A Carta Magna brasileira é generosa demais?
A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, diante da grave crise econômica e política que se instalou no Brasil, não tem faltado propostas para substituí-la, principalmente por aqueles contrários aos avanços sociais incluídas na Carta Magna.
Um
dos problemas que alimentam esse questionamento, e que terá que ser enfrentado
pelo próximo presidente, é o desequilíbrio nas contas públicas. Diante desse
quadro, há quem acuse o texto constitucional de ser generoso demais ao fixar
direitos e gastos sociais.
De
fato, a Constituição Cidadã é a décima do mundo em previsão de direitos - são
79, segundo o CPP (Comparative Constitutions Project), projeto coordenado por
professores de universidades americanas (do Texas e de Chicago) e britânica
(UCL) que compara as constituições de 190 países. Além de direitos individuais
- como ao voto, à igualdade e à liberdade -, há previsão de acesso à saúde e
educação públicas e benefícios sociais, entre outros.
Por
outro lado, em 2016 o texto constitucional recebeu uma emenda considerada por
muitos radical - a chamada PEC do Teto limitou por 20 anos o crescimento dos
gastos à reposição da inflação. A saída não resolveu o problema porque gastos
obrigatórios, como o pagamento de aposentadorias, seguem crescendo acima desse
limite.
·
A culpa é mesmo da Constituição?
Apesar
de prever mais direitos que a maioria das constituições, juristas e economistas
ouvidos pela BBC News Brasil não consideram que a "generosidade" da
Carta Magna brasileira seja determinante para o rombo de hoje.
Eles
acreditam que alguns ajustes devem ser feitos por meio de emendas constitucionais
(já foram aprovadas 99, aliás), mas destacam que as principais causas do
desequilíbrio são decisões tomadas pelos governos ao longo das décadas. Tanto
que, desde 1988, o Brasil registrou momentos de saldos positivos e negativos
nas contas públicas.
Essa
é a opinião, por exemplo, do pesquisador da FGV José Roberto Afonso. Ele
participou do processo de redação da Constituição como assessor do hoje senador
José Serra (PSDB-SP), que na ocasião era deputado constituinte e foi o relator
da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças.
Na
sua avaliação, a Constituição traz tantos mecanismos que desestabilizam as
contas públicas (a garantia de piso mínimo para aposentadorias, por exemplo)
como também contempla o equilíbrio fiscal (exigindo limites para a dívida
pública e até para despesas de pessoal).
"É
na prática, na gestão do dia a dia dos atos e contas públicas, que se asseguram
resultados fiscais mais frouxos ou mais austeros", escreveu em artigo
recente.
A
avaliação é a mesma do constitucionalista André Rufino do Vale, professor do
IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Ele ressalta que a Constituição
brasileira é uma das poucas no mundo que estabelece que as operações de crédito
da União não podem ser maiores que as despesas de capital (essencialmente
investimentos), mecanismo chamado de "regra de ouro".
Assim,
evita-se que um governo se endivide para pagar despesas correntes (salários de
servidores, contas de luz e telefone, entre outras), deixando a dívida para
administrações seguintes.
"A
Constituição que criou um catálogo generoso de direitos e um programa de
seguridade social ambicioso também fornece os instrumentos necessários para o
controle orçamentário e a responsabilidade fiscal. Não se pode culpá-la pela
crise", destaca.
·
Gastos sem obrigação constitucional também subiram
Um
estudo publicado no ano passado por outros dois pesquisadores da FGV - Manoel
Pires e Bráulio Borges - conclui que, se não fossem as despesas sem obrigação
constitucional criadas pelos governos nessas três décadas, o gasto primário
(sem contar pagamento de juros da dívida) estaria próximo ao de 1988, quando
medido em proporção do Produto Interno Bruto (PIB).
Eles
calculam que essas despesas do governo subiram de 12,6% do PIB potencial
(medida que desconta os efeitos conjunturais de oscilação da economia) em 1988
para 18,1% em 2016, sendo que quase metade desse crescimento (44%), por
exemplo, se deu devido aos reajustes do salário mínimo acima da inflação.
