Racismo religioso contra terreiros de matriz africana cresce no Rio
Estudo realizado na zona oeste do Rio de Janeiro e
na Baixada Fluminense mostra que 75% dos terreiros de religião de matriz
africana abordados já foram alvo de algum tipo de violência. Os resultados
também revelam que a segurança pública é tema de discussão recorrente pelos
frequentadores desses espaços.
A pesquisa foi idealizada pela Iniciativa Direito à
Memória e Justiça Racial (IDMJRacial), organização não governamental que atua
promovendo debates e atividades com foco na Baixada Fluminense. O
desenvolvimento do estudo contou com a parceria do Centro Cultural de Tradições
Afro-brasileiras Yle Asé Egi Omim, criado em 2008, no bairro de Santa Teresa,
no Rio de Janeiro. Os resultados obtidos estão reunidos em relatório lançado
neste sábado (30) com o título de Egbé, palavra do idioma Iorubá que significa
sociedade ou comunidade.
De acordo com o pesquisador que atuou na
coordenação do trabalho, Patrick Melo, as duas regiões foram escolhidas por
terem registrado, nos últimos anos, grande número de casos de ataques a
terreiros de religião de matriz africana. A Delegacia de Crimes Raciais e
Delitos de Intolerância (Decradi) tinha, até 2019, registros de 200 casas de
axé que foram alvo de agressões, considerando também a zona norte da capital
fluminense. Como nem todos os casos são notificados, o número certamente é
maior.
As ocorrências envolvem ameaças, injúria racial,
agressões físicas e até expulsões de seus próprios territórios determinadas por
milícias ou organizações do tráfico. Em alguns episódios, o alvo se repete.
O estudo cita o caso emblemático da casa Xwe Nokun
Ayono Avimaje, fundada há 10 anos em Nova Iguaçu, que já foi invadida e
depredada três vezes. Há também registros de violações à liberdade religiosa,
como por exemplo a imposição de horários restritos para que casas de axé possam
promover seus rituais sagrados.
Diante dessa realidade, o objetivo do estudo foi
entender como as comunidades enxergam a política de segurança pública. A
metodologia envolveu a realização de grupos, durante um mês, com 10 a 12
participantes cada um. Os encontros, que contavam com um ou dois moderadores,
ocorreram em quatro casas de axé localizadas no município de Nova Iguaçu e na zona
oeste de capital fluminense. Os presentes puderam interagir e propor
discussões, ao passo que os pesquisadores observavam as conversas, os
comportamentos, as tensões.
Além da organização dos grupos focais, um
formulário online foi preenchido por lideranças dos terreiros envolvidos.
Através dos dados colhidos, foi traçado um perfil dos terreiros, que possuem em
média 11 anos de fundação em seus territórios. Constatou-se também que as
lideranças possuem idades entre 35 e 55 anos e são compostas por homens e
mulheres em proporção igual.
Conforme os resultados divulgados, em todos os
grupos focais, evidenciou-se um total descrédito com as instituições policiais
para fins de proteção e segurança. O estudo indica que as denúncias de
violações resultam em desapontamento. As autoridades policiais tendem a
minimizar as agressões, classificando-as como briga de vizinhos e problemas de
ordem pessoal, afastando assim o enquadramento como crime de ódio.
Segundo Patrick Melo, os dados obtidos no estudo
indicam que as violações estão diretamente relacionadas com a omissão do Estado
na defesa dos direitos humanos e dos direitos dos povos de religião de matriz
africana. Observou-se que o tema da segurança pública aparece como uma
preocupação de destaque no cotidiano dessas populações. Sem a devida proteção
do poder público, elas buscam outros caminhos para enfrentar o cenário.
"Essas comunidades atuam e se organizam de forma muito autônoma em rede,
buscando o fortalecimento conjunto com outros terreiros", diz Patrick.
Ele avalia que os registros policiais refletem uma
incapacidade do Estado de reconhecer que os episódios envolvem manifestação de
ódio contra essas comunidades religiosas de matriz africana. Ao mesmo tempo,
considera que os territórios estão sendo dominados cada vez mais por grupos
criminosos que perseguem quem não professa a fé cristã.
