A lei é clara: presidente não pode aceitar presente com valor superior a 100 reais
As
revelações acerca dos dois conjuntos de joias recebidos durante o governo de
Jair Bolsonaro (PL) deixaram dúvidas sobre qual deveria ter sido a conduta
correta por parte do ex-presidente. Ao longo da história brasileira, a
legislação pouco definiu o protocolo para presentes recebidos por parte de
autoridades estrangeiras.
Foi
apenas em 1991 que uma lei foi criada e, mesmo assim, não tinha como objeto os itens,
mas a memória do país, deixando brechas para a subjetividade. Entretanto,
historiadores ouvidos pelo Globo afirmam que, no período anterior ao governo de
Fernando Collor, sempre houve a conduta moral de que os presentes deveriam ser
revertidos para a União.
ERA
CORRUPÇÃO…
“Você
tinha uma regra tácita: o presidente recebia o presente enquanto figura, que
revertia para a comunidade, por mais que não tivesse uma lei ou estivesse na
Constituição. Receber de forma pessoal sempre foi encarado como corrupção. Até
a legislação ser criada, era uma regra de etiqueta” — afirma Rodrigo Rainha, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Após
a redemocratização, em 1991, o então presidente Fernando Collor de Mello
protocolou uma lei que foi usada de forma interpretativa, por mais de duas
décadas, para legislar sobre os presentes.
Assim,
dois anos após a primeira eleição direta depois da Ditadura Militar, a lei
8.394/1991 foi criada no intuito de proteger o patrimônio privado dos
presidentes da República.
NÃO
CITA PRESENTES
A
norma legisla sobre os documentos do acervo privado do mandatário. De acordo
com o texto, os itens integram o patrimônio cultural brasileiro, e a União
teria, por isso, preferência em caso de venda. A lei não cita presentes em
nenhum de seus artigos e no 18º dizia que o Poder Executivo iria regulamentá-la
em 120 dias, o que só ocorreu de fato em 2002.
Em
2002, Fernando Henrique Cardoso regulamentou a lei 8.394/1991 por meio do
decreto de nº 4.344/2002. Esta foi a primeira vez que a expressão “troca de
presentes” apareceu na legislação brasileira. O escopo da norma seguiu sendo a
preservação do acervo privado independentemente do marco temporal em que tiver
sido produzido: antes, durante ou depois do mandato.
No
entanto, desta vez, há uma exceção: foram considerados da União os documentos
produzidos em “cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de
Estado e de Governo por ocasião das ‘Visitas Oficiais’ ou ‘Viagens de Estado’
do presidente da República ao exterior, ou quando das ‘Visitas Oficiais’ ou
‘Viagens de Estado’ de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil”.
TCU
DECIDIU
A
ambiguidade nos textos fez com que, por anos, os membros do Estado brasileiro
interpretassem que o dispositivo abrangesse os bens recebidos nas trocas de
presentes. Sendo assim, todos os presentes nessas trocas eram públicos,
enquanto os demais se tornariam patrimônio privado do presidente. Esta questão
se tornou um incômodo apenas em 2016, quando o Tribunal de Contas da União
(TCU) se manifestou.
Em
2016, o TCU, por meio do acórdão de número 2255/2016, reformulou a legislação
com base no princípio de moralidade. A partir deste ofício, todos os documentos
bibliográficos e presentes recebidos pelos presidentes nas audiências com
chefes de Estado, em visitas ou viagens, são patrimônio da União.
Por
este motivos, os então ex-presidentes Lula (PT) e Dilma Rousseff (PT) tiveram
que devolver 472 bens.
FORMULÁRIO-PADRÃO
Com
a nova regra, o procedimento a ser seguido pelo chefe do Executivo em exercício
foi determinado pelo TCU: os bens recebidos em viagem devem ser registrados no
Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da
República, acoplado à Diretoria de Documentação Histórica (DDH/PR).
Um
servidor vinculado ao mandatário deve preencher os dados de identificação do
item no formulário padrão para que ele possa ser devidamente catalogado como
parte da União.
No
formulário elaborado pelo DDH/PR, a natureza do futuro acervo é definida. Há,
inclusive, um campo que questiona se o objeto foi fruto de uma troca de
presentes e é preciso explicar como ele foi recebido (em cerimônia ou de forma
protocolar). Em seguida, o Gabinete Pessoal deve verificar se as informações
conferem. Irregularidades podem acarretar pena de responsabilização pela
omissão no cumprimento de dispositivo legal.
