Guerra na Palestina – sem perspectiva de solução?
Muita gente qualificada
ou não já gastou um Amazonas de tinta (metaforicamente, é claro, ninguém
escreve mais com tinta) a partir dos mais diversos ângulos (militar, político,
diplomático, geopolítico, sociológico, histórico, …). Abordagens pró e contra
Israel, com ou sem inclusão dos Estados Unidos e pró e contra o Hamas tenderam
a dominar as mensagens. Uma parcela minoritária da esquerda condenou o Hamas e
defendeu a causa palestina e foi execrada nas redes.
Será que existe algo de
novo ou de diferente a ser apresentado neste tema? Provavelmente não, mas vou
assumir o risco de chover no molhado, sem pretensão de ter uma abordagem
diferente ou de trazer novas informações. É no arranjo dos argumentos que
espero fazer uma diferença e, sobretudo, na avaliação dos possíveis
desdobramentos.
Antes de entrar na
matéria, gostaria de analisar alguns argumentos que encontrei, mais ou menos
explícitos entre os defensores das ações do Hamas. De forma sintética, eles
podem ser reduzidos a algumas frases: (i) os fins justificam os meios; (ii) o
inimigo do meu inimigo é meu amigo; (iii) a violência dos oprimidos se
justifica pela violência dos opressores; (iv) guerra é guerra.
Estes argumentos
concernem a definição de terrorismo neste debate. Na esquerda ninguém discute a
existência de um terrorismo de Estado aplicado pelo governo israelense; os
fatos falam por si. Mas uma parte da esquerda recusa-se a condenar o Hamas e a
caracterizar sua ação como terrorista. Os mais explícitos defendem o direito do
Hamas de massacrar civis israelenses como parte de sua estratégia
político-militar, aceitando, no limite, que esta ação terrorista seja
admissível no contexto desta guerra desigual. Outros discutem se o termo
terrorismo é aplicável neste caso. A meu ver, trata-se da busca da divisão em
quatro de um fio de cabelo, ou seja, jogo de palavras para disfarçar uma
posição altamente impopular de apoio aos atos de violência contra inocentes.
Acho que, não fosse esta
camisa de força ideológica, os fatos também falariam por si na caracterização
da violência do Hamas. Só o negacionismo mais cru e cruel pode desconhecer que
o assassinato a frio de mais de mil civis israelenses, quer na rave quer nos
Kibutz ou nas estradas e vilas, foi um típico ato terrorista, em qualquer
dicionário de política que se acesse.
Argumentos querendo
minimizar os atos como excessos de (alguns) palestinos revoltados por décadas
de violência e opressão não fazem sentido quando se olha a amplitude do
massacre. Bastante claro, as mortes foram planejadas pela direção do Hamas e
executadas pelos seus quadros militares. Não é uma “reação visceral”, explicável
com sociologia e psicologia, mas um ato preconcebido e com objetivos políticos
e sobretudo militares.
Qual o objetivo político?
Indicar para a população israelense que ela está vulnerável e, com isso,
enfraquecer o governo de ultradireita de Benjamin Netanyahu. Do ponto de vista
da população de Israel, segundo pesquisas de opinião que ninguém questiona, a
tática deu certo e o primeiro-ministro tem quase 80% de desaprovação. Mas e
daí? Em que este impacto favorece os objetivos estratégicos do Hamas? Só para
lembrar, o Hamas defende a liquidação do Estado de Israel e é de todo
impossível que os cidadãos israelitas, de todas as posições políticas e
ideológicas, venham a aceitar esta posição, por mais que fiquem preocupados e
mesmo deprimidos com o estado de guerra interminável com as organizações
palestinas.
E o objetivo militar? É
claríssimo o fato de que a força armada do Hamas, que pode dispor de alguns
milhares de combatentes, não tem poder para derrotar o exército israelense, não
só muitíssimo mais bem armado como muitíssimo mais numeroso. O Hamas provocou o
exército israelense com os massacres, e recuou para o labirinto de ruelas e
túneis da faixa de Gaza, onde se aglomeram mais de dois milhões de pessoas.
