Remarcações disparam nos supermercados argentinos
Um funcionário de uma grande rede de supermercados
argentina caminha pelos corredores de uma filial do bairro de Palermo arrancando
cartazes do antigo programa “Preços Cuidados”, implementado pelo governo do
ex-presidente Alberto Fernández.
Perguntado sobre as remarcações de preços nas
últimas 48 horas — desde que Javier Milei assumiu a presidência do país, no
domingo —, o funcionário Diego Gutiérrez confirma que na noite da última
segunda-feira muitos produtos sofreram reajustes de 25%.
Hoje, ele e seus colegas já receberam ordens de
aumentar tudo o que não foi remarcado na loja, em média em 25%, após o anúncio
do primeiro pacote de medidas que será realizado pelo ministro da Economia,
Luis Caputo, marcado para a tarde desta terça-feira.
A mudança de governo teve um impacto imediato no
mercado consumidor argentino, já castigado pela inflação anual de três dígitos,
por duas razões centrais: foram automaticamente eliminados programas de
controle estatal dos preços como os chamados “Preços Cuidados” e “Preços
Justos”.
• 'Quem
quiser pagará', diz ministra
E a nova Casa Rosada deu sinal verde para que
empresas de todos os setores da economia apliquem os preços que considerem
adequados, uma espécie de choque de liberalismo.Nas palavras da nova ministra
das Relações Exteriores, a economista Diana Mondino, “os preços serão os
determinados pelo mercado. Quem quiser pagará, e quem não quiser não”.
No governo Milei, vale tudo em matéria de preços
internos. E, embora 55% dos eleitores argentinos tenham votado pelo líder da
ultradireita nacional, que passou a campanha inteira dizendo que a única saída
era um ajuste e um grande sacrifício nacional, o clima no país é de medo pelo
que vem por aí.
• 'Serei
afetado como vocês', diz remarcador
A Argentina foi cenário de uma hiperinflação nos
anos de 1989 e 1990, e, desde o fim da conversibilidade, que atrelou o peso ao
dólar entre 1991 e 2002, vive às voltas, sobretudo nos últimos oito anos, com
taxas de inflação elevadas. As previsões de economistas privados para 2023 são
de uma variação positiva do Índice de Preços ao Consumidor de até 180%.
— Se ainda não fez suas compras, faça. O que vem
por aí é pesado — avisa Gutiérrez, o operador da máquina de remarcar do
supermercado, que, diante do comentário de clientes que ouviram a conversa e
pediram para ele “pegar leve”, respondeu: — Quem dera que dependesse de mim,
serei tão afetado como todos vocês.
Segundo disse o próprio Milei em seu primeiro
discurso como chefe de Estado, um dos objetivos de seu governo é evitar uma
hiperinflação no curto prazo. O que os argentinos ainda não sabem — porque
estão no escuro em matéria de medidas econômicas a serem adotadas — é como o
primeiro presidente outsider da História da Argentina vai enfrentar a crise.
• 'Estamos
assustados. Não temos paz', diz consumidora
Uma das que se queixou foi a aposentada Lola
Luchetti, de 85 anos, que anda pelo supermercado com uma calculadora das
antigas, para garantir que o dinheiro que tem na carteira será suficiente para
pagar suas compras. Ela mora sozinha, e compra o básico para se alimentar
durante uma semana. Em seu carrinho tinha leite, suco, uma abóbora, uma caixa
de chá e algumas frutas.
— Não posso fazer mais as compras sem a calculadora
porque muitas vezes cheguei no caixa e o dinheiro que tinha não alcançou. Com
os últimos aumentos estamos todos muito assustados — comenta a aposentada.
Sua única filha mora nos Estados Unidos, como
tantos outros argentinos que emigraram nos últimos anos. Lola não quer ir
embora, e faz malabarismos para viver com uma aposentadoria de diz ser mínima e
o aluguel de um imóvel que lhe dá uma renda extra.
