Da bala ao gabinete: como se grila um pedaço de
terra no Brasil
A romaria de carros está
pronta. É perto de meio-dia. A caminhonete vai à frente, aboletada por homens
vestidos de calça jeans e camisa xadrez, chapéu de vaqueiro, alguns com lenço
no pescoço. A fila de sete ou oito veículos, pisca-alerta ligado, avança
lentamente pela BR 349, no município de Correntina, a alguns quilômetros da
divisa de Bahia com Goiás. A excursão não é de rango, nem de roça, nem de
forró, nem de goró – os assuntos preferidos por essas bandas. É de pistolagem.
Depois de algum tempo, os carros estacionam à beira da rodovia, e os motoristas
são orientados a já fazer a volta no sentido contrário, para o caso de
precisarem sair em disparada. Moradores das comunidades de Fundo de Fecho
e Pasto fazem excursão até área grilada, cercada e sob vigilância de
pistoleiros. Foto: João Peres Um a um, descemos dos carros e avançamos (trinta
homens e duas mulheres) por debaixo da cerca de arame farpado. Ao longe, a uns
50 metros, vemos os dois pistoleiros se mexendo. É o curto espaço de tempo no
qual descobriremos como terminará a excursão. Ninguém arrisca resposta se um
dos dois puxará revólver ou não. O coração se divide entre angústia e
adrenalina. Agora mais perto, um dos jagunços segue sentado, encostado no
contêiner que serve de guarita, enquanto o outro se aproxima da cerca. Nenhum
dos dois é cabra marcado pra matar ou morrer: são sujeitos que, na rua, seriam
tomados por pacatos, não botariam medo em ninguém. Mas, aqui, nessa função
bastante explícita, ganham outra impressão. Os dois vestem o uniforme de uma
empresa de segurança privada, a Estrela Guia, como as milhares que existem
Brasil afora. Pistoleiros de área grilada trabalham para ex-policial
conhecido por fazer serviços de ‘segurança’ na região. Foto: Tatiana Merlino
Pistoleiros de área grilada trabalham para ex-policial conhecido por fazer
serviços de ‘segurança’ na região. Foto: Tatiana Merlino Pistoleiros de área
grilada trabalham para ex-policial conhecido por fazer serviços de ‘segurança’
na região. Foto: Tatiana Merlino Pistoleiros de área grilada trabalham para
ex-policial conhecido por fazer serviços de ‘segurança’ na região. Foto:
Tatiana Merlino Pistoleiros de área grilada trabalham para ex-policial
conhecido por fazer serviços de ‘segurança’ na região. Foto: Tatiana Merlino O
pistoleiro não quer briga, nem pretende dar informações, nem sabe a mando de
quem o patrão trabalha, mas ao menos diz o nome do patrão. Um nome conhecido
nas mais estreitas veredas, capaz de fazer arrepiar o mais bravo dos
geraizeiros. Carlos Erlani Gonçalves Santos se tornou famoso ao longo das
últimas décadas na prestação de serviços de “segurança” em uma série de casos
em que terras tradicionais são almejadas por fazendeiros. Ora responde
como policial militar, “Cabo Erlani” – na verdade é primeiro sargento da
reserva, e não mais cabo –, ora é conhecido como pastor, função que também
exerce, junto com a de construtor. Bala, Bíblia e betoneira, tudo junto a
serviço do dito progresso. Vamos até a nova casa do policial-pastor
Erlani, próxima à Câmara Municipal de Correntina. Um sobrado aparentemente
grande, murado, com aviso de segurança privada e alarme, e que para nós não
abre as portas. Erlani tampouco retorna aos pedidos de entrevista. Gostaríamos
de saber quem contrata seus serviços. Cabo Erlani se tornou famoso ao
longo das últimas décadas na prestação de serviços de “segurança” em casos de
grilagem. Foto: Gilberto Alves, especial para o Metrópoles E essa talvez seja a
dor mais doída de quem tem seu pedaço de chão ameaçado pela grilagem: não se
sabe sequer quem é que está querendo as terras. No geral, são peixes pequenos
ou fazendeiros que não tenham tanto assim a perder. Mas, para entender
como é estreita a fronteira entre o agro chamado civilizado e o agro selvagem,
se é que ela existe, basta percorrer alguns quilômetros pela BR 135. SLC
Agrícola, Grupo Horita, Bunge e outras empresas de renome no setor são donas ou
arrendam áreas de ocupação mais antiga – muitas delas também sob suspeita ou
comprovação de grilagem. Os casos de invasão de terras fazem parte de um
processo de investida do agronegócio e do mercado financeiro sobre o Matopiba,
região que inclui os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e que é mais
recente (e última) fronteira agrícola do país. Das Gerais às cercas Pouco
antes da excursão à área grilada, sob um sol forte, dezenas de homens e algumas
mulheres reúnem-se em uma área que dá acesso às comunidades onde vivem. O
motivo do encontro é um protesto contra o processo de grilagem em curso na
região. Eles chegam em dois carros de boi, uns 30 cavalos, motos e carros,