O governo de Israel
adotou, até agora, uma posição de retaliação punitiva através de bombardeios
pretensamente cirúrgicos para destruir a infraestrutura civil e militar do
Hamas. É uma ação de baixa eficiência militar e alto custo político, já que a
população civil é quem paga o preço nos bombardeios. Abrigados em túneis, os
militares e militantes do Hamas estão a mais de 50 metros de profundidade, e
podem esperar razoavelmente intocados que Israel reduza a parte norte de Gaza a
um monte de escombros.
O governo de Israel acusa
o Hamas de usar a população como “escudo humano” para inibir os bombardeios e
se exime da responsabilidade das baixas civis provocadas pelas suas bombas. É
isso mesmo que o Hamas está fazendo, mas o objetivo não é impedir os
bombardeios porque nos muitos anos de ação da artilharia e da força aérea
israelense isto nunca aconteceu. O objetivo é desgastar politicamente as Forças
Armadas israelenses e este objetivo está sendo amplamente alcançado no plano
internacional.
O governo israelense sabe
que os bombardeios têm efeito politicamente negativo e têm efeito pífio
militarmente, mas não tem alternativa a não ser a invasão da faixa de Gaza.
Esta decisão parece que já foi tomada desde os primeiros dias da crise, mas vem
sendo adiada por várias razões. A primeira foi a ordem de evacuação da
população da região norte, com o objetivo de isolar os militantes e militares
do Hamas e permitir um bombardeio ainda mais pesado.
Há controvérsias sobre as
novas bombas americanas adquiridas por Israel, e que seriam capazes de atingir
os mais profundos túneis. De toda forma, até para chegar a este ponto da
destruição da infraestrutura de proteção do Hamas, o impacto sobre o conjunto
das edificações neste território vai deixar o monte de escombros de Stalingrado
no chinelo. E calcula-se que ainda sobram quase 500 mil civis palestinos,
homens, mulheres, crianças, velhos, doentes na futura “no man’s land”. O
bombardeio pré-invasão terrestre vai ser um banho de sangue e o isolamento
político e diplomático de Israel no mundo vai se aprofundar.
Como o exemplo citado de
Stalingrado já demonstrou, o combate entre escombros de uma cidade arrasada
diminui as vantagens do combatente mais equipado, impedindo a ação de
blindados, por exemplo. Fica favorecido o combatente com mais mobilidade, como
deverá ser o caso dos militantes do Hamas usando os túneis e, sobretudo, os
mais aguerridos.
Apesar da fama de super
força armada, o exército de Israel não tem uma infantaria com experiência neste
combate de rua, de túneis e de escombros e o grau de entusiasmo dos seus jovens
é certamente menos intenso do que aquilo que a imprensa ocidental chama de
“fanatismo” dos militantes do Hamas. Vai ser outro banho de sangue, incluindo
um contingente de soldados israelenses em proporções nunca vistas nas suas
guerras anteriores.
O Hamas pode estar
apostando, também, na expansão dos combates, atraindo ataques do Hezbolah a
partir do sul do Líbano e do oeste da Síria. Seria um enorme aumento na pressão
militar sobre as forças armadas de Israel que teriam que lutar em três frentes.
Muita coisa está ainda em
especulação, inclusive a invasão de Gaza, depois dos conselhos dos militares
americanos em contrário, acompanhados pela oposição pública de Biden, apesar de
todo o seu “apoio total” a Israel.
“Last but not least”, é
preciso avaliar os impactos geopolíticos e diplomáticos desta crise. Há quem
atribua a ação do Hamas a um “estímulo” do governo iraniano, cujo objetivo
seria evitar os acordos sendo negociados com os auspícios do governo americano,
entre Israel e a Arábia Saudita, que isolariam a posição dos aiatolás no
Levante. De fato, governos com acordos com Israel já consolidados, como os do
Egito e Jordânia, somaram-se aos do Líbano, Síria, Turquia, OUA (Organização da
Unidade Africana), Arábia Saudita, Emirados Árabes entre outros, para condenar
Israel.
