Banco Central autônomo: o mercado vota todo dia na grande mídia
Como
a grande mídia percebeu que dar chiliques não está dando certo (vide os casos
da AGu querendo combater fake news e a “moeda única” do Mercosul), partiu para
outra estratégia: cobertura ansiosa dos acontecimentos. Se nas eleições do
Senado, a Globo criou um estúdio dentro do Congresso para o corpo-a-corpo,
agora na “guerra” entre Lula e Banco Central coloca em ação seus informantes de
pauta das mesas de operações das corretoras de valores. E até trazem para os
estúdios, numa ação rara ou inédita. George Soros disse certa vez: “o mercado
vota do dia”. No campo econômico, vota através da “porta giratória” das
políticas monetárias do Banco Central. E no campo semiótico através da cegueira
da patuleia com efeitos midiáticos de ciência econômica: números, tabelas e
infográficos caprichados, com operadores sendo entrevistados tendo ao fundo múltiplas
telas com gráficos coloridos – criando o efeito de tecnicidade
neutra. Enquanto Lula é “palanqueiro” e faz “jogadas”, Roberto
Campos Neto divulga “atas”, faz “política monetária” e “não gosta de fortes
emoções”.
Em meio ao atrito entre o desenvolvimentista
Lula e o “técnico” Roberto Campos Neto (presidente do Banco Central e
participante de um grupo de WhatsApp com ministros bolsonaristas) sobre a
manutenção dos juros da Selic no elevado patamar de 13,75%, alguém na mídia
progressista indagou: Lula teve 60 milhões de votos. Quantos votos teve Roberto
Campos Neto?
Certa
vez o investidor e filantropo de guerra híbrida (“Open Society”) George Soros
respondeu, de forma cínica, da seguinte maneira a uma questão parecida: “Pouco
importa, o mercado vota do dia. Enquanto os cidadãos votam a cada quatro anos”.
Resposta no tom cínico certo para qualquer um entender qual o apreço que o
“mercado” tem pela democracia.
Isso
é ainda mais visível, sem eufemismos ou tergiversações, diariamente na grande
mídia brasileira. Principalmente na mídia televisiva, cujos intervalos
publicitários são recheados de anúncios de bancos, cartões de crédito e
corretoras de valores. Todo dia, ao vivo, o mercado vota, através dos mesmos
informantes de pautas – em sua maioria, economistas-chefe das mesmas empresas
que anunciam nos intervalos publicitários dos mesmos programas em que são
convidados.
São
sempre entrevistados por jornalistas tão ansiosos que a única coisa que
conseguem lembrar são as platitudes e clichês pavlovianos do tipo “Lula cria
ruídos?”, “O Governo tem que fazer a lição de casa”, “Está faltando boa
gestão?”, “Não é uma equação simples”, “tenho conversado com empresários...”,
“se o governo gasta muito, juros não caem...”.
Pois
a mesma ansiedade, principalmente da Globo News, que trouxe o ex-diretor do
Data Folha, Mauro Paulino, para o front da cobertura eleitoral no ano passado,
também levou um informante de pauta vindo diretamente mesas de operação da
Faria Lima, o economista André Perfeito, para dentro do estúdio do canal
fechado de notícias. Dessa vez, para o front da batalha contra o
desenvolvimentismo de Lula, batalha que começou antes até do primeiro de
janeiro. Não aguentaram esperar os tradicionais 100 dias de crédito para
governos recém-empossados.
Nem
o jornal “Folha de São Paulo”: bastaram apenas 40 dias para fazer uma enquete –
“Como você avalia o primeiro mês do governo Lula? Conte para a Folha”. Dá para
imaginar o resultado...
Muito
além da retórica
O
que George Soros disse é mais do que exercício retórico. É realmente uma
prática diária – primeiro, no campo econômico, o papel do presidente do Banco
Central “independente” sempre se aconselhar com o mercado, como admitiu o
próprio banqueiro André Esteves um seminário no seu banco, o BTG Pactual.
Certamente, sincericídio cometido quando Esteves quis se gabar para seu
público. E, num ato falho, mostrar que o BC é “independente” somente em relação
ao Governo.
E
segundo, no campo semiótico. Principalmente televisivo. E por que televisivo?
Num país como o Brasil, cujo projeto desde a ditadura militar foi concentrar a
comunicação de massa na TV através da concentração das verbas publicitárias
nesse setor, a mídia impressa passou a ter uma imagem ideológica e partidária.
Ao contrário da TV que, através da sua estética de modernidade e
desenvolvimento, sempre teve uma fisionomia isenta.
Principalmente
pelo senso comum em relação as imagens: se estamos vendo e o jornalista está
mostrando, então é real?
