Ocidentaloceno, ou a origem ocidental da crise climática
Neste debate, uma história se destaca como
hegemônica, a história do Antropoceno. Com efeito, a já popular e até banal escola de Paul Crutzen assinalará que as grandes distorções ambientais causadas pela
actividade humana permitem deduzir que a Terra entrou num novo período
geológico caracterizado por ter convertido o ser humano numa força telúrica
capaz de, por si só, para modificar o clima do planeta, o que nos levaria a
confirmar a transição do Holoceno (período de clima temperado que,
após o frio Pleistoceno, permitiu o desenvolvimento das comunidades
humanas que conhecemos) para o Antropoceno, um novo período geológico
impulsionado pela atividade humana, o antropos .
No entanto, a abordagem
do Antropoceno sofre de um grave erro argumentativo ao basear-se na
falácia da generalização. Com efeito, ao basear-se numa abstração especista que
concebe a Humanidade como ator unitário, como sujeito da História, a história
do Antropoceno esconde as diversas formas políticas e culturais em que o humano
se realiza, como a fratura centro-periferia. entre Estados ou a divisão em
classes sociais dentro deles, atribuindo assim a responsabilidade pelas
alterações climáticas a um grupo homogéneo fictício.
A concretização do sistema capitalista nos seus
modos de apropriação e exploração tecnológica da Natureza será o que
desencadeará o processo imparável de modificação climática.
Portanto, se quisermos evitar a injustiça sistémica
que esta história contém, devemos começar por abordar a alternativa que o
Capitaloceno representa. Esta história, elaborada pela escola de Jason W. Moore, será a que conseguirá mostrar que, para além da abstracção da
humanidade, a concretude do sistema capitalista nos seus modos de apropriação e
exploração tecnológica da Natureza será o que desencadeia a processo imparável
de modificação climática.
Desse modo, o capitalismo, a partir das
coordenadas teóricas do Capitaloceno, emergiria como arquiteto da composição, tanto
ideológica, através da ciência esclarecida, quanto material, através dos meios
tecnológicos, de uma Natureza sujeita ao governo do princípio da acumulação. E
isto porque, para explorar capitalistamente a Natureza, será necessário, antes
de mais, construir ideologicamente a Natureza como externa, como uma alteridade
oposta ao humano, como um objecto que não tem uma relação existencial com a
humanidade.
Nesse sentido, a história do Capitaloceno adere
à tese da condicionalidade do desenvolvimento científico-tecnológico por parte
do capitalismo, de modo que seria o próprio capitalismo que, ao longo de sua
história, forja “novas ideias sobre a Natureza”, mas também sobre o ser humano
e a relação que mantêm entre si, daí derivando o famoso binômio cartesiano
humanidade e Natureza. Com efeito, o dualismo cartesiano, com a sua divisão sem
solução de continuidade entre o ser humano entendido como res cogitans, isto é,
como substância pensante, e a Natureza como res extenso, isto é, como
substância material e manipulável, coloca-se como o pressuposto que dominaria
toda a reflexão, acção e projecto, no mundo capitalista. E esse binômio,
afirma Moore, nada mais seria do que “uma abstração que nasce do
desenvolvimento capitalista e é imanente a ele” (2020, 38). Neste sentido,
poderia afirmar-se que a ciência moderna, o quadro científico-tecnológico,
forneceria o álibi necessário para implantar as ações imperialistas do
capitalismo.
No entanto, acreditamos que a própria história
do Capitaloceno poderia ser matizada e expandida, se nos atermos à
sua dependência tanto das ideias da Natureza como do desenvolvimento
tecnocientífico que precedeu a sua fundação, e que acabará por ser a origem da
própria civilização ocidental. .
Na verdade, se pudermos inverter o diagnóstico e
sustentar que não é o projeto capitalista de acumulação infinita que estimula o
desenvolvimento tecnocientífico que deu origem ao Capitaloceno, mas que é
o projeto de dominação tecnocientífica que ilumina o possibilidade do
capitalismo, então poderemos expandir o horizonte conceitual sobre a origem da
crise climática. Em suma, se assumirmos até às suas últimas consequências que
“a natureza não poderia ser categorizada como 'barata' até ser representada
como externa” (Moore, 2020, 236), então aceitamos que a ideia sobre a Natureza
e, portanto, as ciências que o elaboram deve ser genealogicamente anterior ao
próprio capitalismo e ao próprio Descartes.
