perguntar por qual razão a média terá que subir para
7,5% em 2023 (que é o que acontecerá se o Copom insistir em manter a meta da
Selic até o final do ano em 13,75%). Por que temos que ser os campeões do
mundo sem ter ninguém que nos ameace nem de perto? O país que se encontra em
segundo lugar tem uma taxa real de pouco mais de um terço da nossa — o México
com 2,8%. Os economistas ortodoxos, os operadores do mercado e a mídia que lhes
concede espaço exclusivo põem na roda, repetida e incansavelmente, o samba de
uma nota só chamado credibilidade (no caso, para eles, a falta dela). O vilão
da história desta vez (já que não temos problemas com as contas externas) é o
descontrole fiscal, acompanhado do repique inflacionário iniciado em meados de
2021.
Só
que os argumentos são frágeis: as contas públicas vêm obtendo resultados
melhores (em 2022 superávit de 1,3% do PIB e relação dívida/PIB apresentando
leve declínio) e as pressões inflacionárias, decorrentes de fatores totalmente
exógenos (política chinesa que desordenou as cadeias globais de valor e
conflito na Ucrânia), parecem estar arrefecendo desde meados do ano passado. No
mundo todo as taxas de juros subiram? É verdade, mas países com taxas de
inflação muito semelhantes à nossa, como Índia, Coreia do Sul e Canadá
apresentam taxas reais muitíssimo mais baixas, ou mesmo negativas (0,7% na
Índia, -1,6% na Coreia do Sul e -1,7% no Canadá).
Ah,
sim, o problema está nas expectativas, que podem “desancorar” se a Selic cair.
Qual é a racionalidade desse tipo de argumento? Podemos encontrá-la na
chamada “função de reação do Banco Central”, rezando que a taxa de juros é o
fator determinante da credibilidade da política monetária (ou seja, do grau de
crença dos agentes na capacidade do Banco Central de manter a inflação em
valores próximos à meta), a qual, por sua vez, influencia as expectativas
inflacionárias dos agentes, que vêm a constituir um dos principais
determinantes da própria taxa de juros. Assim, se a credibilidade é alta,
as expectativas dos agentes permanecem próximas à meta estipulada, com
perspectivas favoráveis quanto ao alcance da estabilidade monetária. Caso
contrário, “desancoram”, e apontam para um cenário de incerteza com relação ao
controle monetário da economia.
Não
é mister muita argúcia para perceber que o modelo é autorreferenciado: as taxas
de juros dependem das expectativas que dependem da taxa de juros. Mais
importante, porém, isso não constitui uma explicação efetiva do nível em que se
encontram as taxas básicas a cada momento. Diz apenas que fica justificada
qualquer taxa de juros que promova a convergência das expectativas em relação à
meta de inflação. Como as expectativas aqui presentes são aquelas dos agentes
que operam no mercado financeiro (Boletim Focus), é o caso de perguntar de quem
é mesmo que a autoridade monetária precisa ser independente. Evidente que um
Banco Central passivo e submisso aos desejos do mercado vai colocar a taxa de
juros no nível que for necessário para que os agentes se sintam confortáveis e
não “desancorem suas expectativas”.
Aqueles
que pensam estar discutindo teoria retrucarão que a conclusão não procede,
porque existe uma outra variável na função de reação: o hiato do produto.
Ocorre que tal variável é de definição muito complexa, para dizer o mínimo,
pois existem vários métodos diferentes para estimá-la e cada método produz um
resultado distinto. Ademais, até onde se sabe, esta última variável tem tido
papel apenas coadjuvante nas decisões tomadas pelo Copom, o protagonismo
ficando mesmo com as expectativas.
Tal
como uma criança birrenta, que só para de gritar e envergonhar os pais quando
seus desejos, por esdrúxulos que sejam, são atendidos, os agentes do mercado
são craques em encontrar argumentos para afetar as expectativas, e fazem isso
melhor ainda quando não gostam do governo de plantão. E o mercado não gosta de
Lula 3 (parecendo gostar mesmo de Bolsonaro/Guedes). Toleraram o Lula anterior,
principalmente quando reinava a dupla Palocci/Meirelles, e cobraram bem caro
por isso. Mas Lula 3, insistindo em colocar a responsabilidade social à frente
de tudo e ainda com Haddad a tiracolo na Fazenda (imagine, um cara que escreveu
um livro intitulado Em defesa do socialismo!)… aí não dá! A Selic
tem que estar elevadíssima para que tenham ao menos um pouco de conforto. Para
justificar o descalabro insistem, como vimos, no desequilíbrio fiscal, que
teria sido majorado sobremaneira com a aprovação da “PEC da Transição”, ou “PEC
da Gastança”, como parte da mídia preferiu nominá-la. Mas trata-se aqui de
negacionismo explícito, como bem analisou em irretocável artigo recentemente
publicado o economista André Lara Resende.