Essa
realidade televisiva começa por uma distinção inicial entre economia e
política. A economia seria o campo regido por leis inscritas e que só podem ser
decodificadas pela ciência e tecnicidade. Seus estudiosos são tecnocratas,
especialistas que chegaram aonde estão não por votos, mas por mérito e títulos
acadêmicos.
Bem
diferente, o campo da política seria regido por regras implícitas, subjetivas,
secretas e, por isso mesmo, sujeito à desconfiança e mesmo condenação a priori
– por isso, aberto à corrupção. Políticos que chegaram aonde estão pelo voto.
Dispositivo representativo cada vez mais desmoralizado pela agenda
anti-política, de Mensalão a Lava-Jato.
A
economia é assertiva, transparente, precisa. Enquanto a política é sedutora,
retórica, prestidigitação, não confiável.
Portanto,
nada mais justo que a autoridade monetária seja independente. E principalmente
que a grande mídia escolha unicamente como suas informações de pauta
economistas que vêm da área de Econometria e dos cálculos diferenciais
macroeconômicos. Aos olhos do respeitável público, Economia é uma ciência
exata.
Esse
senso comum é reforçado semioticamente na TV com imagem desses economistas
chefe de corretora de títulos sempre tendo ao fundo as mesas de operações com
suas múltiplas telas nas quais figuram gráficos, curvas, tabelas e planilhas de
colorido intenso. Quase como uma sala de controle dos voos da NASA em
Houston...
·
A Montanha foi a Maomé
Normalmente
Maomé vai à Montanha: jornalistas entrevistam os economistas-chefe no local de
operações das corretoras de valores. Mas parece que, dessa vez, para enfrentar
a emergência da ameaça desenvolvimentista, Globo News faz uma inversão
semiótica: a Montanha é que foi a Maomé – o economista-chefe André Perfeito vai
até os estúdios de um canal de notícias para ser entrevistado ao vivo por
“colonistas” e “apresentadores” da casa.
“Privilégio”
sempre reservado até aqui para políticos ou autoridades dos poderes da
República. Parece que, diante da irracionalidade dos juros tão elevados (EUA e
Europa com índices de inflação mais elevados que os brasileiros, têm juros
menores que os nossos), a retórica dos “colonistas” já não é mais suficiente.
Tem que trazer para o estúdio a própria informação de pauta. Artilharia pesada
para o front semiótico.
Cegados
pelos efeitos de Ciência
De
resto, os telejornais e canais de notícias continuam lançando suas bombas
semióticas estratégicas, de efeito de reforço cognitivo: (a) a falácia analogia
das contas públicas com a gestão das contas domésticas das casas dos
telespectadores – se a renda cai, tem que fazer cortes etc.; (b) ciclos
políticos não coincidem com ciclos econômicos – Lula tem que ser realista, e
não “palanqueiro”; (c) Lula faz “jogadas”, enquanto o BC divulga “atas”; (d)
Lula faz “críticas”, enquanto Roberto Campos Neto faz “política monetária”; (e)
Lula faz “guerra”, enquanto Roberto Campos Neto “não gosta de fortes emoções”.
E assim por diante.
Parafraseando
a música de sucesso de Thomas Dolby (“She Blind Me With Science”), a grande
mídia diariamente nos cega com ciência econômica. Ou melhor, com efeitos de
Ciência: tabelas, infográficos, muitos, mas muitos números, interpretados ao
bel prazer de acordo com a necessidade – ora puxa para os números absolutos,
ora para os números relativos – o a inflação subiu, ou subiu menos; ou caiu, ou
caiu menos...
Sem
permitir contraditório, nos cega apenas com efeitos de ciência econômica da
Escola Austríaca ou da Escola de Chicago. Não ouvimos nenhuma voz keynesiana ou
mesmo pós: Paul Davidson ou Joseph Stiglitz. Apenas ouvimos lamentações
cíclicas: cortes nas despesas (sociais) para honrar a dívida pública. Mas nada
anticíclico: aumentar as receitas induzindo o desenvolvimento econômico.
Com
esse show dos efeitos de ciência dos números em infográficos caprichados
esconde-se uma realidade paradoxal: colocar operadores da Faria Lima como
analistas econômicos em canais de notícia é a mesma coisa que pedir para uma
raposa consultoria para a segurança do galinheiro.
Ou
como o jornalista Luis Nassif descreve:
O
BC foi treinado para operar taxas como o ratinho de Pavlov. Se a expectativa de
inflação do mercado sobe, suba-se a Selic. Se as taxas de juros longas operadas
pelo mercado sobem, aumenta-se a Selic. Se o governo anuncia a mera intenção de
desenvolver o país, o BC solta uma Nota alertando que as expectativas se
deterioraram e haverá nova alta dos juros.
