quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Remarcações disparam nos supermercados argentinos

Um funcionário de uma grande rede de supermercados argentina caminha pelos corredores de uma filial do bairro de Palermo arrancando cartazes do antigo programa “Preços Cuidados”, implementado pelo governo do ex-presidente Alberto Fernández.

Perguntado sobre as remarcações de preços nas últimas 48 horas — desde que Javier Milei assumiu a presidência do país, no domingo —, o funcionário Diego Gutiérrez confirma que na noite da última segunda-feira muitos produtos sofreram reajustes de 25%.

Hoje, ele e seus colegas já receberam ordens de aumentar tudo o que não foi remarcado na loja, em média em 25%, após o anúncio do primeiro pacote de medidas que será realizado pelo ministro da Economia, Luis Caputo, marcado para a tarde desta terça-feira.

A mudança de governo teve um impacto imediato no mercado consumidor argentino, já castigado pela inflação anual de três dígitos, por duas razões centrais: foram automaticamente eliminados programas de controle estatal dos preços como os chamados “Preços Cuidados” e “Preços Justos”.

•        'Quem quiser pagará', diz ministra

E a nova Casa Rosada deu sinal verde para que empresas de todos os setores da economia apliquem os preços que considerem adequados, uma espécie de choque de liberalismo.Nas palavras da nova ministra das Relações Exteriores, a economista Diana Mondino, “os preços serão os determinados pelo mercado. Quem quiser pagará, e quem não quiser não”.

No governo Milei, vale tudo em matéria de preços internos. E, embora 55% dos eleitores argentinos tenham votado pelo líder da ultradireita nacional, que passou a campanha inteira dizendo que a única saída era um ajuste e um grande sacrifício nacional, o clima no país é de medo pelo que vem por aí.

•        'Serei afetado como vocês', diz remarcador

A Argentina foi cenário de uma hiperinflação nos anos de 1989 e 1990, e, desde o fim da conversibilidade, que atrelou o peso ao dólar entre 1991 e 2002, vive às voltas, sobretudo nos últimos oito anos, com taxas de inflação elevadas. As previsões de economistas privados para 2023 são de uma variação positiva do Índice de Preços ao Consumidor de até 180%.

— Se ainda não fez suas compras, faça. O que vem por aí é pesado — avisa Gutiérrez, o operador da máquina de remarcar do supermercado, que, diante do comentário de clientes que ouviram a conversa e pediram para ele “pegar leve”, respondeu: — Quem dera que dependesse de mim, serei tão afetado como todos vocês.

Segundo disse o próprio Milei em seu primeiro discurso como chefe de Estado, um dos objetivos de seu governo é evitar uma hiperinflação no curto prazo. O que os argentinos ainda não sabem — porque estão no escuro em matéria de medidas econômicas a serem adotadas — é como o primeiro presidente outsider da História da Argentina vai enfrentar a crise.

•        'Estamos assustados. Não temos paz', diz consumidora

Uma das que se queixou foi a aposentada Lola Luchetti, de 85 anos, que anda pelo supermercado com uma calculadora das antigas, para garantir que o dinheiro que tem na carteira será suficiente para pagar suas compras. Ela mora sozinha, e compra o básico para se alimentar durante uma semana. Em seu carrinho tinha leite, suco, uma abóbora, uma caixa de chá e algumas frutas.

— Não posso fazer mais as compras sem a calculadora porque muitas vezes cheguei no caixa e o dinheiro que tinha não alcançou. Com os últimos aumentos estamos todos muito assustados — comenta a aposentada.

Sua única filha mora nos Estados Unidos, como tantos outros argentinos que emigraram nos últimos anos. Lola não quer ir embora, e faz malabarismos para viver com uma aposentadoria de diz ser mínima e o aluguel de um imóvel que lhe dá uma renda extra.