O
restante decorreu de outras rubricas criadas, entre elas o Bolsa Família e
gastos com Saúde e Educação para além do mínimo exigido na Constituição.
O
aumento do salário mínimo impacta as contas públicas porque gastos como o piso
das aposentadorias do INSS, o seguro-desemprego e os benefícios assistenciais
para idosos e deficientes estão atrelados a ele, por determinação
constitucional.
No
entanto, a Constituição prevê que o piso salarial deve passar por reajustes que
"preservem o poder aquisitivo" (correções de inflação). Os reajustes
acima disso são decisão dos governos e foram praticados em todas as
administrações desde 1995, destaca o estudo. A alta real acumulada desde 1988
supera 60%.
O
economista Rodrigo Orair, um dos diretores da IFF (Instituição Fiscal
Independente, do Senado), ressalta que a elevação do salário mínimo contribuiu
para redução da pobreza e da desigualdade social e refletiu uma demanda da
população.
Tanto
que, destaca ele, políticos de diferentes partidos vêm prometendo isso eleição
após eleição.
Neste
ano, o candidato a presidente Geraldo Alckmin (PSDB) já se comprometeu a
aumentar o piso salarial acima da inflação caso eleito.
A
proposta também está no plano de governo do candidato petista, Fernando Haddad.
Questionado sobre o assunto em entrevista ao canal Globonews, o candidato líder
nas pesquisas, Jair Bolsonaro (PSL), sinalizou que também manterá a política de
valorização ao responder que "não podemos ir condenando, ano após ano, os
proventos dos aposentados (a ir) diminuindo".
Manoel
Pires, da FGV, ressalta que o salário mínimo, após subir nos anos 50 e 60, caiu
nos anos 70 e 80. Dessa forma, sua elevação após o Plano Real (1994)
representou uma recomposição do seu valor. Agora, ele defende que o ritmo de
valorização deve diminuir.
"Essa
recomposição do salário mínimo foi uma demanda democrática da sociedade. Diante
do rombo fiscal, temos que discutir se faz sentido continuar", defende.
·
Redução de gastos x elevação de impostos
Ainda
que a Constituição não seja a causa determinante do rombo fiscal nos últimos 30
anos, os economistas entrevistados concordam que é preciso reformá-la para
evitar que o déficit persista e se agrave.
O
economista-chefe do BNDES, Fabio Giambiagi, defende que sejam modificadas as
regras da Previdência Social, tendo em vista o acelerado envelhecimento da população.
Como se dará essa reforma, porém, é motivo de ampla controvérsia na sociedade.
"Não
faz sentido ter parâmetros que mudam com o tempo no texto constitucional. A
demografia é transgressora e está nem aí para a Constituição", resume
Giambiagi.
Já
a constitucionalista Adriana Ancona, professora da PUC-SP, defende que não se
deve combater a crise fiscal com cortes de gastos que afetem os mais pobres.
Crítica do novo teto constitucional, que, na sua avaliação, congela os recursos
para Saúde e Educação, ela defende uma reforma tributária que reduza os
impostos sobre consumo e eleve sobre a renda dos mais ricos.
A
Constituição, por exemplo, prevê imposto sobre herança, mas a regulamentação
definiu como alíquota máxima 8%, enquanto em países desenvolvidos ela chega a
50%.
"Se
a gente minimamente atacar o sistema tributário, enfrentamos muito melhor a
crise fiscal do que retirando direitos essenciais", defende.
Por
que tão grande?
De
acordo com o CPP (Comparative Constitutions Project), citado no início da reportagem,
o Brasil tem a terceira maior Constituição do mundo. Seu texto totaliza 64.488
palavras, perdendo apenas para Índia (146.385 palavras) e Nigéria (66.263). A
média de texto das 190 constituições é de 22.291 palavras.
Já
em quantidade de direitos previstos, a Constituição Cidadã aparece em décimo
lugar, com 79. Os primeiros no ranking são Equador (99), Bolívia (88), Sérvia
(88) e Portugal (87), enquanto a média do planeta fica em 50.