OBJETOS
PESSOAIS
A
exceção se dá apenas aos objetos de natureza personalíssima ou de consumo
direto — um conceito vago e interpretativo que varia com o contexto. A
avaliação do advogado Thiago Varella, professor da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) é que, pelo valor do presente oferecido
pelos sauditas, as joias não se encaixam nesta categoria:
—
Personalíssimo é diretamente ligado a pessoa, não é algo que o presidente
recebe enquanto chefe de Estado. Os presentes institucionais são dados ao país
e, por isso, pertencem ao acervo do governo. O valor das joias é muito
considerável e não poderia entrar nessa categoria, até pelo código de ética do
funcionalismo público — explica Varella, se referindo à norma de que todo
servidor da União não pode receber vantagem, o que inclui não receber brindes
com valor superior a R$ 100.
O
ministro Walton Alencar, relator do caso à época, inclusive citou que itens
valiosos como uma “grande esmeralda” não poderiam ser enquadrados como bens
pessoais.
JUSTIFICATIVA
Imagine-se,
a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da
República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro
valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os
presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do
Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade —
disse à época o ministro do TCU.
Por
ter este caráter incerto nas exceções, o TCU recomendou à Casa Civil que novos
estudos fossem feitos para aperfeiçoar a regulamentação e os casos de exceção
pudessem ser firmados. A orientação não foi seguida.
Uma história mal contada, pois ninguém
ganha joias ou presentes sem um cartão
A
história das joias trazidas da Arábia Saudita na mochila de um assessor do
então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, precisa ser mais bem
contada. Segundo o almirante Albuquerque, os pacotes foram entregues em 2021
por uma pessoa do governo saudita à comitiva brasileira que partiu de Riad.
Ainda
segundo ele, seriam presentes para Michelle Bolsonaro, mulher do então
presidente brasileiro.
DIGA
O NOME – Como se chama essa pessoa? A Casa de Saud reina na Arábia, com
protocolos. O Brasil tem embaixada na Arábia, e a Arábia tem embaixada em
Brasília. Se a mulher do presidente da República receberia um colar, brincos,
relógio e anel, o canal para a remessa do mimo seria a embaixada.
Num
grau mais elevado de cortesia, o embaixador em Brasília entregaria o presente
ao Itamaraty ou, se fosse o caso, à própria senhora. Assim, formaliza-se a
gentileza. Feitas as coisas de acordo com o cerimonial, ressaltava-se a
cortesia e deixava-se a questão tributária num segundo plano.
O
método iFood chique acabou na encrenca revelada agora pelos repórteres Adriana
Fernandes e André Borges. Como um adereço inevitável, apareceu também o
tenente-coronel Mauro Cid cuidando da liberaçāo das joias, sem sucesso. Isso
tudo, com a rotina de carteiradas, marca do governo do capitão.
FALTAM
OS DETALHES – A pessoa que recebeu os pacotes fechados em Riad deve se lembrar
do nome ou do cargo de quem lhe pediu que levasse a encomenda. Caso não lembre,
nunca mais deverá fazer isso. As prisões do mundo estão cheias de jovens
apanhados com cocaína, dizendo que não lembram quem lhes pediu que
transportassem os pacotes.
Há
ainda outro detalhe mal contado na história das joias das Arábias. Um presente
valioso como esse seria entregue como se fosse um sanduíche? Falta um cartão
com uma mensagem elegante à destinatária. Quem se lembra de ter recebido um
presente sem uma palavra de carinho? Ė certo, contudo, que Bolsonaro tentou
recuperar as joias apreendidas pela Receita. Sempre na base da carteirada.
Felizmente os auditores blindaram a instituição.
FIGURA
IMPESSOAL – Pelo que se sabe até agora,
quem mandou as joias teria sido o governo saudita. Essa figura impessoal não
existe naquela parte do mundo. Os sauditas, bem como os emires vizinhos, gostam
de presentear visitantes, sempre estreitando uma relação pessoal.
O
almirante Flávio Augusto Viana Rocha, secretário especial para Assuntos
Estratégicos durante o governo Bolsonaro, acumulou vasta experiência em
negociações com os sauditas e com os emires das vizinhanças. Consultado,
certamente teria uma boa palavra a dar sobre esse assunto, prevenindo, ou até
mesmo evitando o escândalo.
Poucos
governos tiveram laços tão estreitos com os sauditas e com os emirados. Chega a
ser surpreendente que tenha tropeçado nas caixas de joias.
Fonte:
O Globo
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