quinta-feira, 9 de março de 2023


 Banco Central autônomo: o mercado vota todo dia na grande mídia

Como a grande mídia percebeu que dar chiliques não está dando certo (vide os casos da AGu querendo combater fake news e a “moeda única” do Mercosul), partiu para outra estratégia: cobertura ansiosa dos acontecimentos. Se nas eleições do Senado, a Globo criou um estúdio dentro do Congresso para o corpo-a-corpo, agora na “guerra” entre Lula e Banco Central coloca em ação seus informantes de pauta das mesas de operações das corretoras de valores. E até trazem para os estúdios, numa ação rara ou inédita. George Soros disse certa vez: “o mercado vota do dia”. No campo econômico, vota através da “porta giratória” das políticas monetárias do Banco Central. E no campo semiótico através da cegueira da patuleia com efeitos midiáticos de ciência econômica: números, tabelas e infográficos caprichados, com operadores sendo entrevistados tendo ao fundo múltiplas telas com gráficos coloridos – criando o efeito de tecnicidade neutra.  Enquanto Lula é “palanqueiro” e faz “jogadas”, Roberto Campos Neto divulga “atas”, faz “política monetária” e “não gosta de fortes emoções”.

Em meio ao atrito entre o desenvolvimentista Lula e o “técnico” Roberto Campos Neto (presidente do Banco Central e participante de um grupo de WhatsApp com ministros bolsonaristas) sobre a manutenção dos juros da Selic no elevado patamar de 13,75%, alguém na mídia progressista indagou: Lula teve 60 milhões de votos. Quantos votos teve Roberto Campos Neto?

Certa vez o investidor e filantropo de guerra híbrida (“Open Society”) George Soros respondeu, de forma cínica, da seguinte maneira a uma questão parecida: “Pouco importa, o mercado vota do dia. Enquanto os cidadãos votam a cada quatro anos”. Resposta no tom cínico certo para qualquer um entender qual o apreço que o “mercado” tem pela democracia.

 Isso é ainda mais visível, sem eufemismos ou tergiversações, diariamente na grande mídia brasileira. Principalmente na mídia televisiva, cujos intervalos publicitários são recheados de anúncios de bancos, cartões de crédito e corretoras de valores. Todo dia, ao vivo, o mercado vota, através dos mesmos informantes de pautas – em sua maioria, economistas-chefe das mesmas empresas que anunciam nos intervalos publicitários dos mesmos programas em que são convidados.

São sempre entrevistados por jornalistas tão ansiosos que a única coisa que conseguem lembrar são as platitudes e clichês pavlovianos do tipo “Lula cria ruídos?”, “O Governo tem que fazer a lição de casa”, “Está faltando boa gestão?”, “Não é uma equação simples”, “tenho conversado com empresários...”, “se o governo gasta muito, juros não caem...”.

Pois a mesma ansiedade, principalmente da Globo News, que trouxe o ex-diretor do Data Folha, Mauro Paulino, para o front da cobertura eleitoral no ano passado, também levou um informante de pauta vindo diretamente mesas de operação da Faria Lima, o economista André Perfeito, para dentro do estúdio do canal fechado de notícias. Dessa vez, para o front da batalha contra o desenvolvimentismo de Lula, batalha que começou antes até do primeiro de janeiro. Não aguentaram esperar os tradicionais 100 dias de crédito para governos recém-empossados.

Nem o jornal “Folha de São Paulo”: bastaram apenas 40 dias para fazer uma enquete – “Como você avalia o primeiro mês do governo Lula? Conte para a Folha”. Dá para imaginar o resultado...

Muito além da retórica

O que George Soros disse é mais do que exercício retórico. É realmente uma prática diária – primeiro, no campo econômico, o papel do presidente do Banco Central “independente” sempre se aconselhar com o mercado, como admitiu o próprio banqueiro André Esteves um seminário no seu banco, o BTG Pactual. Certamente, sincericídio cometido quando Esteves quis se gabar para seu público. E, num ato falho, mostrar que o BC é “independente” somente em relação ao Governo. 

E segundo, no campo semiótico. Principalmente televisivo. E por que televisivo? Num país como o Brasil, cujo projeto desde a ditadura militar foi concentrar a comunicação de massa na TV através da concentração das verbas publicitárias nesse setor, a mídia impressa passou a ter uma imagem ideológica e partidária. Ao contrário da TV que, através da sua estética de modernidade e desenvolvimento, sempre teve uma fisionomia isenta. 

Principalmente pelo senso comum em relação as imagens: se estamos vendo e o jornalista está mostrando, então é real? 

