Mães são acusadas de narcisismo quando fazem o que um pai comum faria,
diz psicanalista Vera Iaconelli
Quando nos referimos aos cuidadores de uma criança,
usamos o termo "pais". Mas, nas reuniões escolares, são as mães que
são esperadas. No erro, procura-se primeiro descobrir quem é a mãe, e não o
pai. No cuidado, quem não pode se ausentar é a figura materna.
É assim que se abastece o "maternalismo",
identificado pela psicanalista Vera Iaconelli, doutora em Psicologia pela USP
(Universidade de São Paulo) como o “discurso através do qual a sociedade
justifica e reitera o lugar das mulheres — reduzidas à função de mães e
trabalhadoras domésticas não remuneradas".
Exemplos da aplicação do discurso maternalista são
apresentados por Iaconelli em Manifesto antimaternalista: Psicanálise e
Políticas da Reprodução, seu terceiro livro, que ela acaba de publicar pela
editora Zahar.
Um desses exemplos é a expectativa de devoção de
uma mãe como condição para se criar filhos saudáveis e felizes. Como
consequência, argumenta, a mãe se torna uma espécie de entidade desumanizada,
como se não tivesse sua subjetividade e suas particularidades.
No livro, Iaconelli analisa o imaginário social da
maternidade unindo a crítica cultural à sua experiência tanto no consultório
quanto no instituto que fundou, o Instituto Gerar de Psicanálise.
O resultado é um livro em que faz não só um
diagnóstico como propõe mudanças.
"Não só as mulheres, mas também os homens, e,
com certeza, a sociedade como um todo, têm muito a ganhar saindo da mentalidade
maternalista", ela explica à BBC News Brasil.
Na entrevista, a psicanalista debate o que vê como
reflexo do que chama de maternalismo no trabalho, na diversidade dos arranjos
familiares e no burnout materno. Confira os principais trechos.
• Você
vê na cultura brasileira algo que estimule o que você descreve como discurso
maternalista?
Vera Iaconelli - O Brasil, com seu passado
escravagista, tem como uma de suas heranças a figura da babá, que já foi a
figura da mulher escravizada atendendo às necessidades dos filhos da família
branca.
A babá é uma categoria de profissionais cuidadoras
que ganham pra fazer esse trabalho, muitas vezes deixando os próprios filhos
aos cuidados de outros. Ou, às vezes, as crianças cuidam umas das outras.
Quando a família brasileira sai do país, percebe que lá fora não existe esta
mão de obra, porque ela é fruto da desigualdade social.
Como a pessoa consegue trabalhar e ter acesso a uma
formação maior, ela opta, quando pode, por não fazer trabalhos domésticos ou
fazer outro tipo de trabalho — às vezes até ganhando a mesma coisa — por conta
da dificuldade que é essa relação subjetiva de cuidar do filho de alguém,
deixando o próprio filho sabe-se Deus com quem, e estabelecendo uma relação
afetiva com uma criança que está sendo criada para inclusive desprezar a babá
no futuro, porque a gente sabe que tem a questão racial no Brasil e a
subalternidade das classes menos favorecidas.
Temos também uma cultura extremamente machista. Em
países com esta cultura, você vê a mulher indiferenciada no lugar de mãe e o
homem achando que cuidar dos filhos e da casa é uma questão feminina. Embora a
gente também tenha, por exemplo, no Japão, que é considerado um país
superdesenvolvido, um machismo que tem levado as mulheres a não querer ter mais
filhos.
A questão do não nascimento de crianças para
substituir os mais velhos é muito grave, e o país não consegue reverter isso
porque lá as mulheres são uma parte importante da força de trabalho e fazem
toda a atividade doméstica sozinhas. Então, elas estão se recusando a ser mães.
O discurso maternalista é muito forte no Brasil, e
ele veio justamente para tentar proteger as mulheres que trabalhavam nas
fábricas e lavouras em condições insalubres. Elas trabalhavam nas cidades para
sustentar a prole e não conseguiram cuidar das crianças, obviamente, porque não
dá pra estar em dois lugares ao mesmo tempo. Tanto que muitas crianças ficavam
nas fábricas, inclusive.
O maternalismo veio para fazer com que o Estado, a
sociedade, comparecesse para ajudar as mulheres. Essa mentalidade de ajudar —
ou seja, de não estar inteiramente responsabilizado, mas só como alguém que
ajuda quem é o responsável — é muito marcada no Brasil até hoje.