— Já passei por todas as crises argentinas dos
últimos 80 anos, a hiperinflação dos anos de 1989 e 1990 foi terrível. Nós, os
argentinos, não temos paz, e agora, mais uma vez, estamos esperando uma
catástrofe — desabafou a aposentada.
• 'Catástrofe',
a palavra da vez
A palavra catástrofe esteve presente no discurso de
posse do novo presidente e tem sido usada diariamente pelo porta-voz da Casa
Rosada, Manuel Adorni. A sensação nos comércios portenhos é de que as pessoas
estão, justamente, esperando a anunciada catástrofe acontecer. Uma verdadeira
crônica de uma morte anunciada, diria o escritor colombiano Gabriel Garcia
Márquez.
Vendedora de uma loja de aves e ovos, Florencia
Rivero recebeu nesta terça a notícia de que a caixa de oito frangos que o
estabelecimento compra semanalmente aumentou de 20 mil para 22 mil pesos. O
intervalo é equivalente a entre cerca de R$ 111 para R$ 122, no câmbio
paralelo.
— Teremos de reajustar todos os preços — afirma a
vendedora, cansada dos reajustes semanais e mensais, que superam amplamente os
indicadores do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), responsável
pela medição da inflação oficial.
De acordo com o organismo, em outubro passado —
último dado divulgado —, os preços aumentaram 8,3%. Para dezembro, é esperada
uma taxa de dois dígitos, como já aconteceu em meses recentes. Em 12 meses, o
índice já está em torno de 140%.
• 'Tivemos
reajustes de até 40% em um mês', diz vendedor
Mas na grande maioria dos comércios de Buenos Aires
os preços aumentam mensalmente, em média, 20%, assegura Gustavo, vendedor de
uma loja de produtos naturais que prefere não dizer seu sobrenome:
— Tivemos reajustes de até 40%. Depois das
primárias de agosto, a disparada do dólar impactou com força nos preços.
Ele, como muitos argentinos, sabe que, a partir de
agora, será necessário caminhar muito para encontrar os melhores preços. Como
recomendava a falecida Lita de Lazzari, que ficou famosa na década de 80,
quando era presidente da Associação de Donas de Casa da Argentina, por sua
frase “caminhem senhoras, caminhem”, o jeito, admitiu Gustavo, será gastar a
sola do sapato para cuidar do bolso.
— Estamos vendo muitas distorções de preços,
sobretudo nos grandes supermercados. Um mesmo produto pode custar 2 mil ou 3
mil pesos. Só procurando muito para conseguir gastar menos — enfatiza o
vendedor.
• 'Votamos
em Milei, mas sabemos que vai doer'
Benita Olmos, que tem uma pequena quitanda de
frutas e verduras no bairro de Belgrano, admite que nas últimas semanas foi
obrigada a reajustar preços todos os dias. Os produtos que mais aumentaram,
contou Olmos, foram tomate, pimentão e morango, entre outros.
— Muitas vezes estou aumentando menos do que
deveria, porque as pessoas estão comprando cada vez menos. Levam uma banana,
dois tomates, uma planta de alface, o necessário para um ou dois dias — conta a
vendedora.
Muito perto dela, Carlos Fernández, dono de um
quiosco, típico comércio argentino que vende bebidas, doces, cigarro e
sorvetes, entre outros produtos, estima que nos últimos dois meses os preços de
seus produtos aumentaram, em média, 50%.
Fernández, de 45 anos, teme, como a grande maioria
de seus compatriotas, que os próximos reajustes sejam ainda mais expressivos e
provoquem uma queda nas vendas.
— Já vimos esse filme algumas vezes, e sabemos que
o combo de ajuste mais inflação é sinônimo de uma crise muito profunda. Embora
muitos tenhamos votado por Milei, a crise vai doer e muito, já estamos sentindo
— conclui o vendedor.