O
que foi até aqui considerado já seria suficiente para fazer uma defesa
explícita da postura de Lula com relação à abusiva taxa de juros hoje praticada
no Brasil e mesmo com relação à pertinência da assim dita independência do Banco
Central, conquistada formalmente em fevereiro de 2021. Mas podemos ainda
agregar outros dois argumentos. Um, de natureza histórica, e outro pertinente à
relação entre esta autonomia e o que estipula a Constituição do País.
A
grita dos mercados, de seus operadores e de seus partners na
mídia tem por trás de si o seguinte raciocínio: os governos são sempre
tendencialmente gastadores e, nessa medida, irresponsáveis fiscalmente. Sendo
assim, um Banco Central independente se impõe como a garantia de que o manejo
da política monetária será conduzido por parâmetros estritamente “técnicos”,
visando tão somente a busca de níveis reduzidos e estáveis de inflação. A
história porém mostra o contrário. A autoridade monetária deve funcionar, por
um lado, como controladora da emissão de moeda e como banco do governo e, por
outro, como banco dos bancos. Qual das duas funções é eminentemente pública?
O
Banco da Inglaterra, por exemplo, começou como banco privado e fez enorme
fortuna financiando a dívida pública do Estado inglês e produzindo nova moeda
(capital novo) em cima desses ativos de crédito. Não foi no entanto sua função
de emissor da moeda do reino que o colocou historicamente como entidade
pública, mas, enquanto banco dos bancos, seu papel de emprestador de última
instância (lending of last resource), que ele foi obrigado a
desempenhar, não sem relutância, na crise comercial e bancária que tomou de
assalto o espaço britânico em meados do século XIX.
Alguma
coisa parecida acontece na história do Banco da França, do Reichsbank e do
Federal Reserve, ou seja, é para assegurar a estabilidade do sistema
bancário (eminentemente privado, em que pesem os bancos estatais) que a
autoridade monetária precisa ser pública, não para funcionar como banco do
governo e controlador da oferta de moeda. A verdade dessas afirmações ficou
patente com a grande crise financeira internacional de 2008 — a política
do quantitative easing que o diga! Considerada, portanto,
desse ponto de vista, a questão da “independência” do Banco Central, cláusula
pétrea do discurso da ortodoxia/mercado/mídia, é uma questão falaciosa.
Por
fim, um último e importante argumento em defesa de Lula: ele não está
reivindicando nada mais, nada menos do que aquilo que está previsto na própria
Constituição Federal. Perguntemos: de acordo com ela, o Banco Central detém de
fato independência na fixação da taxa básica de juros? Veremos que não, o que
coloca em xeque a constitucionalidade do dispositivo legal que confere à
instituição a autonomia da qual ela hoje goza.
Como
ensinam os juristas, nossa Constituição é dirigente e tem força
normativa. No que diz respeito propriamente à ordem econômica, isso
significa: a) que as normas constitucionais determinam uma atuação estatal que
se dê no sentido de conformar relações econômicas capazes de buscar o objetivo
precípuo nela inscrito, a saber, “assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social” (art. 170); b) que são também estipulados os
princípios que devem ser observados nessa jornada, como a soberania nacional, a
propriedade privada e a livre concorrência, mas também, e é preciso enfatizar,
a busca pelo pleno emprego; e c) que a força normativa da Constituição, vale
dizer, o fato de ela ser dotada de imperatividade, obriga a observância dessas
determinações e princípios.
Isto
posto, cabe perguntar: está o Banco Central obedecendo as normas
constitucionais quando fixa em injustificados 13,75% a meta da Selic e quando
sinaliza que deve manter a cifra ao longo de 2023? É sabido, a julgar pelas
últimas falas de Lula, que a taxa de juros não ficaria nesse patamar no
corrente ano na ausência da Lei Complementar n.o 179, que
garantiu a independência de nossa autoridade monetária. Vale então fazer
outra pergunta: nossa Constituição abriga a ideia de uma autoridade monetária
independente? A resposta é negativa. Pela CF/88, independente, no sentido de
não ter que se submeter a uma autoridade superior, só os três poderes. O Banco
Central é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda e a ele,
portanto, deveria responder, reportando-se assim, em última instância, ao
próprio presidente da República. O que Lula vem reivindicando, para
desassossego dos próceres, agentes e parceiros do mercado financeiro, é essa
autoridade que lhe confere a Constituição e que ele, na prática, não detém. De
acordo com a Lei Complementar n.o 179, quando fixa a meta da
Selic, o Banco Central não precisa responder a ninguém. Age, portanto, como se
fosse um quarto poder.
