3 anos de pandemia: pacientes com covid longa e sequelas não conseguem tratamento no SUS
Kellyane
Vaz, 30, da cidade de Palmas (TO), não dirige desde o dia 7 de junho de 2020,
quando passou a apresentar sequelas neurológicas desencadeadas pela covid-19.
Naquela noite, estava deitada quando começou a sentir suas pernas tremerem —
havia sido diagnosticada com o vírus em 22 de maio, 16 dias antes. Poucos
segundos depois, perdeu a força e já não conseguia nem segurar o celular.
No
dia seguinte, ela foi internada no Hospital Geral de Palmas, onde ficou na ala
neurológica por dez dias. “O tremor não passava, eu continuava com as pernas
tremendo, não tinha domínio sobre a perna nem força nos braços. Sentia muita
dor no corpo todo. Parecia que os ossos estavam desmanchando”, contou em outubro de 2020
à Agência Pública.
Há
alguns dias, a reportagem procurou Kellyane mais uma vez. Em entrevista, ela
disse que voltou a caminhar normalmente e está com a memória normal, mas “a
questão da coordenação motora ficou comprometida”. “Ainda sinto fraqueza nos
membros superiores, nos braços, às vezes ainda falta força”, explicou.
A
falta de coordenação motora e força nos braços continua a impedindo de dirigir.
“Eu dirigi umas duas vezes [desde que saí do hospital] e tive uma crise de
pânico por não conseguir ter os movimentos rápidos que eu precisava, trocar
marcha, virar volante, o básico”, apontou Kellyane. “Acaba que você fica
dependente de terceiros”, lamentou.
Assim
como Kellyane, cerca de ⅓ das pessoas que
tiveram a doença podem estar enfrentando a “covid
longa”, muitas sem nem saber, de acordo com estudo conduzido
pelo Instituto Todos pela Saúde (ITpS). Entre os sintomas que podem indicar a
existência da síndrome pós-covid estão problemas neurológicos, respiratórios e
gastrointestinais prolongados.
Para
o pesquisador científico do ITpS, Vanderson Sampaio, devido à variedade de
sintomas da síndrome pós-covid, seu diagnóstico é difícil. Ele aponta que as
sequelas são mais comuns entre as pessoas que foram infectadas com as primeiras
cepas do vírus, em parte porque não havia vacinação na época, e também destaca
que algumas das pessoas com sequelas “podem precisar de um suporte adicional de
serviço de saúde”, o que indica a necessidade do sistema público se preparar
para essa demanda.
O
infectologista Max Igor Lopes, consultor da Sociedade Brasileira de
Infectologia, relata que a medicina ainda não sabe como o covid-19 causa tantas
sequelas, o que explica parte da dificuldade de identificar e tratar a doença.
As sequelas nem sempre aparecem logo após a infecção, e podem surgir depois de
meses. Sem o marco temporal definido, fica difícil estabelecer a relação entre
causa e consequência, explica. “Tem pessoas que estão lidando ainda com a
dificuldade, não conseguem trabalhar ou se concentrar, e parece que isso é um
problema delas, folga, falta de compromisso, mas não. Como não existe uma
ferramenta adequada para confirmar que isso está acontecendo, eles sofrem com a
dificuldade médica de conseguir definir esses sintomas e alterações”,
afirmou.
Três
anos depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) classificar o surto de
covid-19 como “pandemia”, a vacinação em massa conseguiu reduzir drasticamente
a quantidade de mortes e casos graves da doença, mas, em um país que teve ao
menos 37 milhões de casos, é possível que
milhões de pacientes sigam sofrendo com as sequelas provocadas pela infecção.
Os danos afetam tanto pessoas que tiveram casos graves e precisaram ser
internadas e intubadas, quanto pacientes que tiveram sintomas leves.
·
“Se não
tivesse condições, eu teria morrido”
Quando
conversou com a Pública pela
primeira vez, em outubro de 2020, Francisca Benedita, 46, ainda estava fazendo
fisioterapia intensiva para voltar a andar sozinha, depois de enfrentar um caso
grave de covid-19. Moradora de Fortaleza (CE), ela se infectou com a doença em
maio daquele ano, chegou a ficar em coma e foi intubada. Conseguiu vencer a
fase aguda da doença, mas encarou uma longa jornada para retomar as atividades
básicas do dia a dia.