'Choque'
de Milei vai agravar caos econômico e social na Argentina
O suspense continua. Sem citar medidas econômicas
concretas, o ultradireitista Javier Gerardo Milei, novo presidente da
Argentina, assumiu a Casa Rosada com a promessa de entregar “luz no fim do
túnel”, mas à custa de um “choque” sem precedentes. “¡No hay plata!” (“não há
dinheiro!”), tentou justificar-se o mandatário, recorrendo a uma frase que já
virou bordão entre seus apoiadores.
Seu discurso de posse, neste domingo (10/12), na
escadaria do Congresso, em Buenos Aires, durou pouco mais de meia-hora. À falta
de ações e propostas, Milei recheou a fala de recados, como a própria expressão
“¡No hay plata!“.
O termo com que os argentinos denominam o dinheiro
está presente no nome do país. “Argentina” deriva do verbete latino argentum,
que quer dizer exatamente “prata”. Por isso, “¡No hay plata!” é a forma como
Milei, mais do que reclamar da inexistência de reservas, acaba por negar
qualquer interesse nacional ou popular em seu receituário ultraliberal.
Trombeteando que “nenhum governo recebeu uma
herança pior” que o seu, Milei previu dias duríssimos para o povo argentino. Às voltas com inflação
acumulada de 142,7% nos últimos 12 meses, ele disse que o índice pode chegar a
15.000% ao ano. E emendou: apenas um mega-ajuste fiscal tirará a Argentina da
“pior crise de sua história”.
Ainda assim, antes de uma eventual “luz no fim do
túnel”, o país viverá sob longa e aflitiva escuridão. “Lamentavelmente, tenho
que dizer a vocês que não há dinheiro. Por isso, a conclusão é que não há
alternativa ao ajuste e ao choque”, disse. “Naturalmente, isso impactará de
modo negativo o nível de atividade, emprego, salário real e quantidade de
pobres.” O choque de Milei vai, inevitavelmente, agravar o caos social e
econômico da já sofrida nação sul-americana.
Segundo o presidente empossado, a primeira tragédia
a ser contabilizada é uma combinação explosiva de estagnação econômica e
hiperinflação — a chamada “estagflação”. A missão do novo governo é convencer o
povo de que vale a pena atravessar um tão tortuoso “caminho da reconstrução”,
sem saber exatamente onde se vai chegar. Como Milei projeta dois anos para
“ajustes dolorosos”, o prazo não é curto.
Pesa contra o novo governo uma base parlamentar
frágil. Milei terá de ceder (e muito) para aprovar tantas medidas impopulares.
Na posse, ao discursar do lado de fora da Assembleia Legislativa e esnobar até
congressistas de seu partido, o presidente sinalizou mal.
Fora o palavrório, o que há de novo? No primeiro
dia de mandato, o número de ministérios foi reduzido à metade, uma iniciativa
mais simbólica do que produtiva. A irmã do presidente, Karina Milei, a quem ele
chama de “O Chefe”, foi nomeada sua secretária-geral, o que exigiu a revogação
de um decreto antinepotismo editado em 2018 pelo ex-presidente Mauricio Macri.
O “pacotaço” fiscal ficará para esta terça-feira
(12/12). “Ao contrário do passado, o ajuste recairá quase inteiramente sobre o
Estado, e não sobre o setor privado”, adiantou Milei, que não citou nem a
dolarização da economia nem o fechamento do Banco Central – duas de suas
promessas mais polêmicas de campanha. É certo, no entanto, que, a depender da
vontade da nova Casa Rosada, vêm por aí demissões do funcionalismo, desmonte do
serviço público e privatizações — a meta é cortar 5% do PIB.
Milei prometeu, ainda, um governo antissindical,
que vai reprimir “piqueteiros”. De acordo com seu discurso de posse, “quem
bloqueia as ruas violando os direitos dos seus concidadãos não recebe
assistência da sociedade. Para aqueles que querem usar a violência ou a
extorsão para obstruir a mudança, dizemos que encontrarão um presidente com
convicções inabaláveis”. A fórmula autoritária está dada. Tudo indica que, sob
Milei, a Argentina voltará a ser um laboratório da luta de classes.
Fonte: O Globo/Portal Vermelho
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