• Sair
de casa para trabalhar tem efeitos importantes para as mulheres, especialmente
no reconhecimento de suas existências para além da maternidade. Porém, hoje,
não é incomum que as jornadas de trabalho ultrapassem 60 horas semanais nas
atividades profissionais, sem contar as horas dedicadas aos afazeres
domésticos. O que essa exigência de produtividade por parte das mulheres diz
sobre o maternalismo?
Iaconelli - As mulheres sempre trabalharam. O que
acontece é que só a partir dos anos 1960, com a revolução sexual, esse
trabalho, que era considerado uma espécie de mal necessário — porque o marido
não ganhava o suficiente, porque ela era mãe solteira, ou porque ela era viúva
—, passa a ser positivado e considerado um valor.
Então as mulheres falam: “Nós queremos ter
carreiras, queremos poder ocupar todos os postos que os homens ocupam”. Elas
entram no mercado de trabalho com tudo, mas sem a contrapartida, ou seja, sem
que o homem entre com a economia de cuidados, que são os cuidados domésticos e
com a prole. Nenhuma mulher faz filho sozinha, sempre tem esse outro faltante.
Com o neoliberalismo a gente vai entrando num
momento em que todas as pessoas trabalham com uma carga horária absurda, que
não deixa tempo não só para os filhos, mas para a vida pessoal.
A diferença é que as mulheres têm na maternidade um
valor cultural muito importante, e de fato ela tem que ser valorizada — as mães
ficaram para cuidar da próxima geração —, mas, infelizmente, elas ficaram
sozinhas, tendo que estar em dois lugares ao mesmo tempo e sendo penalizadas
nessas tarefas.
Se a mulher engravida, ela perde o emprego na hora
que volta, ou nem consegue um cargo quando está numa idade em que há mais
chances de ter filhos; os salários já são menores e muita gente os justifica
pela questão da licença-maternidade. Então você tem um show de horror, um
círculo vicioso que faz com que a maternidade se torne cada vez mais
insustentável.
• Estão
cada vez mais comuns depoimentos e alertas sobre supostas "mães
narcisistas", retratadas como egoístas e insensíveis às necessidades dos
filhos. Faz sentido a existência de uma espécie de diagnóstico de saúde mental
com ênfase nas mães? Não é comum a menção a "pais narcisistas"...
Iaconelli - Não faz nenhum sentido a ideia de
"mãe narcisista" a não ser que a gente entenda que o próprio termo
"mãe narcisista" é um sintoma da nossa sociedade. Ou seja, é claro
que existem pais, mães, avós e pessoas que só pensam nelas mesmas, passam por cima
de todo mundo, não estão nem aí com os outros.
Mas a ideia de mãe narcisista que aparece agora tem
muita relação com essa penalização da mulher que quer uma vida para além dos
filhos. Em geral, a mãe narcisista não faz nada muito além do que um pai comum
faria, que é cuidar da vida dele e deixar os filhos sob a responsabilidade da
mãe. Essa categoria é muito ruim porque junta a palavra "mãe".
Pessoas narcisistas existem, mas "mãe
narcisista" é um termo que surgiu muito antes do pai narcisista que, de fato,
eu nunca ouvi falar. É um termo que vem dizer que uma mãe tem que ser acima de
tudo uma mãe doadora, uma pessoa magnânima, generosa. Mães são todas as pessoas
no mundo que tiveram filhos e aí você pode pôr qualquer sujeito.
A categoria mãe narcisista é preocupante porque é,
mais uma vez, um julgamento moral das mães, como se existisse a
"mãe", e não várias pessoas, com diferentes backgrounds [em inglês,
algo como "trajetórias de vida"].
• Devoção
e sacrifício seguem sendo palavras associadas à criação dos filhos,
especialmente para as mães. Este é um ideal que segue firme?
Iaconelli - Na nossa sociedade, há discursos
heterogêneos que convivem. Tem uma série de cobranças que ainda vigoram, embora
não seja mais motivo de se tornar pária social o fato de que uma mulher não
queira ter filhos, não queira casar ou queira morar sozinha. Isso já foi muito
mais terrível, mas essas expectativas convivem com os avanços.
A ideia de que a mãe se sacrifica, as mulheres se
identificam muito com essa ideia. Ao reclamar, elas chegam a exibir um pouco
como elas estão devotadas, como se esforçam pelos filhos — assim como os homens
podem dizer isso do trabalho, para se exibir e mostrar como eles trabalham para
levar dinheiro pra casa.