Observado
o conjunto dos elementos até aqui elencados, a única postura respeitável a
todos aqueles que votaram em Lula não só para devolver o fascismo ao seu
submundo (seja o porão, seja o esgoto), mas também para tentar mais uma vez
efetivar o objetivo da ordem econômica inscrito na Constituição — a existência digna
a todos — é defender o presidente em sua cruzada contra a enormidade da atual
taxa de juros e, igualmente, contra a soberba do Banco Central, consagrada pela
descabida lei de fevereiro de 2021. A propósito, já está disponível na
internet um manifesto de economistas contra a atual taxa de juros.
Ø
O
Banco Central, o ratinho de Pavlov e o homem de Bolsonaro. Por Luís Nassif
O
que esperar do Banco Central no relacionamento com um governo
desenvolvimentista?
A
ideia do Ministro Fernando Haddad, da Fazenda, não é o confronto, mas o de
implementações que transformem o BC em uma instituição minimamente autônoma?
Como
assim, não é um BC independente? Em relação ao governo, sim; em relação ao
mercado, sua posição é de total subserviência.
O
mercado define as expectativas de inflação, através do Copom. Também define o
nível do câmbio, através de uns poucos players com grande poder de fogo e
articulação típica dos ambientes cartelizados. Opera o mercado futuro de taxas
de juros, sem a menor interferência do Banco Central.
Controlando
as expectativas de inflação, de taxa longa de juros, facilmente induz o Banco
Central a operar a Selic na direção pretendida.
Ué,
mas o BC não tem discernimento próprio para definir políticas monetárias
autônomas?
Não.
O BC foi treinado para operar taxas como o ratinho de Pavlov. Se a expectativa
de inflação do mercado sobe, suba-se a Selic. Se as taxas de juros longas
operadas pelo mercado sobem, aumenta-se a Selic. Se o governo anuncia a mera
intenção de desenvolver o país, o BC solta uma Nota alertando que as
expectativas se deterioraram e haverá nova alta dos juros.
Não
há nenhuma curiosidade, nenhuma competência técnica para entender os efeitos da
cartelização no ambiente de negócios do mercado de taxas ou na formação de expectativas
pelo mercado, ou mesmo um mínimo de responsabilidade para entender os impactos
dessas decisões sobre emprego, renda, saúde, infraestrutura. O BC é um aquário
com uma porta giratória.
Por
tudo isso, provavelmente três ideias estarão na mesa para que o BC passe,
efetivamente, a atuar como uma instituição independente:
- O BC passar a
atuar no mercado de câmbio, para impedir oscilações especulativas.
- O BC passar a
atuar no mercado de taxas, definindo a estrutura de taxas, em vez de
deixar nas mãos do mercado.
- Alguma mudança
no sistema de recompra, no uso de títulos públicos para monitorar a
liquidez da economia.
Aí,
então, espera-se que o ratinho de Pavlov possa se mover ante novo modelo de
formação de expectativas.
O
passo final e definitivo, para evitar o poder deletério das políticas
monetárias, será a volta ao controle dos capitais, a retomada de princípios de
Breton Woods, impedindo o jogo escandaloso de moedas. Maas ainda não é tema no
radar da equipe econômica.
O
papel de Campos Neto é nítido. Ele se aconselha com o mercado, como admitiu o
próprio André Esteves em seminário no seu banco, o BTG Pactual.
Na
outra ponta, tem mostrado total falta de compromissos no trabalho com a
Fazenda. Conforme a repórter Malu Gaspar, em O
Globo.
Segundo
ela, “quando Lula decidiu que falaria na Argentina sobre o plano de lançar uma
moeda comum, (…) o ministério, então, pediu ao BC que enviasse um relatório com
informações sobre esse mecanismo para subsidiar o trabalho. Mas não recebeu
resposta nenhuma. Depois disso, o ministério tentou fazer reuniões com o BC
para discutir detalhes do pacote fiscal do governo e outras medidas em estudo.
Mas Campos Neto não teria participado, porque estava no exterior”.
Na
véspera da divulgação do comunicado, Galípolo e Haddad chegaram a se reunir com
Campos Neto e ouviram dele que não se preocupassem com os juros porque não
haveria grandes surpresas. E o que se viu foi uma nota alarmista, bem mais do
que o próprio tom do relatório do Copom.
Tudo
isso, somado ao fato de Campos Neto participar de um grupo de WhatsApp com
Ministros bolsonaristas, ter comparecido à posse de Tarcísio de Freitas no
governo de São Paulo, ter ido votar de camisa amarela, reforçam a certeza de
que se trata de um quadro bolsonarista plantado no coração da economia de Lula.
Ou
seja, qualquer intenção de colaboração entre Fazenda e Banco Central será atrapalhada
pelas convicções bolso-mercadistas de Campos Neto.
Fonte:
Por Leda Maria Paulani, no Jornal GGN
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