Jovens indígenas sofrem racismo institucional em conferência em Manaus
Um evento que deveria servir de instrumento para
construção de políticas públicas voltadas à juventude do Amazonas, acabou se
transformando num palco de atos de racismo contra dois jovens indígenas. No
final de outubro, Israel Mirewa Sateré-Mawé, representante da Associação de
Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Watyamã), e Suzy Dessana, representante da
Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entornos (COPIME) quase foram
impedidos de participar da 4ª Conferência Estadual da Juventude do Estado do Amazonas, realizada
pela Secretaria de Estado do Desporto e Lazer do Amazonas (SEDEL) na Arena da
Amazônia, na capital amazonense.
Durante o evento, eles sofreram tentativas de
sabotagem de sua participação e sofreram uma série de constrangimentos
públicos. Um vereador do interior do Amazonas, que estava no evento, duvidou da
origem indígena de Israel e Suzy. O caso promete ter desdobramentos agora na
esfera judicial.
Pedro Tukano, que é da equipe de comunicação da
Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (APIAM), e que fez
parte da comissão organizadora da 4ª Conferência Estadual da Juventude do
Estado do Amazonas, representando a juventude da Rede de Mulheres Indígenas do
Estado do Amazonas (Makira E’ta) conta em detalhes como tudo aconteceu.
·
A história
A Conferência de Juventude é realizada em três
etapas: municipal, estadual e nacional, e funciona como um fórum de
participação social na construção das políticas públicas voltadas para a
juventude.
Durante as conferências são realizados debates em
Grupos de Trabalho (GTs) que têm eixos temáticos como educação, saúde,
território, cultura, gênero e entre outros temas para elaboração de propostas e
relatórios que são encaminhados para a etapa nacional.
Israel Sateré-Mawé e Suzy Dessana foram eleitos,
durante Conferência Municipal de Juventude, realizada em Manaus, no mês de
outubro, para representar as suas respectivas entidades na etapa estadual da
conferência.
“A participação de jovens de diversos segmentos,
como dos povos indígenas, é importante pois é nesse espaço que são definidas as
políticas voltadas para a juventude e garantia dos nossos direitos”, pontua
Pedro Tukano, originário de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro.
Para que a conferência seja considerada válida, se
faz necessária a participação de pelo menos 80% de integrantes de movimentos
sociais, entre eles representantes do movimento dos povos indígenas.
Pedro relata que os nomes de Israel e Suzy foram
repassados uma semana antes, juntamente com os demais delegados eleitos na
etapa municipal, para a organização da 4ª Conferência Estadual da Juventude do
Estado do Amazonas.
A comissão organizadora, segundo Pedro, foi
composta por representantes do Governo do Estado do Amazonas, via Secretaria de
Estado do Desporto e Lazer do Amazonas (SEDEL), com dez membros, e das
Organizações da Sociedade Civil, indicados pelos respectivos órgãos, também com
dez membros.
Ele diz que a ausência dos nomes de Israel e Suzy
foi notada por uma representante da APIAM um dia antes da realização do evento
estadual.
“O nome das organizações [indígenas] que eles
representavam ainda constavam, mas com nomes de outras duas pessoas que não
eram indígenas e que representavam outras instituições e movimentos sociais. Ao
perceber isso, a representante da APIAM questionou e pediu para que os nomes
fossem incluídos”, conta Pedro, que diz que até hoje não tem resposta do porquê
da retirada dos delegados indígenas e da inclusão do nome de duas pessoas
não-indígenas na vaga da Watyamã e Copime.
“Não recebemos explicações exatas nem da comissão
organizadora da etapa municipal, muito menos das organizações que essas duas
pessoas fazem parte. Nos reportamos à mesa de credenciamento formada por
representantes da SEDEL e também da comissão organizadora, principalmente aos
‘aliados’ representantes da ala de movimentos progressistas”, conta.
Mesmo com o problema sendo detectado um dia antes
do evento, a situação persistiu no dia seguinte. “Chegamos na Arena da
Amazônia, no dia da conferência, e os nomes deles não constavam na lista de
delegados, mas o nome de outras pessoas estavam lá, na lista de credenciamento.