São posições que ainda vigoram e com as quais a
gente tem que tomar muito cuidado, porque são fruto de uma ideologia que começa
na modernidade, mas fica muito mais forte com a ideologia maternalista.
• De
que forma o maternalismo "captura" as mulheres?
Iaconelli - Mães continuam sendo responsabilizadas,
mas, além disso, elas continuam achando que a responsabilidade é delas. Elas
continuam tirando da conta os homens — ou porque eles não estavam à altura
mesmo, ou porque elas acham que cabe a elas, capturadas por essa mentalidade.
Um dos problemas que a gente enfrenta na clínica é
como as mulheres que reclamam desse moedor de carne que se tornou a
maternidade, do burnout materno, muitas vezes sofrem não só os milhões de
ataques externos, mas também se identificam com esse lugar materno. Nas poucas
vezes em que têm a oportunidade de delegar, de dividir tarefas, elas declinam.
Um exemplo. Alguns anos atrás, a guarda
compartilhada era um escândalo: "Como eu vou deixar meu filho ficar com o
pai metade do tempo, como vai ser isso?"
Poder aceitar a guarda compartilhada como uma
divisão igualitária foi fundamental. Não se conseguiu isso por graça e encanto
dos homens, mas porque eles não queriam dar pensão. A guarda compartilhada pode
ser aproveitada pra entender que você não é tudo na vida do seu filho.
O que a gente esquece de pensar é que mesmo quando
as mulheres conseguem dividir as tarefas igualmente, elas continuam com a carga
mental, porque elas estão no trabalho, mas ficam pensando se a criança foi com
o casaquinho para a casa do pai, se ele vai alimentá-la direito.
Ou quando se está casada, se o pai lembrou de botar
na lancheira tal coisa, se a criança chegou com o presentinho pro colega na
escola, como é que está a carteira de vacinação... As mulheres continuam tendo
toda a logística na cabeça delas, mesmo quando elas dividem as atividades
igualmente com os companheiros.
Tem toda uma mudança de mentalidade que pode
melhorar. Pode melhorar inclusive um efeito que a gente tem no nascimento dos
filhos, que é o fim dos casamentos — eles vinham bem, mas aí não aguentam o
ressentimento que se estabelece entre o casal por causa da desigualdade na
divisão de tarefas.
Não só as mulheres, mas também os homens, e, com
certeza, a sociedade como um todo, têm muito a ganhar saindo da mentalidade
maternalista.
• Que políticas
públicas podem ser pensadas para que as mães brasileiras tenham a possibilidade
de exercer outros tipos de maternidade que não apenas o maternalismo?
Iaconelli - Temos muitas leis que precisam ser
observadas, como creches em empresas, que não devem ser pensadas só para as
mães, mas também para os pais; a licença maternidade e a licença paternidade,
que são coisas que a gente não precisa inventar e que os países já fizeram.
A gente tem que fomentar, permitir que as pessoas
tenham mais recursos, não sejam demitidas ao voltarem para o trabalho. Elas
fazem um serviço à sociedade com os filhos que elas produzem. O Estado precisa
que nasçam pessoas, não vamos ser ingênuos achando que esta é uma questão de
foro privado.
O Estado tem que entrar, as empresas devem entrar
não ajudando a mulher a fazer aquilo que é responsabilidade dela, mas se
responsabilizando também pela nova geração.
Para as mulheres ou homens trans que, além de
gestarem e parir e quiserem aleitar — a Organização Mundial da Saúde coloca como
uma coisa fundamental —, dar condições para a amamentação em todos os lugares
públicos possíveis.
A gente tem usado muito uma expressão que foi
ficando batida, "a criança precisa de uma aldeia pra ser cuidada",
mas uma aldeia precisa de uma criança pra continuar.
A mudança de mentalidade é começar a olhar para o
pai como se fosse uma mãe e para a mãe como se ela fosse um pai. O que você
ofereceria para cada um ali? Você vai ver que as soluções ficam bem diferentes.
• Na
sua visão, a centralidade das mães no ideal de criação dos filhos que você
descreve no livro impacta a discussão sobre o aborto no Brasil?