Ou seja, antes de colonizar o continente americano
para explorar a sua Natureza como recurso, os europeus já tinham que assumir
a Natureza como recurso na sua visão de mundo e tinham que contemplar
o mundo a partir da parcialidade de uma perspectiva racionalista. Afirmamos,
portanto, que para acumular capitalistamente é preciso primeiro dominar
tecnocientificamente.
Concordamos com Jason Moore que as ideias
são importantes na história do capitalismo e que só através delas podemos
compreender como chegámos às portas de uma nova era climática.
Concordamos com Jason Moore que “as ideias importam
na história do capitalismo” (2020, 229), e que, portanto, apenas prestando
atenção às ideias-força com que o Ocidente tem vindo a reafirmar-se
como cultura dominante, estaremos capaz de compreender como chegamos às portas
de uma nova era climática.
E não podemos compreender a emergência e ascensão
de um sistema como o capitalismo, capaz de mudar o curso geológico de um
planeta, sem pensar nisso à luz da sua dependência de um mundo de objetos
tecnológicos e, ao mesmo tempo, de uma visão de mundo, de um projeto ideológico
cultural que o projeta. Porque o ser humano é, antes do que constrói, o que
planeja construir. O capitalismo é, portanto, a concretização
material de um projeto de dominação por meios tecnocientíficos enraizado num corpus
de ideias sobre a Natureza, do qual o famoso binômio cartesiano nada mais é do
que um apêndice moderno. Isso significa que, embora estejamos
no Capitaloceno, este seria produto da hegemonia cultural ocidental, ou
seja, que o atual período climático é uma derivação da visão de mundo
ideológica forjada no Ocidente, portanto, o Capitaloceno estaria em sua origem
um Ocidentaloceno.
Para começar, a história que nos interessa, a
história de uma Natureza ontologicamente separada do ser humano, e susceptível
de ser analisada e manipulada ao nosso capricho capitalista, tem as suas raízes
para além do protocapitalista, cartesiano e longo século XVI.
Retrospectivamente, vale a pena voltar ao que historicamente foi considerado o
berço da civilização ocidental, a Grécia Antiga, quando foi fundada
esta visão de mundo que move o Ocidente. Assim, no que diz respeito ao dualismo
ontológico, a ideia órfico-platônica de que “o corpo é o túmulo da alma”, de
que a alma transcende o corpo (Platão, 1871), seria a precursora do dualismo
cartesiano, uma vez que efetivamente, o único A condição que nos permite
separar o ser humano da Natureza à maneira cartesiana é começar por separar o
ser humano de si mesmo à maneira platônica.
E um passo adiante consistirá precisamente na
transição de uma visão de mundo em que a Natureza aparece como um
processo de crescimento, para uma visão de mundo em que a Natureza aparece como
um objeto de pensamento racionalista, iluminando e dando sentido à história
ocidental. Esta reificação da Natureza far-se-á sempre em associação
indissolúvel com o conhecimento mecânico, porque a associação entre
o conhecimento teórico e o tecnológico é prerrogativa da ciência
moderna, se não do helenismo. E com a mecânica, o que a inventividade grega
procurou foi, desde o início, dominar aspectos cada vez mais diversos da
Natureza.
Com os seus conhecimentos teóricos, tanto
matemáticos, geométricos e mecânicos, e a sua associação com o desenvolvimento
das máquinas, o Helenismo surge como a verdadeira fonte do projecto de
tecnologização capitalista total do mundo. A famosa Casa Baconiana de Salomão,
essa utopia científica paradigmática da Modernidade, nada mais seria do que
mais um passo no projecto helénico de gestão e produção de conhecimento que
representava a biblioteca de Alexandria e, em última análise, como conclui o
filósofo Pierre Hadot no seu ensaio sobre a história da ideia de Natureza, “a
mecânica grega marcou o nascimento da tecnologia” (Hadot 2021, 135).