"Estamos falando sempre a partir de um viés
moral cristão, a partir da qual há uma demonização das pessoas. A figura das
comunidades de terreiro ou das manifestações religiosas de matrizes africanas é
colocada como inimiga daquele território. São endemoniados que vão tirar a paz
daquele lugar. E aí, por isso, agridem aquelas pessoas", acrescenta.
A crescente associação entre o crime e a fé cristã
tem chamado atenção de diferentes especialistas em segurança pública. Em junho
desse ano, a pesquisadora Viviane Costa deu uma entrevista à Agência Brasil
sobre o lançamento do seu livro Traficantes Evangélicos, em que analisa a forma
do uso de símbolos e narrativas neopentecostais entre grupos criminosos. Em
2015, um outro livro intitulado Oração de Traficante: uma etnografia, assinado
pela socióloga Christina Vital Cunha, já chamava atenção para o fenômeno.
• Racismo
religioso
Patrick sustenta ser necessário denunciar com mais
ênfase a ocorrência do racismo religioso nos episódios de violação aos
terreiros de religião de matriz africana. Uma das reflexões levantadas no
relatório divulgado se relaciona com o conceito de intolerância religiosa.
Embora seja mais difundido, ele apresentaria algumas limitações para explicar a
dimensão do problema.
"Ele mascara e não dá conta do que acontece,
especificamente, com as religiões de matrizes africanas. O conceito de
intolerância religiosa traz também uma falsa simetria, e é equivalente à
contradição de que o Brasil, em tese, deveria ser um Estado laico, mas na
prática, as religiões relacionadas com a herança colonial seguem entranhadas
nas instâncias institucionais. Quantos casos de ataques a terreiros denunciados
nas delegacias de polícia foram investigados, apurados e julgados? Quantas
dessas situações tiveram justiça feita?", questionam os pesquisadores, que
advogam pelo uso do conceito de racismo religioso.
Pais
que lutam: eles combatem racismo e se multiplicam em amor
“Do Leme ao Pontal, não há nada igual…”. Foi à
beira do mar, no Leme, na zona sul do Rio de Janeiro, cantada pelos versos de
Tim Maia, que a história de uma família recomeça. Foi lá, há cerca de 10 anos,
que Juliano Almeida expressou para o marido, Roberto Jardim, sobre o maior sonho:
ser pai. Um grande amigo de longa data, Ricardo Souza, que é solteiro, também
se sensibilizou com as palavras de Juliano, e resolveu ajudar intensamente na
procura e nos trâmites da adoção de um menino. O sonho na beira da praia
responde hoje como uma realidade. Pedro tem oito anos, é negro e chama os três
homens de “pai”. Uma história de proteção multiplicada e, como todo amor, não
há igual…
Aliás, desde cedo, o menino ouviu em casa que
ninguém é igual. “Alguém comentou na escola que ele era adotado e ele veio
perguntar para a gente. Ele lida de uma forma muito tranquila porque a criança
entende como natural”, afirma Juliano, de 50 anos, que é produtor cultural.
Para os adultos, uma transformação em andamento.
“Ser pai é uma oportunidade que a pessoa tem para
se tornar um melhor ser humano”, entende o marido Roberto, que trabalha como
contador. “É uma mistura de sensações. Ao mesmo tempo que é um amor que não tem
como medir, é uma preocupação diária que dividimos”, avalia o amigo, Ricardo,
de 49, estilista, que está morando na cidade de Cabo Frio, a 200 km da capital
fluminense.
Juliano recorda que foi despertado também para ser
pai ao observar e sofrer diante das injustiças como a fome e abandono nas ruas.
Ele, o marido e o amigo multiplicam-se também entre eles para equilibrar amor e
limites no processo de educação. Os três buscam, na medida do possível, agendar
eventos e até viagens para os quatro estarem juntos. Um compromisso deles na
criação do menino é tratar a diversidade de forma natural e ser contra toda
forma de preconceito. “Ele ainda não passou por episódio de racismo. A gente
traz para ele a naturalidade da pluralidade de cor de pele, de sexo e de
religiões”.
