O entretenimento engole a política
Você olha e fica boquiaberto. Mas como pode ser?
Você esfrega os olhos, não é possível que esteja vendo o que vê. O modo como as
pessoas reagem às notícias despertam no seu espírito uma incredulidade
perplexa. Tudo na política – tudo mesmo, sem exceção – virou uma questão de
torcida organizada, de arrebatamento de almas (pequenas) e de furor irracional.
Nos tempos da Covid a gente viu de perto: a
hidroxicloroquina vai dar certo porque eu tenho fé; a ivermectina vai salvar
vidas porque eu acredito, a vacina chinesa carrega um chip oculto que vai
rastrear os desejos de consumo da vizinha, eu sei, eu vi um vídeo na internet.
Parece loucura. É loucura.
A polarização se faz de ânimos conflagrados, não
mais de opiniões divergentes. A metáfora da ágora grega não serve mais para
representar o debate público. A imagem da disputa de pontos de vista entre
seres racionais perdeu a validade. Agora, as multidões se sentem em guerras
santas, em cruzadas sanguinárias, se sentem no Coliseu de Roma apontando o
polegar para baixo. O script do tempo são os linchamentos
virtuais. O fundamentalismo corre solto. Intolerância na veia. Nos Estados
Unidos, os numerosos radicais do Partido Republicano trabalham com o dogma
tácito de que as eleições de 2020 foram roubadas, e ai de quem discordar. Para
muita gente, o aquecimento global é um mito fabricado. Eis o colégio eleitoral
do nosso tempo.
Como explicar esses efeitos de estrondos e de
fúria? As hipóteses são múltiplas, não necessariamente excludentes, mas uma
delas fala mais alto: o universo da política foi inteiramente tragado pela
linguagem do entretenimento – e, no entretenimento, a reafirmação do ego (ou do
eu) vale mais do que a verdade dos fatos. Ponto. Parágrafo.
É verdade que, desde que o mundo é imundo, a
política traz na sua fórmula ingredientes teatrais, elementos lúdicos e
temperos passionais. Sempre foi assim. A partir da prevalência das plataformas
sociais, contudo, a coisa mudou de patamar. Todas as escolhas que antes se
resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality
show interativo, onde o desejo íntimo sobrepuja com folga (e com gozo)
o interesse público. A razão e a objetividade escasseiam enquanto as emoções
eclodem, em apoteoses surdas.
O que vemos diante de nós não combina mais com os
conceitos que valiam até algumas décadas atrás. É outra coisa, outro bicho. Já
deram a esse ambiente, em que as questões políticas se comportam como atrações
circenses, o nome de “era da pós-verdade”. Foi com essa expressão, aliás, que a
revista The Economist se referiu à campanha presidencial de
Donald Trump, numa reportagem de capa em setembro de 2016. Por certo, podemos
nos referir à nova geleia geral como a “era da pós-verdade”, mas o fenômeno é
maior do que imaginávamos em 2016. É mais monstruoso e mais profundo.
Vejamos o que se passa com a comunicação dos
partidos, das autoridades estatais, das ONGs ou dos organismos internacionais.
Essa comunicação já não interpela a razão, mas a emoção – e faz isso em
formatos melodramáticos. Ou a mensagem segue o alfabeto visual estabelecido
pela indústria do entretenimento, quer dizer, ou a propaganda assimila as
narrativas baseadas no modelo bonzinhos-contra-malvados, ou não encontrará eco
nas mentes e nos corações.
A que se reduziu o impasse da guerra do Oriente
Médio? A uma disputa interminável sobre quem é que merece ser posto no papel de
vítima. Os escombros da Faixa de Gaza – escombros urbanos, escombros humanos –
são apenas o epicentro cenográfico de uma imensa guerra de imagem para ver quem
consegue tomar para si o papel de vítima. Quem fizer jus a esse lugar merecerá
o amor incondicional da plateia (antes conhecida como opinião pública).
Acostume-se. A realidade se comporta como um filme de aventura, com princesinhas
desprotegidas, cavalos suados e rapazes incultos, mas valentes.
Assim como o ideólogo do início do século XX cedeu
seu posto ao marqueteiro do início do século XXI, o instituto da razão perdeu
terreno para as identificações pulsionais, libidinais, fáceis e acachapantes
propiciadas pelas técnicas industriais do entretenimento. A política hoje
integrar o vasto comércio das diversões públicas. O cidadão, que era a fonte de
todo o poder, acomodou-se na condição de consumidor voraz de sensações
estupefacientes. Não é mais como cidadão que ele se mobiliza, mas como torcedor
fanático, como religioso fiel ou ainda como fã ardoroso.
Se você ainda tem dúvidas, releia as mensagens que
chegam nos grupos de WhatsApp. Lá estão os sintomas: os abaixo-assinados
sentimentais, as figurinhas animadas que defendem uma tese em um único segundo,
as subcelebridades desocupadas pontificando sobre assuntos complexos como se
discorressem sobre o uso da cebola numa receita vegana. Está na cara, não está?
Não, isso aí não vai dar certo. Quando as decisões
que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é
porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo.
Fonte: Por Eugênio Bucci, em A Terra é Redonda
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