Tentamos dialogar com as pessoas, explicar a situação. No entanto, não fomos
ouvidos”, descreve Pedro, que revelou que aconteceram outros casos de delegados
que não tinham seus nomes na lista, e que todos foram prontamente resolvidos –
o que não ocorreu com os representantes indígenas.
“Essas pessoas se credenciaram. No caso dos dois
indígenas, eles não conseguiram se credenciar mesmo eu e minha parceira sendo
da organização do evento e levando a situação para a comissão”.
Pedro conta ainda que foi apresentada toda a
documentação comprovando que Israel e Suzy haviam sido eleitos na Conferência
Municipal. Ainda assim, eles continuaram sendo barrados. A situação só mudou de
figura quando a líder indígena Inara Waty, que é mãe de Israel, chegou ao
local. Inara é filha de uma liderança histórica do Amazonas, Moy
Sateré-Mawé.
“Foi só quando a mãe do Israel chegou, com a ameaça
de fazer barulho é que nós fomos ouvidos pelo presidente da conferência”.
Ao constatar que as lideranças indígenas não iam
retroceder, que o problema foi solucionado. “Só que isso foi um processo
desgastante, violento porque a situação das pessoas que não eram indígenas era
resolvida”, lamenta.
Os indígenas dizem que, durante todo o momento em
que vivenciaram essa série de constrangimentos e atos de preconceito, a
organização do evento promovido pelo governo do Amazonas, não lhes deu apoio
institucional e nem acolhimento aos jovens.
·
Mais hostilidade
As hostilidades aos jovens indígenas não pararam
por aí e se repetiram dentro da própria conferência. “Enquanto eles aguardavam
a abertura do evento, uma pessoa começou a fazer barulhos estereotipados para
indígenas com a boca”, lembra ele, referindo-se à imitação de “gritos” abafados
de indígenas estigmatizados em filmes norte-americanos.
E um dos momentos mais graves aconteceu durante a
realização da conferência, quando um vereador do MDB, do interior do Estado,
questionou se Suzy e Israel eram “indígenas de verdade”.
“Ele usou um tom debochado. Perguntou se tínhamos
RANI (Registro Administrativo de Nascimento de Indígena) para comprovar que
somos indígenas e que ele mesmo poderia pegar qualquer pessoa e dizer que eram
indígenas. Neste momento a gente tentou repreender a pessoa, mas não demorou
muito ele se levantou revoltado e saiu da sala”, descreve Pedro, lembrando que
esse tipo de racismo é muito comum a indígenas que saíram de seus territórios
para o contexto urbano.
“Saímos do nosso território e vimos para a cidade e
é um processo muito difícil para a gente e que fortalece muitas vezes o
discurso de apagamento da pessoa indígena. Um indígena não deixa de ser
indígena por estar dentro de Manaus ou para sermos indígenas precisamos de um
RANI ou estar performando aquilo que eles entendem o que é ser uma pessoa
indígena. Esse processo a gente considera racista. É um apagamento étnico”,
alerta.
Os jovens indígenas optaram por não revelar à
reportagem o nome do vereador, mas ele será identificado no processo judicial
que será levado à justiça.
A reportagem da Amazônia Real entrou em contato com
a advogada Ellen Estefany, que representará os indígenas neste caso. Ela
informou que um dossiê com nomes e provas, em breve será entregue tanto na
esfera administrativa dos órgãos envolvidos requerendo medidas rigorosas, “para
que tais ações não tornem a se repetir, principalmente em um ambiente político,
que entendemos ser um ambiente democrático, quanto na esfera criminal, e por
envolver menores de idade, e para preservar as vítimas, tudo ocorrerá em
sigilo”.
Ellen Estefany ressaltou ainda que “as inoportunas
situações, se deram em um ambiente de construções políticas, e significaram um
grande retrocesso”.