Hoje,
Francisca retomou o trabalho de vendedora e a prática de atividade física, mas
ainda não se livrou completamente das sequelas causadas pela doença. Suas
tomografias, feitas periodicamente, seguem registrando manchas em seus pulmões.
Se ela tem que caminhar um pouco mais rápido, fica ofegante e precisa se sentar
“como se tivesse corrido 300 quilômetros”. As dores de cabeça e no corpo seguem
sendo quase diárias, Francisca tem ainda hoje dificuldade para dormir e passa
por episódios de queda de cabelo. Os banhos tiveram que ser encurtados, porque
ela sente mal estar quando passa muito tempo no chuveiro. Além disso, a
vendedora desenvolveu um quadro de pressão alta – que não tinha antes da covid
– e passou a ter intolerância a alguns alimentos que costumava comer
normalmente.
Francisca
conta ainda que às vezes se sente mal, como se estivesse com “uma depressão”.
“Tem dias que eu sinto algo, preciso desabafar, como se fosse uma depressão. Eu
acho que isso também faz parte do quadro e as pessoas deviam ser ouvidas,
acompanhadas. Eu sinto coisas que eu não sei explicar, que eu não sentia antes.
Se eu tivesse um acompanhamento legal de um hospital talvez eu entendesse o que
é”, explicou.
A
médica da família, Raquel Soeiro, pesquisadora da Unicamp, aponta que a falta
de orientação sobre as sequelas leva os pacientes a um “ciclo vicioso”. “Eles
não conseguem mais fazer as atividades que eles faziam antes e aí vão
deprimindo. E muitas vezes as pessoas não acreditam neles, acham que o que eles
relatam não é verdade, que é da cabeça deles, então eles vão ficando pior
ainda. Isso eu tenho visto muito”, explicou. Ela apontou também que tem havido
uma “demanda enorme” por tratamentos de saúde mental por parte dos pacientes
com sequelas.
Por
não conseguir se tratar pelo SUS, o tratamento de Francisca, que incluiu várias
sessões de fisioterapia e envolve consultas com um pneumologista e com um
cardiologista até hoje, foi todo feito no particular. Perguntada como seria se
não tivesse condições de arcar com os altos custos do tratamento, ela foi
categórica: “Eu teria morrido, porque o que eu gastei de dinheiro, o quanto a
minha família me ajudou… Se não tivesse condições, como que eu ia pagar a
fisioterapia? Fora os remédios, as vitaminas, porque eu saí do hospital com uma
ficha imensa de medicação. Eu não ia me recuperar”, afirmou.
Sampaio,
do ITpS, ressalta que a covid longa tem um aspecto crônico, o que impacta
diretamente no volume de atendimentos no sistema de saúde. “A gente tem pessoas
com sequelas crônicas que vão necessitar de atendimento especializado. Aquela
pessoa que, por exemplo, tem um problema gastrointestinal grave, não vai ser
atendida numa Unidade Básica de Saúde (UBS). Ela vai requerer atendimento
hospitalar, às vezes cirurgia ou uma consulta eletiva com especialistas, que já
estão sobrecarregados com a demanda reprimida que vem do período mais crítico
da pandemia e de pessoas com outras doenças graves. Esse montante se soma agora
com as pessoas que têm síndrome pós-covid”, explicou ele.
·
Cansaço e fadiga podem seguir por anos após
covid
Quando
a pandemia de coronavírus estourou há três anos, Cláudia Almeida, 50, não teve
como fugir. Agente municipal de saúde, baseada em Macaé (RJ), Cláudia
trabalhava num ambiente propício para contrair o vírus: um posto de
saúde.
Em
abril de 2020, Cláudia começou a demonstrar os primeiros sintomas da infecção.
Em seguida veio o teste positivo. O caso de Cláudia escalonou rápido, em pouco
tempo seu pulmão perdeu 35% da capacidade. Os dias que se seguiram foram longos
e Cláudia achou que não fosse se recuperar. No auge da infecção, ela já não
conseguia mais andar e falar. “Fiquei de cama direto, porque não conseguia me
alimentar mais, não conseguia fazer mais nada”, diz.
Quando
a Pública conversou
com Cláudia, em outubro de 2020, a agente de saúde já tinha superado a doença,
mas enfrentava uma nova luta: as sequelas da covid.
