quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Jovens indígenas sofrem racismo institucional em conferência em Manaus

Um evento que deveria servir de instrumento para construção de políticas públicas voltadas à juventude do Amazonas, acabou se transformando num palco de atos de racismo contra dois jovens indígenas. No final de outubro, Israel Mirewa Sateré-Mawé, representante da Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Watyamã), e Suzy Dessana, representante da Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entornos (COPIME) quase foram impedidos de participar da 4ª Conferência Estadual da Juventude do Estado do Amazonas, realizada pela Secretaria de Estado do Desporto e Lazer do Amazonas (SEDEL) na Arena da Amazônia, na capital amazonense.

Durante o evento, eles sofreram tentativas de sabotagem de sua participação e sofreram uma série de constrangimentos públicos. Um vereador do interior do Amazonas, que estava no evento, duvidou da origem indígena de Israel e Suzy. O caso promete ter desdobramentos agora na esfera judicial.

Pedro Tukano, que é da equipe de comunicação da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (APIAM), e que fez parte da comissão organizadora da 4ª Conferência Estadual da Juventude do Estado do Amazonas, representando a juventude da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (Makira E’ta) conta em detalhes como tudo aconteceu.

·        A história

A Conferência de Juventude é realizada em três etapas: municipal, estadual e nacional, e funciona como um fórum de participação social na construção das políticas públicas voltadas para a juventude.

Durante as conferências são realizados debates em Grupos de Trabalho (GTs) que têm eixos temáticos como educação, saúde, território, cultura, gênero e entre outros temas para elaboração de propostas e relatórios que são encaminhados para a etapa nacional.

Israel Sateré-Mawé e Suzy Dessana foram eleitos, durante Conferência Municipal de Juventude, realizada em Manaus, no mês de outubro, para representar as suas respectivas entidades na etapa estadual da conferência.

“A participação de jovens de diversos segmentos, como dos povos indígenas, é importante pois é nesse espaço que são definidas as políticas voltadas para a juventude e garantia dos nossos direitos”, pontua Pedro Tukano, originário de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro.

Para que a conferência seja considerada válida, se faz necessária a participação de pelo menos 80% de integrantes de movimentos sociais, entre eles representantes do movimento dos povos indígenas.

Pedro relata que os nomes de Israel e Suzy foram repassados uma semana antes, juntamente com os demais delegados eleitos na etapa municipal, para a organização da 4ª Conferência Estadual da Juventude do Estado do Amazonas.

A comissão organizadora, segundo Pedro, foi composta por representantes do Governo do Estado do Amazonas, via Secretaria de Estado do Desporto e Lazer do Amazonas (SEDEL), com dez membros, e das Organizações da Sociedade Civil, indicados pelos respectivos órgãos, também com dez membros.

Ele diz que a ausência dos nomes de Israel e Suzy foi notada por uma representante da APIAM um dia antes da realização do evento estadual.

“O nome das organizações [indígenas] que eles representavam ainda constavam, mas com nomes de outras duas pessoas que não eram indígenas e que representavam outras instituições e movimentos sociais. Ao perceber isso, a representante da APIAM questionou e pediu para que os nomes fossem incluídos”, conta Pedro, que diz que até hoje não tem resposta do porquê da retirada dos delegados indígenas e da inclusão do nome de duas pessoas não-indígenas na vaga da Watyamã e Copime.

“Não recebemos explicações exatas nem da comissão organizadora da etapa municipal, muito menos das organizações que essas duas pessoas fazem parte. Nos reportamos à mesa de credenciamento formada por representantes da SEDEL e também da comissão organizadora, principalmente aos ‘aliados’ representantes da ala de movimentos progressistas”, conta.

Mesmo com o problema sendo detectado um dia antes do evento, a situação persistiu no dia seguinte. “Chegamos na Arena da Amazônia, no dia da conferência, e os nomes deles não constavam na lista de delegados, mas o nome de outras pessoas estavam lá, na lista de credenciamento. Tentamos dialogar com as pessoas, explicar a situação. No entanto, não fomos ouvidos”, descreve Pedro, que revelou que aconteceram outros casos de delegados que não tinham seus nomes na lista, e que todos foram prontamente resolvidos – o que não ocorreu com os representantes indígenas.

“Essas pessoas se credenciaram. No caso dos dois indígenas, eles não conseguiram se credenciar mesmo eu e minha parceira sendo da organização do evento e levando a situação para a comissão”.

Pedro conta ainda que foi apresentada toda a documentação comprovando que Israel e Suzy haviam sido eleitos na Conferência Municipal. Ainda assim, eles continuaram sendo barrados. A situação só mudou de figura quando a líder indígena Inara Waty, que é mãe de Israel, chegou ao local. Inara é filha de uma liderança histórica do Amazonas, Moy Sateré-Mawé.

“Foi só quando a mãe do Israel chegou, com a ameaça de fazer barulho é que nós fomos ouvidos pelo presidente da conferência”.

Ao constatar que as lideranças indígenas não iam retroceder, que o problema foi solucionado. “Só que isso foi um processo desgastante, violento porque a situação das pessoas que não eram indígenas era resolvida”, lamenta.

Os indígenas dizem que, durante todo o momento em que vivenciaram essa série de constrangimentos e atos de preconceito, a organização do evento promovido pelo governo do Amazonas, não lhes deu apoio institucional e nem acolhimento aos jovens.

·        Mais hostilidade

As hostilidades aos jovens indígenas não pararam por aí e se repetiram dentro da própria conferência. “Enquanto eles aguardavam a abertura do evento, uma pessoa começou a fazer barulhos estereotipados para indígenas com a boca”, lembra ele, referindo-se à imitação de “gritos” abafados de indígenas estigmatizados em filmes norte-americanos.