Uma nota assinada em conjunto pela Coordenação de
Povos Indígenas de Manaus e Entornos (COPIME), Movimento dos Estudantes
Indígenas do Amazonas (MEIAM), Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé
(Watyamã), Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (Makira E’ta),
União Plurinacional dos Estudantes Indígenas (UPEI) e Articulação dos Povos e
Organizações Indígenas do Amazonas (Apiam) publicaram no início uma nota de
repúdio aos atos racistas contra Suzy e Israel.
“Nós, enquanto Organizações do Movimento Indígena
de representação estadual e nacional, repudiamos toda e qualquer prática
racista e reiteramos que em ambientes de construção democrática, atitudes
preconceituosas demonstram o espírito segregador de agentes de partidos
políticos, coletivos e institutos. Questionamos aqui também a posição dos
demais movimentos sociais que dizem ser aliados, mas se calam diante de tais
práticas”, questiona a nota.
·
Tristeza de um pai
Turí Sateré, pai de Israel, que foi coordenador da
Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME) por seis anos, não
esconde a tristeza com a situação enfrentada pelo filho.
“Sempre demos visibilidade à luta dos povos
indígenas, dando espaço para as discussões políticas, empoderamento das nossas
lideranças para elas defenderem as suas pautas prioritárias de cada causa. O
racismo institucional dos órgão de governos sempre foi muito combatido, porque
é um espaço de todos, as conferências são um espaço de todos de discussão e
afirmação das políticas públicas, e em pleno século 21 ainda passar por isso é
bem complicado”, lamenta o líder, que vê o filho dar os primeiros passos na luta
em favor dos povos indígenas.
Turí contou que, durante sua luta para que o filho
conseguisse avançar para etapa estadual da conferência, teve de ouvir que ele
não era indígena por ter a pele um pouco mais clara e o nariz mais afilado.
“Isso foi muito chato”, desabafa Turí.
O líder indígena é pai de quatro filhos (duas
meninas e dois rapazes) e revela que os filhos frequentam a escola com as
pinturas tradicionais de seu povo para mostrar que eles são indígenas, que
Manaus é um território indígena e que a população precisa aceitar com
naturalidade e ter um sentimento de pertencimento a este território sagrado dos
povos originários.
“A gente combate muito isso (racismo) no dia a dia.
A gente anda pintado com nossas pinturas na rua, na escola, no mercado, em
todos os lugares. As pessoas olham pra gente não param, mas percebo que o que é
natural para a gente, acaba sendo estranho para eles [brancos]”, finaliza Turí,
que agora vai ver o filho participar da etapa da Conferência Nacional da
Juventude, que começa nesta quinta-feira (14) e vai até (17), em Brasília.
A família de Turí Sateré e sua esposa Inara Waty
mora em Waikiru, uma das primeiras comunidades indígenas de contexto urbano de
Manaus. Eles são originários da Terra Indígena Andirá Marau, que abrange as
cidades de Barreirinha, Maués e Parintins, no Baixo Rio Amazonas.
·
Racismo
Para Pedro Tukano, muitas vezes o que as pessoas
consideram racismo são ataques diretos em relação à etnia, cor da pele,
aparência, cabelos, mas o que muitos não compreendem é que o racismo vai além
disso.
Ele explica que o racismo vem também de uma forma
velada, com opiniões irônicas, com barulho de boca imitando indígenas, com o
silenciamento dentro dessa esfera organizacional como foi o caso da Conferência
Estadual de Juventude.
“Quando a gente não consegue credenciar os nossos
jovens delegados eleitos, quando eles têm seus nomes trocados, mas as suas
organizações permanecem ali, mas com o nome de pessoas não-indígenas. Quando o
problema de todas as pessoas principalmente branca é resolvido, mas os nossos
não são, sendo preciso chegar uma liderança, uma referência para resolver a
questão”, lamenta.
A Amazônia Real procurou a Secretaria de Estado do
Desporto e Lazer do Amazonas (SEDEL) para comentar as denúncias feitas por Suzy
e Israel mas, até a publicação da reportagem, a secretaria não havia dado
retorno. Caso haja resposta, ela será acrescentada nesta reportagem.
Fonte: Amazônia Real
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