— Já passei por todas as crises argentinas dos últimos 80 anos, a hiperinflação dos anos de 1989 e 1990 foi terrível. Nós, os argentinos, não temos paz, e agora, mais uma vez, estamos esperando uma catástrofe — desabafou a aposentada.

•        'Catástrofe', a palavra da vez

A palavra catástrofe esteve presente no discurso de posse do novo presidente e tem sido usada diariamente pelo porta-voz da Casa Rosada, Manuel Adorni. A sensação nos comércios portenhos é de que as pessoas estão, justamente, esperando a anunciada catástrofe acontecer. Uma verdadeira crônica de uma morte anunciada, diria o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez.

Vendedora de uma loja de aves e ovos, Florencia Rivero recebeu nesta terça a notícia de que a caixa de oito frangos que o estabelecimento compra semanalmente aumentou de 20 mil para 22 mil pesos. O intervalo é equivalente a entre cerca de R$ 111 para R$ 122, no câmbio paralelo.

— Teremos de reajustar todos os preços — afirma a vendedora, cansada dos reajustes semanais e mensais, que superam amplamente os indicadores do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), responsável pela medição da inflação oficial.

De acordo com o organismo, em outubro passado — último dado divulgado —, os preços aumentaram 8,3%. Para dezembro, é esperada uma taxa de dois dígitos, como já aconteceu em meses recentes. Em 12 meses, o índice já está em torno de 140%.

•        'Tivemos reajustes de até 40% em um mês', diz vendedor

Mas na grande maioria dos comércios de Buenos Aires os preços aumentam mensalmente, em média, 20%, assegura Gustavo, vendedor de uma loja de produtos naturais que prefere não dizer seu sobrenome:

— Tivemos reajustes de até 40%. Depois das primárias de agosto, a disparada do dólar impactou com força nos preços.

Ele, como muitos argentinos, sabe que, a partir de agora, será necessário caminhar muito para encontrar os melhores preços. Como recomendava a falecida Lita de Lazzari, que ficou famosa na década de 80, quando era presidente da Associação de Donas de Casa da Argentina, por sua frase “caminhem senhoras, caminhem”, o jeito, admitiu Gustavo, será gastar a sola do sapato para cuidar do bolso.

— Estamos vendo muitas distorções de preços, sobretudo nos grandes supermercados. Um mesmo produto pode custar 2 mil ou 3 mil pesos. Só procurando muito para conseguir gastar menos — enfatiza o vendedor.

•        'Votamos em Milei, mas sabemos que vai doer'

Benita Olmos, que tem uma pequena quitanda de frutas e verduras no bairro de Belgrano, admite que nas últimas semanas foi obrigada a reajustar preços todos os dias. Os produtos que mais aumentaram, contou Olmos, foram tomate, pimentão e morango, entre outros.

— Muitas vezes estou aumentando menos do que deveria, porque as pessoas estão comprando cada vez menos. Levam uma banana, dois tomates, uma planta de alface, o necessário para um ou dois dias — conta a vendedora.

Muito perto dela, Carlos Fernández, dono de um quiosco, típico comércio argentino que vende bebidas, doces, cigarro e sorvetes, entre outros produtos, estima que nos últimos dois meses os preços de seus produtos aumentaram, em média, 50%.

Fernández, de 45 anos, teme, como a grande maioria de seus compatriotas, que os próximos reajustes sejam ainda mais expressivos e provoquem uma queda nas vendas.

— Já vimos esse filme algumas vezes, e sabemos que o combo de ajuste mais inflação é sinônimo de uma crise muito profunda. Embora muitos tenhamos votado por Milei, a crise vai doer e muito, já estamos sentindo — conclui o vendedor.

 

       'Choque' de Milei vai agravar caos econômico e social na Argentina

 

O suspense continua. Sem citar medidas econômicas concretas, o ultradireitista Javier Gerardo Milei, novo presidente da Argentina, assumiu a Casa Rosada com a promessa de entregar “luz no fim do túnel”, mas à custa de um “choque” sem precedentes. “¡No hay plata!” (“não há dinheiro!”), tentou justificar-se o mandatário, recorrendo a uma frase que já virou bordão entre seus apoiadores.