O isolamento de Israel
está arrastando a diplomacia americana para o mesmo buraco, como ficou patente
no veto (um contra 12 e duas abstenções) no Conselho de Segurança da ONU. A
proposta brasileira da criação de um corredor humanitário foi extremamente
hábil e representou uma espetacular vitória política do Brasil na presidência
do Conselho. Vitória tão mais importante por colocar a nu a caduca estrutura
decisória do Conselho, com os poderes de veto atribuídos aos países vitoriosos
na Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China).
Esta posição anacrônica é
dura de entender para quem não estuda a história da ONU. Afinal de contas,
quando esta decisão foi tomada em 1945, nem a França nem a China podiam ser
consideradas forças vitoriosas na Segunda Guerra Mundial. Mas o temor dos EUA
de uma expansão comunista nos dois países levou a valorizar sua participação
como parte de uma política de neutralização, que deu certo na Europa, mas não
na Ásia. O presidente Lula tem repetido a crítica a este sistema ultrapassado
pela evolução da geopolítica, pleiteando uma redistribuição de
responsabilidades com maior destaque para forças como Índia, Japão, Indonésia,
África do Sul, Egito, Alemanha, Canadá, México e Brasil. O absurdo do poder de
veto ficou mais do que evidenciado neste episódio.
A discussão mais
importante nesta crise deve ser a da busca de uma solução para o impasse que já
está fazendo quase 75 anos. As resoluções da ONU definindo a existência de dois
Estados, representando a nação israelense e a nação palestina, são tão velhas
que é preciso que sejam revistas em função das transformações ocorridas desde
então. A alternativa de um Estado laico, unificando os territórios hoje em
disputa, com direitos iguais para os dois povos vem sendo levantada por alguns
analistas, mas será possível neste quadro com três gerações de conflitos?
O problema de fundo está
na origem da criação do Estado de Israel. O movimento sionista, iniciado sem
muita expressão no final do século XIX, tem como princípio o “direito” dos
judeus a uma nação e um Estado próprios, localizado na região imprecisamente
definida como Palestina. Com base nesta ideia, promoveu-se uma migração de
judeus de todo o mundo, que foram se estabelecendo em terras, inicialmente
parte do império Otomano e, após a primeira grande guerra, sob o controle de um
“protetorado” britânico.
A mobilização de recursos
dos judeus da diáspora, sobretudo dos Estados Unidos e da Inglaterra, comprando
terras dos nativos da Palestina permitiu a formação de assentamentos judaicos,
os kibutz. Com o fim da segunda grande guerra e o impacto político do
Holocausto promovido pelo nazismo, este movimento ganhou muita força e os
assentamentos foram se multiplicando com a migração dos sobreviventes, sobretudo
dos países do leste europeu e da antiga União Soviética. A pressão pelo
reconhecimento do direito à nação judaica foi crescendo, inclusive no
território sob controle britânico, com o uso do terrorismo por organizações
judaicas como a Hagana e o Likud.
A decisão de criar o
Estado judaico, intitulado Israel, foi tomada sem se considerar que a população
judaica, seja de nativos da região ou de migrantes de outras partes, era muito
inferior à população muçulmana. A propaganda pró Israel falsificou esta
realidade com uma narrativa absurda onde foram apresentadas as manchas de
terras compradas pelos judeus em contraste com espaços supostamente vazios.
Nestes espaços, ditos vazios, mais de dois milhões de não judeus viviam há
séculos, mas foram deslocados manu militari, em ações com características
terroristas, nos anos imediatamente posteriores à fundação de Israel.
Empurrada para Gaza e
para o Líbano, esta população foi viver em acampamentos de refugiados que estão
na origem do movimento permanente de retomada das suas raízes territoriais.
Este movimento de ocupação foi sendo estimulado pelo novo Estado, com maior ou
menor ação agressiva, inclusive guerras que levaram à expansão territorial de
Israel, tomando a Cisjordânia da Jordânia, as colinas de Golã da Síria e
pedaços (menores) do Egito e do Líbano. Nestes territórios as colônias judaicas
foram se espalhando e expulsando mais e mais palestinos.
A questão não é apenas a
expansão das colônias e a expulsão dos não judeus. Apesar de momentos em que
governos israelenses buscaram acordos para garantir espaços para os palestinos
(Camp David, Oslo), a ideologia dominante entre os israelenses foi se
perfilhando sempre mais próxima ao princípio do direito inalienável dos judeus
a estas terras. Este princípio tem como corolário a limpeza étnica que foi
sendo adotada por governos sempre mais à direita em Israel.