Campos
Neto atuou na Covid e nas eleições. Por Luis Nassif
A informação de Guilherme Amado, no Metrópoles,
sobre as conversas de Roberto Campos Neto no grupo de WhatsApp de Ministros
bolsonaristas, mostra um papel essencial em duas estratégias desastrosas de
Bolsonaro.
A primeira, ao apresentar estatísticas do Banco
Central tentando comprovar que a imunidade de rebanho seria melhor para a
economia do que o combate ao Covid, por permitir abreviar a pandemia,
independentemente do número de mortos.
A segunda – revelada pelo Metrópoles – de que
Campos Neto previa a vitória de Bolsonaro em função das projeções de abstenção.
Foi essa ideia que levou Bolsonaro a mobilizar a Polícia Rodoviária Federal
para bloquear ônibus no nordeste, supostamente com eleitores de Lula.
São dois bons elementos para reconstituir a
biografia de um executivo comum que, de repente, foi jogado no centro de poder
por um Ministro sem parâmetros e aderiu sem pudor à barbárie.
Ø Um Banco Central que não comanda: é comandado. Por Luis Nassif
A consolidação de teorias econômicas depende de
alguns fatores. O primeiro deles é a quem serve a teoria, já que a economia é
um exercício de escolha de vencedores e perdedores. O segundo é o contingente
de economistas e jornalistas econômicos que fazem nome em torno dos princípios
da teoria em vigor.
É mais fácil um camelo passar no buraco de uma
agulha que um economista rever a teoria que o consagrou, ainda que a realidade
desminta diariamente suas conclusões.
No caso das metas inflacionárias e das teorias
monetárias, criou-se um caso concreto de realidade paralela, uma teoria
complexa, cheia de fórmulas, conclusões taxativas e nenhum vínculo com a
realidade. Não há capacidade de observação empírica. Ou até existe, mas
ignora-se tudo que pode desmontar as teorias defendidas. Afinal, foi graças a
elas que economistas de mercado fizeram sua reputação, acertaram os resultados
da planilha do Banco Central – embora raramente ambas as planilhas, a do BC e
do mercado, acerte o resultado da inflação.
Todo esse aparato teórico, todas as equações,
baseiam-se em uma ferramenta de controle da inflação tão antiga quanto as
sanguessugas contra a febre: a âncora cambial. É uma mecanismo rústico,
primário, mas revestido do creme de leite de fetiches, chamados de “taxa neutra
de juros”, “PIB potencial” e outras planilhices.
Inflação é um fenômeno com vários ingredientes:
choques de demanda, choques de oferta, choques externos, quebra de safras,
crises setoriais. Há um conjunto grande de instrumentos para combatê-la, como estoques
reguladores, importações especiais, políticas setoriais. Para cada causa, um
remédio, de tal maneira que as taxas de juros servem exclusivamente para
combater a inflação de demanda, quando a economia está aquecida e a alta de
preços espraia-se por todos os produtos.
A política monetária em vigor joga tudo nas costas
dos juros. Infecção? Juros. Lumbago? Juros. E a razão é óbvia.
Na inflação, há perdas e ganhos. Mas, em
circunstâncias normais, o capital financeiro perde, assim como os credores,
devido à perda de valor da moeda. Qual o grande arranjo da política monetária,
especialmente das metas inflacionárias.
Primeiro, permitindo ao mercado definir as
expectativas de inflação e da taxa de juros longa. Em países civilizados, o
Banco Central atua nos mercados de juros, impedindo sua manipulação pelos
grandes players. Aqui, eles chegam à vontade. O mercado define o que espera da
inflação, define a taxa de juros longa, e o BC vai atrás, sancionando todos os
movimentos especulativos.
O segundo passo é trabalhar com o conceito da tal
taxa de juros neutra – aquela que impediria a alta da inflação. Hoje em dia, o
BC considera a taxa de juros neutra em 4% – isto é, seja qual for a inflação, a
taxa Selic tem que ser, no mínimo, quatro pontos acima da inflação. Ou seja, as
expectativas de inflação, de taxa de juros longa e de taxa de juros neutra fica
nas mãos do mercado. Quanto maior a taxa, maior o ganho, maior a dívida
pública, menor o crescimento econômico, menor o emprego, menor a receita
fiscal.
No Valor de ontem, André Lara
Rezende expõe de maneira crua o terrorismo fiscal, utilizado pelo mercado e pelo BC para garantir o seu poder.
Não tem a menor lógica a manutenção desse modelo
que deixa totalmente em mãos do mercado o controle de variáveis que impactam
diretamente o orçamento público.
Vai levar algum tempo para cair a ficha de que a
única maneira de compatibilizar inflação e crescimento é o controle de
capitais, o fim da dança de capitais gafanhoto.
Fonte:
Por Wilson Roberto Vieira Ferreira, em Cinegnose/Jornal GGN
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