Críticos
do gigantismo brasileiro muitas vezes citam a Constituição dos Estados Unidos,
que tem apenas 7.762 palavras, como exemplo a ser seguido. Constitucionalistas
americanos ouvidos pela BBC Brasil, por sua vez, ressaltam que os dois textos
nascem em contextos muito diferentes.
Como
destaca o juiz americano Peter Messitte, estudioso do sistema legal brasileiro,
o texto dos Estados Unidos foi escrito em 1789, pouco depois da independência
do país, por um pequeno grupo de lideranças políticas, e está em vigor até
hoje, tendo recebido apenas 27 emendas.
Já
a do Brasil é muito mais recente e foi adotada após duas décadas de ditadura
militar (1964-85), período em que houve muita violação de direitos. Seu texto
foi debatido por dois anos, em Assembleia Constituinte, composta por 559
parlamentares eleitos.
"É
mais longa e complicada do que deveria, mas, diante das circunstâncias em que
foi escrita, muito diferentes da americana, é uma Constituição útil",
defende.
Um
dos diretores do CPP, o professor da Universidade do Texas Zachary Elkins,
ressalta ainda que, durante a redação da Constituição brasileira, houve
constantes contribuições e pressões de diferentes grupos sociais. "As
constituições modernas tendem a ser longas e, de certa forma, são um produto de
sua geração. Vejo a Constituição brasileira como produto de um processo inclusivo,
necessário como terapia após 20 anos de ditadura militar", ressalta.
No
atual contexto internacional de ascensão de forças políticas que questionam
direitos de minorias, ele considera positivo que a Constituição traga uma longa
lista de direitos.
"Dada
a próxima eleição no Brasil e, na verdade, eleições em outros lugares, fica
claro que não se pode contar com os governantes para respeitar os direitos de
todos os membros da sociedade", disse.
Ø
'Temos
ódio e nojo à ditadura': o discurso histórico que promulgou a Constituição do
Brasil
"Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à
Constituição, a nação mudou", dizia sob aplausos Ulysses Guimarães,
presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em uma sessão solene e
histórica do Congresso quando se promulgou a Carta que rege o Brasil
atualmente.
O
discurso de Ulysses passaria a ser considerado um dos mais marcantes da história recente
brasileira, com uma forte defesa da Constituição que acabava de nascer e um
forte rechaço da ditadura da qual o país se despedia.
"A
ideia era de que se inaugurava uma nova época do Brasil, deixando o velho para
trás. Era um momento de muita expectativa, sobretudo popular - as propostas da
população à Assembleia Constituinte haviam chegado às milhares", explica
Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de História da UFRJ e que foi
próximo de Ulysses Guimarães, a quem ajudou na redação de um dos artigos
constitucionais.
"Foi
sem dúvida um discurso histórico, embora Ulysses não tenha elaborado uma visão
crítica adequada da Constituição", agrega o historiador Daniel Aarão Reis,
autor de diversos livros sobre história recente do país.
A
BBC News Brasil analisa alguns dos pontos mais importantes do discurso, seu
contexto histórico e a relação com o conturbado momento político atual do país.
·
'Traidor da Constituição é traidor da pátria'
A
partir de 15h50 daquele 5 de outubro de 1988, os brasileiros passavam a ter uma
nova Constituição, com novos direitos, depois de cerca de um ano e meio de
discussões sobre o texto na Assembleia Constituinte.
"Declaro
promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça
social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!", disse
Ulysses pouco antes de os constituintes - que a partir de então passariam a
exercer função de congressistas - jurarem "manter, defender, cumprir a
Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro,
sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil".
Em
seu discurso, Ulysses advertiu que a recém-promulgada Carta não era
"perfeita".
"Quanto
a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la,
nunca", declarou o presidente da assembleia. "Traidor da Constituição
é traidor da pátria. (...) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a
tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América
Latina."
·
'Representativo e oxigenado sopro de gente'
Ulysses
prossegue elogiando a participação dos brasileiros na elaboração da Carta,
citando "122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de
assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e
votadas no longo caminho das subcomissões até a reta final".