• “Ele
me procurou para falar de racismo”
Nesse caminho, o sociólogo Helton Souto, presidente
do Instituto Dacor (Ong de combate ao racismo), entende que é possível tratar
de temas como o preconceito racial de uma forma natural com a criança, a fim de
que ela se sinta empoderada para perguntar o que quiser. Como pai de Augusto,
de 7 anos, um menino negro, como ele, Souto entende que falar de racismo é
desafiador a qualquer momento, mas necessário. Ele, a mãe, que é branca, e o
filho vivem em São Paulo (SP).
“A valorização da identidade e da autoestima é
bastante Importante. Às vezes, uma criança negra vai ter que lidar com
manifestação de racismo de uma forma muito crua”. O pesquisador lida com esse
tema em casa. “É preciso fortalecer essa identidade e a oportunidade de falar
sobre isso. Meu filho viveu uma situação racista na escola. Falaram do cabelo
dele. Ele chegou em casa sem entender. Ele puxou esse assunto e conversei com
ele”. Desde então, o garoto encontra no pai um ouvido atento para eventuais
surpresas e dúvidas sobre tudo o que é incompreensível.
A experiência fez com que os pais do menino
procurassem a escola para conversar, o que foi uma oportunidade de uma
aproximação contra o racismo. A forma natural de falar sobre preconceito acaba
sendo tratada até quando vão jogar videogame e não encontrarem um personagem de
pele e cabelo semelhante aos do pai e filho. “Eu não vou dar aula sobre
identidade racial para meu filho. A vivência é o melhor caminho”. O pai fica
orgulhoso do filho, que mesmo tão cedo questiona por que ainda tem tanta gente
em situação de rua.
• Conversa
enquanto brinca
Pai de uma menina de cinco anos de idade, Liah, o
professor de educação física Anderson Rosa, de 36, morador de Brasília, tem a
parceria da esposa, Lélia Charliane, que é professora de história. “A gente divide todas as tarefas. Não existe
essa coisa de tarefa de homem e tarefa de mulher. Com a minha filha, a gente
brinca de tudo. A gente sempre está conversando”.
O pai pergunta como é que foi o dia dela. E cada
dia tem uma novidade. Um dos temas é a conversa sobre a diversidade da cor de
pele. “A gente procura falar para ela o tempo todo essa questão de ela ser
negra. Criamos ela para ser empoderada mesmo”.
Foi a esposa, diretamente, e a filha, pela
presença, que o professor entendeu que é necessário se defender dos
preconceitos. “A gente tem conversado com ela desde pequena. Conseguimos
mostrar para ela de uma forma natural”.
• Inspirações
Por falar em experiência forte, a história de
paternidade do advogado Hugo Teles, de 44 anos, é inspiradora. Pai de João, de
13 anos, e de Camila, de 12, ele se preparou para a paternidade, a grande
experiência de sua vida. Ele e a esposa, Karina, adotaram os amores da vida
quando eram bebês. Tudo foi tão transformador para ele que se tornou voluntário
em um grupo de apoio à adoção.
Quando criança, ele teve um câncer linfático e,
depois, descobriu que era estéril. “Optamos pelo caminho da adoção. Nessa
caminhada, eu construí a minha a minha ideia do que seria um pai antes dos
meninos chegarem”. Ele e a esposa começaram a frequentar grupos de apoio e
discussão de paternidade e maternidade por adoção. “Foi tão inspirador que
passamos a ajudar as pessoas que estavam na nossa situação anterior”.
Nesses grupos, puderam compreender mais sobre
preconceitos, estigmas e desafios. Os pais brancos e os filhos negros conversam
sobre racismo mesmo entendendo que, no caso da família deles, não houve até
hoje algo explícito. “Depois que eu me tornei pai por adoção, comecei a
perceber de uma forma diferente o racismo estrutural que existe no Brasil”.