Cláudia
continuou sentindo falta de ar, fadiga extrema e “pressão no peito”. Os
sintomas acenderam um sinal de alerta em seu médico, que lhe pediu, em maio
daquele ano, que realizasse alguns exames, mas “até hoje nenhum dos exames foi
chamado”, explicou à reportagem em nova entrevista, há alguns dias. “Você chega
lá e eles dão o número de protocolo para aguardar vaga. Agora eles falam que
tem que pedir um novo pedido de exame, tem que voltar no médico”.
Sem
tempo e com a alta demanda do SUS, a agente de saúde recorreu aos amigos e
conhecidos, através de uma vaquinha virtual, para custear os exames na rede
particular. “Foi quando o médico começou a achar as sequelas”, relembra.
Os
exames feitos por Cláudia apontaram a existência de uma inflamação no pulmão e
de problemas que afetam a funcionalidade do coração, gerando alterações nos
batimentos cardíacos. Meses depois de constatada a disfunção, Cláudia recebeu
em junho de 2021 a indicação do transplante de marcapasso definitivo.
Hoje,
três anos depois, Cláudia ainda convive com as sequelas da covid, que a
impactam física, mental e profissionalmente. O cansaço e a fadiga extrema a
afastaram do trabalho no início de 2021. Em 2022, Cláudia voltou à rotina,
agora em uma função administrativa, que não exige o mesmo esforço físico de
antes, quando realizava visitas domiciliares aos pacientes do SUS.
A
fadiga extrema e o cansaço, frutos do alcance da infecção no pulmão, poderiam
ter sido controlados com a realização de fisioterapia pulmonar adequada, uma
ferramenta médica indicada para as sequelas da covid-19. Cláudia chegou a
procurar o tratamento pelo SUS em 2021, mas achou que os exercícios não estavam
ajudando e desistiu. Como os sintomas ainda persistem, Cláudia pensa em
procurar novamente a fisioterapia pulmonar, dessa vez pela rede
particular.
Para
a fisioterapeuta Liliane Patrícia de Souza, doutora em Ciências da Reabilitação
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vice-coordenadora do Projeto
Respirar, voltado à reabilitação da capacidade pulmonar, quanto mais rápido o
paciente procura ajuda, mais rápido ele consegue reverter a sequela. O Projeto
Respirar já atendeu mais de 300 pacientes, que hoje não apresentam mais
dificuldade pulmonar e fadiga.
Entretanto,
Liliane afirma que o tratamento não é acessível a todos; o pequeno número de
centros voltados especificamente à reabilitação pós-covid não dá conta da
demanda da população. Ela diz ainda que não é o custo que impede que o
tratamento seja mais aplicado, visto que os treinos são simples e baratos, mas
sim a falta de profissionais capacitados.
Apesar
da diminuição dos casos graves de covid-19 graças à cobertura vacinal, o
Projeto Respirar continua atendendo pacientes com covid longa. Os sintomas
mudaram, mas duas sequelas continuam as mesmas: cansaço e fadiga extrema. “É
por isso que a reabilitação pulmonar tem um papel tão importante, porque a
gente reabilita o pulmão, o coração e os músculos”, afirma.
De
acordo com Liliane, “até hoje a gente vê que as pessoas têm uma dificuldade
para reconhecerem a covid longa, porque falta de ar não é uma coisa mensurável.
O cansaço não é uma coisa mensurável. É muito difícil ter que provar que você
realmente está cansado”.
Max
Igor Lopes aponta que uma das sequelas já diretamente ligadas à covid longa é a
Síndrome da Fadiga Crônica, que gera justamente a sensação de cansaço
constante. “É uma falta de força, como se a bateria não carregasse. Ou como
aquela bateria viciada que carrega, mas descarrega muito fácil. O sono não é
reparador, a pessoa está sempre cansada, não consegue se manter muito tempo
numa atividade”, afirmou ele.
Os
dois ressaltam a necessidade de que o conhecimento sobre o tema seja organizado
para a geração de políticas públicas que propiciem um atendimento transversal e
uma investigação mais aprofundada das sequelas, a fim de garantir prevenção e
tratamento.
·
Não existe protocolo federal com orientações sobre o
tema
O relatório do Grupo
Técnico de Saúde do governo de transição, publicado em dezembro do ano passado,
reconhece a necessidade da criação de políticas específicas para o tratamento
das sequelas da covid-19. No tópico sobre a doença, os especialistas chamados
pelo atual governo para avaliar a gestão sanitária do presidente Jair Bolsonaro
(PL) escreveram que havia “dados insuficientes e imprecisos” sobre a
“incidência de covid longa”.