Iaconelli - O aborto é um assunto muito sensível,
muitas vezes mascarado pelas questões religiosas - lembrando que vivemos num
país de Estado laico, ou seja, onde a religião não deveria pautar as escolhas
dos cidadãos que têm diferentes religiões ou valores diferentes. O aborto é o
direito à escolha. Mas colocar do lado da mulher o direito à escolha - e eu não
estou me esquecendo dos homens trans não, mas eu estou falando da categoria
mulher, que é colocada acima de tudo como aquela que deve ser feliz por
engravidar -, dar à mulher essa autonomia vai na contramão do maternalismo, que
é submeter a mulher à economia de cuidados, uma mulher reprodutiva.
É uma sociedade que não quer colocar na mão da
mulher o direito à escolha sobre as questões reprodutivas. Isso tem um enorme
custo econômico, social, para a saúde da mulher e para a saúde pública, mas é
uma discussão muito permeada por valores maternalistas misturados com
religiosidade e machismo, que fazem com que muitas mulheres morram hoje no
Brasil porque a gente não consegue encarar essa questão.
• Como
o discurso maternalista afeta a diversidade dos arranjos afetivos possíveis
para a criação dos filhos?
Iaconelli - Embora a gente veja na prática — hoje e
historicamente — que a família papai-mamãe-filhinhos é a mais comum, mas não a
única, desde sempre existiram avós que cuidaram dos netos em vez dos pais, mães
sozinhas, pais sozinhos, casais lésbicos, casais gays. O que acontece é que
hoje isso se tornou mais visível e legalizado.
A pergunta que fica é se isso prejudica
psiquicamente as crianças. Se a gente está falando de psicanálise, a gente está
falando de tentar entender do que uma criança precisa pra se constituir como
sujeito e para se desenvolver. A gente sabe, pela clínica, que o essencial pra
uma criança é a qualidade de cuidados, que pode ser oferecida por diferentes
arranjos: um homem e uma mulher, dois homens, duas mulheres, um trisal.
Crianças também são criadas em lares de
acolhimento, abrigos. A gente tem muitas possibilidades.
Desses grupos todos você vai ter fracassos e
sucessos, e a clínica psicanalítica é cheia de casais heterossexuais cisgêneros
que levam seus filhos pra análise. É claro que os outros arranjos também vão
ter seus problemas, também vão trazer seus filhos para a clínica.
Os problemas maiores que essas outras famílias
encontram são de estigma, de sofrerem violência. Batalhar contra o maternalismo
é também legitimar formas já existentes de cuidado com a infância e com as
crianças, mas que precisam ser positivadas.
• A
criação dos filhos parece ser hoje orientada pelo ideal de "vou dar tudo
para que não falte nada". É uma espécie de antídoto para o sofrimento?
Iaconelli - Mais recentemente, já dentro da cultura
capitalista, temos, a partir dos anos 70, uma mudança de mentalidade importante
que é neoliberalismo, que aumenta a ideia de que o consumo cura. "O novo
iPhone vai trazer felicidade pra mim e vai dar tudo certo".
A medicação resolve: "Não está feliz, toma um
remédio".
Toda essa ideia nos empurra para um ideal no qual
na vida a gente alcançaria um platô de felicidade e o sofrimento seria
contingencial. Isso vai totalmente na contramão da descoberta psicanalítica, o
sofrimento não é contingencial. Ele faz parte, é intrínseco à nossa existência,
nós somos seres que sabemos que vamos morrer, somos seres que estamos sempre
perdendo coisas. Perdemos a infância, os avós, a juventude e, no final,
perdemos a vida.
A relação que o ser humano tem com a sua existência
é diferente dos outros mamíferos, que simplesmente existem. Talvez eles sejam
felizes. Nós temos momentos de felicidade, de prazer, de satisfação, de
alegria, mas não tem platô.
Então, essa criação dos filhos na atualidade vai
caminhando para a ideia de que a gente deveria oferecer para eles a felicidade
e arranjar meios de não fazê-los sofrer.
Isso é um engodo terrível, que tem aumentado os
casos de depressão, suicídio, ansiedade, automutilação. São quadros que a gente
vê nas crianças hoje, de muita hesitação em relação à vida adulta. Porque se
você não assume o sofrimento, não tem como assumir a vida adulta — que é uma
vida de altos e baixos, como toda vida interessante deveria ser.
Como diria o Contardo Calligaris, quero ter uma
vida não feliz, mas interessante, cheia de acontecimentos, bons e ruins.
A falta subjetiva é o que move o desejo, então os
pais deveriam oferecer menos para as crianças e permitir que elas aceitem que o
sofrimento é parte essencial da existência.
Fonte: BBC News Brasil
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