O sonho de governar tudo com o poder concedido
pelo conhecimento das coisas divinas e dos segredos da Natureza,
encontra o fulcro para movimentar efetivamente o mundo, a ponto de modificá-lo
geologicamente, na tecnologia. E se a Grécia forjou estas ideias no
credo ocidental, será o segundo berço do Ocidente, o cristianismo, que acabará
por justificar a globalização do projecto. E o dogma cristão “encher a terra e
dominá-la” (Gênesis 1:28) só pode ser verdadeiramente consumado assumindo a
tecnovisão grega. Este pano de fundo dá sentido ao desejo baconiano de que a
raça humana recupere o seu direito correspondente sobre a Natureza por decreto
divino. Assim, uma vez que o ser humano é colocado, pela graça divina, no
centro da criação, e se torna o fim supremo, tudo fica à mercê das suas
necessidades.
O Cristianismo e a
sua antropocentrização do cosmos, em associação com a subjugação helênica
da Natureza, são os pilares fundamentais que sustentam a acumulação capitalista.
Só então, finalmente, a Natureza poderá deixar de
constituir apenas uma externalidade a ser manipulada tecnologicamente para ser
uma propriedade a ser explorada capitalistamente. O Cristianismo e a sua
antropocentrização do cosmos, em associação com a sujeição helénica da Natureza
às margens estreitas e férreas da tecnociência, são os pilares fundamentais que
sustentam a acumulação capitalista. Portanto, a história das alterações
climáticas e da transição para um novo período geológico, embora seja efectiva
e materialmente executada pelo próprio capitalismo, na verdade termina aí, como
o culminar de um processo histórico que fundou o Ocidente; Portanto, podemos
afirmar que falar do Capitaloceno é sempre falar
do Ocidentaloceno.
Localizar o início do nosso novo período geológico
no proto-capitalista e longo século XVI é esconder a importância da visão de
mundo tecno-racionalista grega dentro do Cristianismo, para justificar e
explicar o sucesso na fundação e globalização do capitalismo. Porque
o capitalismo e a sua globalização começam num mundo onde a
Natureza já está construída desde o início como externa e propriedade dos seres
humanos. Portanto, a ideia é entender não tanto que o Ocidente é Capitalista,
mas sim que o Capitalismo é Ocidental e, portanto, que o Capitaloceno é um
Ocidentaloceno.
·
Aviso aos mais exigentes: “E quanto aos países poluentes não
ocidentais?”
A globalização capitalista, ao contrário de
certas narrativas do Antropoceno, não implica a emergência de uma “cultura
global”, como se fosse uma nova entidade cultural que emergiu espontaneamente.
Pelo contrário, a globalização capitalista, enquanto acontecimento, é a jornada
histórica da subjugação da diversidade natural e cultural, num perpétuo estado
de emergência, pela cultura ocidental. O facto de hoje os maiores contribuintes
dos gases com efeito de estufa que saturam a atmosfera, modificando o clima,
serem países não ocidentais não invalida a veracidade desta observação, uma vez
que os modelos que potências como a China e
a Índia replicam nada mais são do que variantes. específico do
capitalismo tecno-ocidental.
Porém, para além desta evidência material, o
Ocidente é sobretudo as ideias que o fundaram (A Natureza como elemento
externo, explorável, manipulável, bem como propriedade do ser humano, através
da implementação do pensamento racional e científico, nas suas concreções
tecnológicas ) e, por sua vez, a globalização capitalista nada mais é do que a
imposição material destas ideias em todos os cantos do globo. Estas, como
pudemos observar, não são fundadas pelo capitalismo, nem são inventadas
por Descartes, mas é o capitalismo que se funda nelas.
O capitalismo, portanto, é o resultado de
ideias que surgiram nas origens da civilização ocidental. É por isso que
podemos concluir, no quadro das discussões entre histórias sobre o nosso
período geológico, que a nossa era, o Capitaloceno, é antes de qualquer
outra, a do Ocidentaloceno.
Fonte: Por Álvaro
San Román Gómez e Yoan Molinero Gerbeau, para El Salto

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