Os não judeus
remanescentes dentro do território sempre foram cidadãos de segunda classe, sem
direitos e hostilizados pelos segmentos mais extremados do sionismo. Com este
quadro de distribuição populacional, não existe mais, no mundo de hoje, espaço
para um Estado Palestino, cujo embrião é a paródia de uma administração
dividida entre a Cisjordânia e a faixa de Gaza, com muitos milhares de
potenciais cidadãos ainda aglomerados em acampamentos nas fronteiras.
A estratégia de Israel é
o controle total do espaço contínuo entre as fronteiras do Egito, da Síria, da
Jordânia e do Líbano e o mar mediterrâneo. Para alcançar este fim vai ser
preciso expulsar três a quatro milhões de pessoas. Para completar este quadro,
não podemos esquecer que Israel tende cada vez mais a se tornar um Estado
teocrático, regido pelas normas da religião. Como poderiam conviver com uma
população não judia e em sua maioria amplíssima composta por muçulmanos?
Do outro lado, a
população não judaica, com uma identidade política definida pela busca de um
Estado Palestino, não tem como conviver com um Estado Judaico. A criação de um
Estado palestino exigiria a retirada maciça dos colonos da Cisjordânia e de
outras partes do território.
A solução alternativa à
criação de um Estado Palestino é a criação de um Estado laico com direitos
iguais para os defensores das diferentes confissões, não esquecendo que existem
ainda minorias cristãs variadas. Mas com uns e outros cada vez mais dominados
pelos diferentes fundamentalismos (Sharia para uns e Torá para outros) admitir
um Estado laico e coexistir com diferentes crenças é cada vez mais uma
possibilidade remota.
Tudo isso aponta para o
prolongamento do impasse ad aeternum. Israel não tem condições políticas e
mesmo militares, apesar do seu poderio, de realizar a limpeza étnica que lhe
permitiria ter uma fronteira separando os judeus dos outros. Por outro lado,
embora o Hamas não tenha a adesão clara da maioria dos palestinos, até porque
não se submete a eleições desde que ganhou-as na faixa de Gaza em 2006, ele tem
o suficiente de adesão, sobretudo da juventude.
Esta não tem qualquer
perspectiva de uma vida normal à sua frente e vive submetida a uma opressão e
miséria que tem um alvo claro, o governo de Israel, e um instrumento de combate
também claro, o Hamas. Israel pode destruir a infraestrutura do Hamas e
liquidar sua liderança, mas enquanto o sentimento de revolta estiver
persistindo e enquanto houver Estados islâmicos dispostos a financiar, tudo
isto pode ser reconstruído.
Resta a questão inicial
deste debate: qual o limite ético de uma guerra com estas características?
Massacres de civis, seja pelo Hamas ou Estado israelense, não deveriam ser
admitidos, seja pelos judeus, seja pelos palestinos, mas o que transparece é a
predominância das auto-justificativas. E uns como outros transmitem suas
narrativas para a audiência mundial, levando à identificação do bem contra o
mal por um e por outro lado.
O apoio ao Hamas por ser
uma força antissionista e antiamericana, esquecendo sua brutalidade contra
civis desarmados e sua ideologia fundamentalista é, a meu ver, uma adesão
perigosa à uma ética ou falta dela, justificando qualquer violência contra o
“inimigo”, seja ele quem for, militar ou civil. Por outro lado, o apoio ao
governo israelense no seu terrorismo de Estado atingindo milhões de pessoas com
uma crueldade consciente, através de bombardeios, bloqueios de comida, água,
energia e medicamentos, é o outro lado da moeda, agravado pelo fato de ser
muito mais poderoso.
Neste complicado
imbróglio, a atitude do governo Lula de defender (sintetizando a proposta) um
corredor humanitário, é absolutamente correta e pode abrir um canal a ser
explorado e ampliado, isolando os extremismos. Parabéns à nossa diplomacia.
Fonte: Por Jean Marc Von
Der Weid, em A Terra é Redonda
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