Seu discurso de posse, neste domingo (10/12), na escadaria do Congresso, em Buenos Aires, durou pouco mais de meia-hora. À falta de ações e propostas, Milei recheou a fala de recados, como a própria expressão “¡No hay plata!“.

O termo com que os argentinos denominam o dinheiro está presente no nome do país. “Argentina” deriva do verbete latino argentum, que quer dizer exatamente “prata”. Por isso, “¡No hay plata!” é a forma como Milei, mais do que reclamar da inexistência de reservas, acaba por negar qualquer interesse nacional ou popular em seu receituário ultraliberal.

Trombeteando que “nenhum governo recebeu uma herança pior” que o seu, Milei previu dias duríssimos para  o povo argentino. Às voltas com inflação acumulada de 142,7% nos últimos 12 meses, ele disse que o índice pode chegar a 15.000% ao ano. E emendou: apenas um mega-ajuste fiscal tirará a Argentina da “pior crise de sua história”.

Ainda assim, antes de uma eventual “luz no fim do túnel”, o país viverá sob longa e aflitiva escuridão. “Lamentavelmente, tenho que dizer a vocês que não há dinheiro. Por isso, a conclusão é que não há alternativa ao ajuste e ao choque”, disse. “Naturalmente, isso impactará de modo negativo o nível de atividade, emprego, salário real e quantidade de pobres.” O choque de Milei vai, inevitavelmente, agravar o caos social e econômico da já sofrida nação sul-americana.

Segundo o presidente empossado, a primeira tragédia a ser contabilizada é uma combinação explosiva de estagnação econômica e hiperinflação — a chamada “estagflação”. A missão do novo governo é convencer o povo de que vale a pena atravessar um tão tortuoso “caminho da reconstrução”, sem saber exatamente onde se vai chegar. Como Milei projeta dois anos para “ajustes dolorosos”, o prazo não é curto.

Pesa contra o novo governo uma base parlamentar frágil. Milei terá de ceder (e muito) para aprovar tantas medidas impopulares. Na posse, ao discursar do lado de fora da Assembleia Legislativa e esnobar até congressistas de seu partido, o presidente sinalizou mal.

Fora o palavrório, o que há de novo? No primeiro dia de mandato, o número de ministérios foi reduzido à metade, uma iniciativa mais simbólica do que produtiva. A irmã do presidente, Karina Milei, a quem ele chama de “O Chefe”, foi nomeada sua secretária-geral, o que exigiu a revogação de um decreto antinepotismo editado em 2018 pelo ex-presidente Mauricio Macri.

O “pacotaço” fiscal ficará para esta terça-feira (12/12). “Ao contrário do passado, o ajuste recairá quase inteiramente sobre o Estado, e não sobre o setor privado”, adiantou Milei, que não citou nem a dolarização da economia nem o fechamento do Banco Central – duas de suas promessas mais polêmicas de campanha. É certo, no entanto, que, a depender da vontade da nova Casa Rosada, vêm por aí demissões do funcionalismo, desmonte do serviço público e privatizações — a meta é cortar 5% do PIB.

Milei prometeu, ainda, um governo antissindical, que vai reprimir “piqueteiros”. De acordo com seu discurso de posse, “quem bloqueia as ruas violando os direitos dos seus concidadãos não recebe assistência da sociedade. Para aqueles que querem usar a violência ou a extorsão para obstruir a mudança, dizemos que encontrarão um presidente com convicções inabaláveis”. A fórmula autoritária está dada. Tudo indica que, sob Milei, a Argentina voltará a ser um laboratório da luta de classes.

 

Fonte: O Globo/Portal Vermelho

 

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