Para conversar sobre adoção e diversidade, o pai
encontrou no cinema, e em histórias de heróis como Super-Homem e Homem Aranha,
entre outros, um caminho. “Muitos super-heróis são filhos por adoção, por
exemplo”. Além do cinema, o pai é parceiro do futebol de João e aprendeu pratos
diferentes porque a filha gosta de cozinhar. O paizão não para nunca. Pula na
piscina, anda de bicicleta, leva para escola. E volta para o grupo de adoção
para ajudar outros pais a desfrutar da alegria, da aventura mais desafiadora e
do amor incondicional que certa vez imaginou não ser possível.
Anielle
Franco anuncia comitê de enfrentamento ao racismo ambiental
O que muda a vida das pessoas são políticas
públicas bem construídas, compromissadas e com financiamento adequado, afirmou
a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, ao participar neste domingo (6)
da plenária “Amazônias Negras: Racismo Ambiental, Povos e Comunidades
Tradicionais”, em Belém (PA), dentro da programação do Diálogos
Amazônicos.
“As políticas que estamos construindo precisam ser
efetivas para fazer a diferença na vida das pessoas”, disse.
Dentro da construção de políticas voltadas ao povo
amazônico, Anielle Franco citou pacto firmado com a ministra do Meio Ambiente,
Marina Silva, para a criação do Comitê de Monitoramento da Amazônia Negra e
Enfrentamento ao Racismo Ambiental. Com o governo do Pará, foi assinado acordo
de cooperação técnica para medidas emergenciais de mitigações graves, questões
socioambientais enfrentadas pela população do arquipélago de Marajó, além de
parceria com a Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos do Pará para
criação de políticas públicas na temática.
Dados do Censo 2022, divulgados recentemente pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que 32,1% dos
residentes da Amazônia Legal são quilombolas, descendentes de africanos.
“São vidas
impactadas pelas mudanças climáticas, que provocam desastres de alto risco para
quem habita moradias precárias em áreas de alto risco, sem acesso ao saneamento
básico, convivendo com a poluição de rios e mares, com a pobreza e a incerteza
sobre a vida do amanhã”, ressaltou, lembrando o papel dos povos da região como
agentes defensores da sociobiodiversidade.
A ministra defendeu ainda a demarcação de terras
indígenas e a titulação de territórios quilombolas. “É preservar a Amazônia.
Isso é salvar o mundo. A gente não tem mais tempo a perder. A gente quer
celebrar as mulheres e jovens negros em vida, quer salvar os nossos
territórios, quer defender o nosso sagrado em vida”.
Anielle Franco destacou que o evento Diálogos
Amazônicos é momento de construção de políticas públicas para a população mais
vulnerabilizada e apagada dos processos de decisão. “É ainda um momento de
denúncia e de alerta para que a Amazônia não seja vista somente como pulmão do
mundo, mas como a morada de pessoas indígenas, negras, quilombolas, dos povos
de terreiro e comunidades tradicionais que vivenciam desigualdades e violências
cotidianas”, disse, ao defender que o combate ao racismo ambiental tenha
prioridade nos debates da Cúpula da Amazônia, que irá reunir chefes de Estado
dos países amazônicos nos próximos dias 8 e 9.
• Jovens
Aos jovens estudantes presentes na plenária, a
ministra da Igualdade Racial salientou que sempre ouviu de sua mãe que
conhecimento ninguém tira de uma pessoa. “Eu espero que vocês saibam o tamanho
da responsabilidade que nós temos na mão e que nunca devem desistir de lutar
pelo que acreditam”.
Anielle comentou que a presença dos jovens no
evento já representava um gesto político, porque “as estatísticas comprovam que
os nossos jovens e as nossas jovens negros tombam a cada minuto”. Para ela, o
fato de esses jovens estarem vivos já era um gesto político. “Não deixem que
ninguém diminua ou dilua o sonho de vocês. Jamais. Que vocês estudem cada vez mais.
Porque o conhecimento abre portas e, por mais que nos neguem esses espaços, que
vocês entendam cada vez mais que é necessário adentrar em espaços como esses”.
Para que isso possa acontecer, entretanto, a
ministra insistiu que o conhecimento será essencial. “Se cuidem. Cuidem uns dos
outros, sempre, porque a nossa luta só faz sentido porque ela é coletiva”,
concluiu.
Fonte: Agencia Brasil
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