"Há,
portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de
favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de
índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de
servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade
social do texto que ora passa a vigorar."
Para
Teixeira da Silva, a esperança daquele momento estava intimamente ligada ao
envolvimento da população com a formulação do texto e com as garantias de
direitos que a "Constituição cidadã" passava a determinar.
"A
ideia de direitos inalienáveis é muito importante na Constituição", diz
ele. "A Lei Maria da Penha, a união civil homossexual, a liberdade plena
de imprensa são coisas que jamais poderiam ser pensadas na ditadura."
Aarão
Reis reitera a ideia de que "havia uma atmosfera de otimismo que permeava
o país". "Muitos chamam a década de 1980 de perdida, mas foi um
período de muitas vitórias, conquista de liberdade e conquista de participação,
com a própria Constituição, que nunca tínhamos tido na história
republicana", diz o historiador.
·
'A pretexto de salvá-la, a tiranizam'
No
discurso, Ulysses fazia um alerta aos políticos e legisladores brasileiros,
para que honrem suas obrigações e rejeitem a corrupção, sob o perigo de esta
empurrar o país ao autoritarismo.
"A
vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do presidente
da República ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria.
A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba
nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam", disse.
"Não
roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento
da moral pública. Não é a Constituição perfeita. (...) Mas será útil, pioneira,
desbravadora, será a luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados."
O
historiador Aarão Reis opina, porém, que Ulysses parece ter sobrevalorizado
aspectos positivos da Constituição "e elaborado de forma pouco crítica o
legado da ditadura" mantido na Carta.
"Apesar
de ser inovadora nos direitos civis, a Constituição ao mesmo tempo incorpora
legados do período ditatorial", afirma. "Por exemplo, a centralização
do Poder Executivo, a tutela das Forças Armadas, a utilização de Medidas
Provisórias e o modelo econômico consagrado pela ditadura."
Teixeira
da Silva afirma que, já à época, havia a sensação de que a Constituição nascia
sob algumas "amarras" - o historiador é especialmente crítico aos
mecanismos que permitiram, por exemplo, que candidatos a deputado com alta
votação "puxassem" ao Congresso políticos eleitoralmente
inexpressivos do mesmo partido. E foi naquela época, também, que começaram a se
formar forças que seriam determinantes na vida político-partidária do país nas
décadas seguintes, até os dias atuais.
"É
interessante notar que, logo depois (da promulgação), Ulysses Guimarães foi
derrotado nas eleições de 1989. Isso ilumina um pouco o processo da época,
quando se formou o chamado 'Centrão' (bloco de partidos que mais tarde seriam
acusados de fisiologismo), que ajudou a eleger uma figura que nada tinha a ver
com a Constituição de 1988 (em referência a Fernando Collor)", diz o
historiador.
"Acabou
se gerando uma sensação muito grande (na população) de 'vocês não me
representam' e a irrupção de outsiders que recusam a democracia."
·
Anseio de mudança
Todo
o discurso de Ulysses era permeado por menções ao anseio de mudança da
população.
"Termino
com as palavras com que comecei esta fala: a nação quer mudar. A nação deve
mudar. A nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade
política da sociedade rumo à mudança", concluiu o texto.
Para
Teixeira da Silva, o problema é a Constituição "não ter sido cumprida até
o fim", ou seja, ter falhado nos mecanismos de representação popular.
"O ideal seria apanhar o discurso do Dr. Ulysses e colocá-lo todo em
prática", opina.
Para
Aarão Reis, o próprio Ulysses personifica o caráter "híbrido" daquele
momento e da Constituição: "O grande campeão da redemocratização havia
sido um homem da ditadura em seu início (ele apoiara o golpe de de 1964 e logo
depois mudara à oposição), quando ainda se achava que seria uma retomada rápida
de poder (pelos militares) para combater o comunismo e a corrupção e que logo
depois se daria lugar às eleições."
Fonte:
BBC News Brasil
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