E um dos momentos mais graves aconteceu durante a realização da conferência, quando um vereador do MDB, do interior do Estado, questionou se Suzy e Israel eram “indígenas de verdade”.

“Ele usou um tom debochado. Perguntou se tínhamos RANI (Registro Administrativo de Nascimento de Indígena) para comprovar que somos indígenas e que ele mesmo poderia pegar qualquer pessoa e dizer que eram indígenas. Neste momento a gente tentou repreender a pessoa, mas não demorou muito ele se levantou revoltado e saiu da sala”, descreve Pedro, lembrando que esse tipo de racismo é muito comum a indígenas que saíram de seus territórios para o contexto urbano.

“Saímos do nosso território e vimos para a cidade e é um processo muito difícil para a gente e que fortalece muitas vezes o discurso de apagamento da pessoa indígena. Um indígena não deixa de ser indígena por estar dentro de Manaus ou para sermos indígenas precisamos de um RANI ou estar performando aquilo que eles entendem o que é ser uma pessoa indígena. Esse processo a gente considera racista. É um apagamento étnico”, alerta.

Os jovens indígenas optaram por não revelar à reportagem o nome do vereador, mas ele será identificado no processo judicial que será levado à justiça.

A reportagem da Amazônia Real entrou em contato com a advogada Ellen Estefany, que representará os indígenas neste caso. Ela informou que um dossiê com nomes e provas, em breve será entregue tanto na esfera administrativa dos órgãos envolvidos requerendo medidas rigorosas, “para que tais ações não tornem a se repetir, principalmente em um ambiente político, que entendemos ser um ambiente democrático, quanto na esfera criminal, e por envolver menores de idade, e para preservar as vítimas, tudo ocorrerá em sigilo”.

Ellen Estefany ressaltou ainda que “as inoportunas situações, se deram em um ambiente de construções políticas, e significaram um grande retrocesso”.

Uma nota assinada em conjunto pela Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entornos (COPIME), Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (MEIAM), Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé (Watyamã), Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (Makira E’ta), União Plurinacional dos Estudantes Indígenas (UPEI) e Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amazonas (Apiam) publicaram no início uma nota de repúdio aos atos racistas contra Suzy e Israel.

“Nós, enquanto Organizações do Movimento Indígena de representação estadual e nacional, repudiamos toda e qualquer prática racista e reiteramos que em ambientes de construção democrática, atitudes preconceituosas demonstram o espírito segregador de agentes de partidos políticos, coletivos e institutos. Questionamos aqui também a posição dos demais movimentos sociais que dizem ser aliados, mas se calam diante de tais práticas”, questiona a nota.

·        Tristeza de um pai

Turí Sateré, pai de Israel, que foi coordenador da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME) por seis anos, não esconde a tristeza com a situação enfrentada pelo filho.

“Sempre demos visibilidade à luta dos povos indígenas, dando espaço para as discussões políticas, empoderamento das nossas lideranças para elas defenderem as suas pautas prioritárias de cada causa. O racismo institucional dos órgão de governos sempre foi muito combatido, porque é um espaço de todos, as conferências são um espaço de todos de discussão e afirmação das políticas públicas, e em pleno século 21 ainda passar por isso é bem complicado”, lamenta o líder, que vê o filho dar os primeiros passos na luta em favor dos povos indígenas.

Turí contou que, durante sua luta para que o filho conseguisse avançar para etapa estadual da conferência, teve de ouvir que ele não era indígena por ter a pele um pouco mais clara e o nariz mais afilado. “Isso foi muito chato”, desabafa Turí.

O líder indígena é pai de quatro filhos (duas meninas e dois rapazes) e revela que os filhos frequentam a escola com as pinturas tradicionais de seu povo para mostrar que eles são indígenas, que Manaus é um território indígena e que a população precisa aceitar com naturalidade e ter um sentimento de pertencimento a este território sagrado dos povos originários.

“A gente combate muito isso (racismo) no dia a dia. A gente anda pintado com nossas pinturas na rua, na escola, no mercado, em todos os lugares. As pessoas olham pra gente não param, mas percebo que o que é natural para a gente, acaba sendo estranho para eles [brancos]”, finaliza Turí, que agora vai ver o filho participar da etapa da Conferência Nacional da Juventude, que começa nesta quinta-feira (14) e vai até (17), em Brasília.

A família de Turí Sateré e sua esposa Inara Waty mora em Waikiru, uma das primeiras comunidades indígenas de contexto urbano de Manaus. Eles são originários da Terra Indígena Andirá Marau, que abrange as cidades de Barreirinha, Maués e Parintins, no Baixo Rio Amazonas.

·        Racismo 

Para Pedro Tukano, muitas vezes o que as pessoas consideram racismo são ataques diretos em relação à etnia, cor da pele, aparência, cabelos, mas o que muitos não compreendem é que o racismo vai além disso.

Ele explica que o racismo vem também de uma forma velada, com opiniões irônicas, com barulho de boca imitando indígenas, com o silenciamento dentro dessa esfera organizacional como foi o caso da Conferência Estadual de Juventude.

“Quando a gente não consegue credenciar os nossos jovens delegados eleitos, quando eles têm seus nomes trocados, mas as suas organizações permanecem ali, mas com o nome de pessoas não-indígenas. Quando o problema de todas as pessoas principalmente branca é resolvido, mas os nossos não são, sendo preciso chegar uma liderança, uma referência para resolver a questão”, lamenta.

A Amazônia Real procurou a Secretaria de Estado do Desporto e Lazer do Amazonas (SEDEL) para comentar as denúncias feitas por Suzy e Israel mas, até a publicação da reportagem, a secretaria não havia dado retorno. Caso haja resposta, ela será acrescentada nesta reportagem.

 

Fonte: Amazônia Real

 

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