Essa realidade televisiva começa por uma distinção inicial entre economia e política. A economia seria o campo regido por leis inscritas e que só podem ser decodificadas pela ciência e tecnicidade. Seus estudiosos são tecnocratas, especialistas que chegaram aonde estão não por votos, mas por mérito e títulos acadêmicos. 

Bem diferente, o campo da política seria regido por regras implícitas, subjetivas, secretas e, por isso mesmo, sujeito à desconfiança e mesmo condenação a priori – por isso, aberto à corrupção. Políticos que chegaram aonde estão pelo voto. Dispositivo representativo cada vez mais desmoralizado pela agenda anti-política, de Mensalão a Lava-Jato.  

A economia é assertiva, transparente, precisa. Enquanto a política é sedutora, retórica, prestidigitação, não confiável.

Portanto, nada mais justo que a autoridade monetária seja independente. E principalmente que a grande mídia escolha unicamente como suas informações de pauta economistas que vêm da área de Econometria e dos cálculos diferenciais macroeconômicos. Aos olhos do respeitável público, Economia é uma ciência exata.

Esse senso comum é reforçado semioticamente na TV com imagem desses economistas chefe de corretora de títulos sempre tendo ao fundo as mesas de operações com suas múltiplas telas nas quais figuram gráficos, curvas, tabelas e planilhas de colorido intenso. Quase como uma sala de controle dos voos da NASA em Houston...

·         A Montanha foi a Maomé

Normalmente Maomé vai à Montanha: jornalistas entrevistam os economistas-chefe no local de operações das corretoras de valores. Mas parece que, dessa vez, para enfrentar a emergência da ameaça desenvolvimentista, Globo News faz uma inversão semiótica: a Montanha é que foi a Maomé – o economista-chefe André Perfeito vai até os estúdios de um canal de notícias para ser entrevistado ao vivo por “colonistas” e “apresentadores” da casa. 

“Privilégio” sempre reservado até aqui para políticos ou autoridades dos poderes da República. Parece que, diante da irracionalidade dos juros tão elevados (EUA e Europa com índices de inflação mais elevados que os brasileiros, têm juros menores que os nossos), a retórica dos “colonistas” já não é mais suficiente. Tem que trazer para o estúdio a própria informação de pauta. Artilharia pesada para o front semiótico.

Cegados pelos efeitos de Ciência

De resto, os telejornais e canais de notícias continuam lançando suas bombas semióticas estratégicas, de efeito de reforço cognitivo: (a) a falácia analogia das contas públicas com a gestão das contas domésticas das casas dos telespectadores – se a renda cai, tem que fazer cortes etc.; (b) ciclos políticos não coincidem com ciclos econômicos – Lula tem que ser realista, e não “palanqueiro”; (c) Lula faz “jogadas”, enquanto o BC divulga “atas”; (d) Lula faz “críticas”, enquanto Roberto Campos Neto faz “política monetária”; (e) Lula faz “guerra”, enquanto Roberto Campos Neto “não gosta de fortes emoções”. E assim por diante.

Parafraseando a música de sucesso de Thomas Dolby (“She Blind Me With Science”), a grande mídia diariamente nos cega com ciência econômica. Ou melhor, com efeitos de Ciência: tabelas, infográficos, muitos, mas muitos números, interpretados ao bel prazer de acordo com a necessidade – ora puxa para os números absolutos, ora para os números relativos – o a inflação subiu, ou subiu menos; ou caiu, ou caiu menos...

Sem permitir contraditório, nos cega apenas com efeitos de ciência econômica da Escola Austríaca ou da Escola de Chicago. Não ouvimos nenhuma voz keynesiana ou mesmo pós: Paul Davidson ou Joseph Stiglitz. Apenas ouvimos lamentações cíclicas: cortes nas despesas (sociais) para honrar a dívida pública. Mas nada anticíclico: aumentar as receitas induzindo o desenvolvimento econômico.

Com esse show dos efeitos de ciência dos números em infográficos caprichados esconde-se uma realidade paradoxal: colocar operadores da Faria Lima como analistas econômicos em canais de notícia é a mesma coisa que pedir para uma raposa consultoria para a segurança do galinheiro.

Ou como o jornalista Luis Nassif descreve:

O BC foi treinado para operar taxas como o ratinho de Pavlov. Se a expectativa de inflação do mercado sobe, suba-se a Selic. Se as taxas de juros longas operadas pelo mercado sobem, aumenta-se a Selic. Se o governo anuncia a mera intenção de desenvolver o país, o BC solta uma Nota alertando que as expectativas se deterioraram e haverá nova alta dos juros.