“O
sistema de saúde hoje não está preparado para lidar com esses pacientes. Não existe
um banco de dados sobre sequelas originadas a partir de uma doença base, e isso
vale para covid também”, comenta o pesquisador do ITpS.
Dados
preliminares do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde
apontam mais de três mil óbitos relacionados a causas posteriores à covid-19 no
ano de 2021. “Ao contrário do que muita gente pensa, não é um problema ‘só de
sequela’, é um problema que também pode levar a óbito. Isso é grave”, avalia
Sampaio.
A Pública também ouviu Fernando
Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), membro da Câmara
Técnica de Acompanhamento da covid-19 e que também participou do GT de
Transição. Pigatto diz que houve iniciativas locais para dar atendimento às
pessoas, “mas falta uma política nacional construída com participação que ajude
a orientar os estados e municípios e disponibilize recursos para eles”.
A
reportagem questionou o Ministério sobre a ausência de uma política federal com
orientações sobre a covid longa. Em nota, a pasta afirma que “o acompanhamento
das pessoas nessa condição é realizado nos serviços da Atenção Primária” do
Sistema Único de Saúde e que “orienta estados e municípios no manejo e
assistência aos pacientes com condições pós-covid por meio dos materiais
informativos aos profissionais de saúde com orientações e protocolos de
atendimento. Além disso, presta todo o suporte necessário aos gestores locais
do SUS”.
Ele
também conta que o financiamento do SUS no governo anterior afetou a construção
de políticas na pandemia e, por consequência, as medidas relacionadas à covid
longa. “Foram retirados mais de R$ 600 bilhões do SUS nos últimos anos, mesmo
que tenham sido colocados em custos emergenciais no período da pandemia”.
Embora
a portaria 377/2022 instituísse a
destinação de recursos aos municípios para estruturar “fluxos para o
acolhimento das pessoas que tiveram diagnóstico de covid-19, de forma a garantir
o monitoramento e a identificação das condições pós-covid” e “proceder ao
monitoramento de casos de condições pós-covid na APS”, o presidente da CNS
afirma que os repasses não foram efetivos no seu objetivo. De acordo com matéria do UOL, municípios do
Maranhão apresentaram “anomalias e distorções” no recebimentos de recursos para
terapias pós-covid: 93% do valor repassado para os municípios ficaram com 19
cidades maranhenses.
A
médica e pesquisadora da Unicamp, Raquel Soeiro, destaca que um protocolo é
muito importante para auxiliar estados e municípios. “Se o Ministério da Saúde
envia um protocolo, cada município tem a governabilidade para adaptá-lo de
acordo com a sua capacidade, mas existe uma diretriz”, explicou Soeiro.
Max
Igor Fontes sugere ainda que as autoridades nacionais sanitárias se atentem à
prevenção das sequelas, não apenas ao tratamento, especialmente pensando em
grupos de risco para a síndrome pós-covid, como as mulheres. Ele indica tentar
disponibilizar tratamento e diagnóstico, com antivirais, por exemplo.
Já
Raquel Soeiro destacou um entre os poucos esforços de capacitação dos
profissionais da saúde acerca do cuidado dos pacientes com a covid longa: um
curso à distância promovido pela Universidade Federal
do Maranhão,
com carga horária de 45 horas. O curso já foi ofertado duas vezes, em 2021 e
2022, e ofereceu ao todo 20 mil vagas. De acordo com o site do projeto, o
material busca ensinar sobre “as consequências e impactos da covid-19 sobre a
saúde dos indivíduos afetados assim como reconhecer estratégias de reabilitação
e orientações quanto às necessidades de intervenção aos usuários do Sistema
Único de Saúde (SUS) que se infectaram pelo SARS-Cov-2”.
Ainda
assim, há muito desconhecimento sobre o tema. Uma das principais queixas dos
pacientes é não terem os sintomas que apresentam reconhecidos pelos médicos
como sequelas da covid-19. Soeiro aponta que a covid longa tem sido muito
estudada no meio acadêmico, mas que “os médicos ainda estão bem perdidos e não
tem muita resposta pra dar pros pacientes”.
Fonte:
Por Bianca Muniz, Laura Scofield, Rafael Oliveira, Raphaela Ribeiro, da Agencia
Pública
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