 

       Campos Neto atuou na Covid e nas eleições. Por Luis Nassif

 

A informação de Guilherme Amado, no Metrópoles, sobre as conversas de Roberto Campos Neto no grupo de WhatsApp de Ministros bolsonaristas, mostra um papel essencial em duas estratégias desastrosas de Bolsonaro.

A primeira, ao apresentar estatísticas do Banco Central tentando comprovar que a imunidade de rebanho seria melhor para a economia do que o combate ao Covid, por permitir abreviar a pandemia, independentemente do número de mortos.

A segunda – revelada pelo Metrópoles – de que Campos Neto previa a vitória de Bolsonaro em função das projeções de abstenção. Foi essa ideia que levou Bolsonaro a mobilizar a Polícia Rodoviária Federal para bloquear ônibus no nordeste, supostamente com eleitores de Lula.

São dois bons elementos para reconstituir a biografia de um executivo comum que, de repente, foi jogado no centro de poder por um Ministro sem parâmetros e aderiu sem pudor à barbárie.

 

Ø  Um Banco Central que não comanda: é comandado. Por Luis Nassif

 

A consolidação de teorias econômicas depende de alguns fatores. O primeiro deles é a quem serve a teoria, já que a economia é um exercício de escolha de vencedores e perdedores. O segundo é o contingente de economistas e jornalistas econômicos que fazem nome em torno dos princípios da teoria em vigor.

É mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha que um economista rever a teoria que o consagrou, ainda que a realidade desminta diariamente suas conclusões. 

No caso das metas inflacionárias e das teorias monetárias, criou-se um caso concreto de realidade paralela, uma teoria complexa, cheia de fórmulas, conclusões taxativas e nenhum vínculo com a realidade. Não há capacidade de observação empírica. Ou até existe, mas ignora-se tudo que pode desmontar as teorias defendidas. Afinal, foi graças a elas que economistas de mercado fizeram sua reputação, acertaram os resultados da planilha do Banco Central – embora raramente ambas as planilhas, a do BC e do mercado, acerte o resultado da inflação.

Todo esse aparato teórico, todas as equações, baseiam-se em uma ferramenta de controle da inflação tão antiga quanto as sanguessugas contra a febre: a âncora cambial. É uma mecanismo rústico, primário, mas revestido do creme de leite de fetiches, chamados de “taxa neutra de juros”, “PIB potencial” e outras planilhices.

Inflação é um fenômeno com vários ingredientes: choques de demanda, choques de oferta, choques externos, quebra de safras, crises setoriais. Há um conjunto grande de instrumentos para combatê-la, como estoques reguladores, importações especiais, políticas setoriais. Para cada causa, um remédio, de tal maneira que as taxas de juros servem exclusivamente para combater a inflação de demanda, quando a economia está aquecida e a alta de preços espraia-se por todos os produtos.

A política monetária em vigor joga tudo nas costas dos juros. Infecção? Juros. Lumbago? Juros. E a razão é óbvia.

Na inflação, há perdas e ganhos. Mas, em circunstâncias normais, o capital financeiro perde, assim como os credores, devido à perda de valor da moeda. Qual o grande arranjo da política monetária, especialmente das metas inflacionárias.

Primeiro, permitindo ao mercado definir as expectativas de inflação e da taxa de juros longa. Em países civilizados, o Banco Central atua nos mercados de juros, impedindo sua manipulação pelos grandes players. Aqui, eles chegam à vontade. O mercado define o que espera da inflação, define a taxa de juros longa, e o BC vai atrás, sancionando todos os movimentos especulativos.

O segundo passo é trabalhar com o conceito da tal taxa de juros neutra – aquela que impediria a alta da inflação. Hoje em dia, o BC considera a taxa de juros neutra em 4% – isto é, seja qual for a inflação, a taxa Selic tem que ser, no mínimo, quatro pontos acima da inflação. Ou seja, as expectativas de inflação, de taxa de juros longa e de taxa de juros neutra fica nas mãos do mercado. Quanto maior a taxa, maior o ganho, maior a dívida pública, menor o crescimento econômico, menor o emprego, menor a receita fiscal.

No Valor de ontem, André Lara Rezende expõe de maneira crua o terrorismo fiscal, utilizado pelo mercado e pelo BC para garantir o seu poder.

Não tem a menor lógica a manutenção desse modelo que deixa totalmente em mãos do mercado o controle de variáveis que impactam diretamente o orçamento público.

Vai levar algum tempo para cair a ficha de que a única maneira de compatibilizar inflação e crescimento é o controle de capitais, o fim da dança de capitais gafanhoto.

 

Fonte: Por Wilson Roberto Vieira Ferreira, em Cinegnose/Jornal GGN

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