usando botas, bonés e chapéus. São os moradores de comunidades de Fundo e Fecho
de Pasto, que há gerações e gerações vivem nessas terras, onde criam gado solto
e se alimentam dos frutos e folhas do Cerrado. “Os Gerais é uma reserva
que temos. O uso dele é uma tradição de anos de convivência, de harmonia
sustentável. Ele protege as nascentes, as águas, a fauna e a flora. Eu cresci
vendo meu pai e meus tios lidando com os Gerais”, relata um dos moradores da
comunidade presente na manifestação – e que pediu para não ser
identificado. “A nossa convivência é de muitas gerações. Eu usava esse
fecho há 30, 35 anos. Em 2020, começaram as invasões. Um dia, cheguei para levar
o gado e eles tinham cercado e colocado segurança 24 horas por dia. Depois
disso, nunca mais pude entrar lá”, conta, sobre a área mencionada no começo do
texto, a comunidade de Bois Arriba e Abaixo, que foi invadida por grileiros e
está sob segurança de pistoleiros. Em roda, os moradores das comunidades falam
sobre a importância do Cerrado e dos Gerais, contam como têm sido as investidas
dos grileiros e o avanço do agronegócio e dos agrotóxicos na região. Um deles é
Ignaldo de Souza, 51 anos, “nascido e criado aqui, defensor e lutador pelos
direitos do que nossos avós nos deixaram”. Mas hoje, conta, essa herança corre
risco. “As ameaças vêm há um bom tempo, mas agora a pressão [da grilagem]
aumentou. Esse é um encontro de resistência: precisamos de união. Estamos
lutando e defendendo nossas terras”. Em maio deste ano, um morador do Fecho de
Pasto de Capão Grosso estava tocando gado quando foi surpreendido por alguns
pistoleiros. “Fiquei na mira da arma deles, que até tiraram foto minha. Estou
com muito medo”, afirma o homem, que pediu para não ser identificado.
Cercar as áreas é uma das formas de exercer terror, mas não a única. Para
tentar invisibilizar quem vive ali, os pistoleiros arrancam as placas que
identificam as várias associações de moradores dos fechos. Os moradores também
relatam que há aviões circulando e drones que são soltos nas regiões, sem
autorização. “Porque no passado os Gerais eram vastos. Era a terra do
Estado. Ninguém proibia”, recorda seu Agenor Silva, listando os nomes dos
fechos que foram se perdendo. “A gente botava gado, podia tirar frutos, tirar
mel de abelha, madeira, não tinha problema. Hoje a gente não pode ir lá nem
visitar mais, que foi chegando esse povo de fora e foi tomando conta.” Meio que
sem querer, seu Agenor explica em conversa miúda aquilo que aparece nos números
grandes das estatísticas: o avanço do agro é também o avanço da desigualdade.
“Então, quando podia usar os Gerais, botava muito gado. Porque cada criador já
tinha 200, 400 gado.” O que ele conta é algo que escutamos de muitos
geraizeiros que entrevistamos ao longo de uma semana em que estivemos no Oeste
da Bahia. Comunidades de Fundo de Fecho e Pasto: São formadas por
camponeses que ocupam o Oeste da Bahia de forma comunitária e tradicional,
praticam a agricultura familiar de subsistência. Os moradores dos fechos estão
na região há cerca de 300 anos e se utilizam do Cerrado para coleta de frutos e
remédios, e usam as áreas comuns para pastoreio de gado. “Gerais”: É uma forma
de chamar o Cerrado do norte de Minas Gerais e Oeste da Bahia. Região onde se
vive de forma tradicional, em propriedades comuns, sem cercas. São as áreas
para onde os ‘geraizeiros’ levam seus rebanhos para pastar em áreas intocadas,
de forma livre e coletiva. Se a perda dos Gerais foi há 30 anos, há dez ou há
um, não importa: o que vem em seguida é empobrecimento porque, para essas
pessoas, o gado é uma poupança. Sem Gerais, não dá para criar gado, porque a
terra é pouca e o nutriente é escasso, então, se não tem gado, também não tem
dinheiro guardado. A Constituição da Bahia reconhece as comunidades de
Fundo e Fecho de Pasto e a possibilidade de se conceder o direito de uso desses
espaços coletivos. Mas, na prática, essas comunidades têm vivenciado uma enorme
dificuldade para o reconhecimento pelo governo estadual – comandado desde 2007
pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Em setembro de 2023, o Supremo
Tribunal Federal (STF) barrou a tentativa de criar uma espécie de marco
temporal para as comunidades. Na visão dos ministros, a lei baiana que fixava
um prazo para o reconhecimento é inconstitucional – nos mesmos moldes do que se
definiu em relação aos povos indígenas. O passo a passo A invasão da
comunidade de Boi Arriba seguiu uma espécie de modus operandi da grilagem:
pessoas desconhecidas começam a rondar a região, drones e aviões sobrevoam as
terras. Então as áreas são visitadas por pessoas que falam que são as
verdadeiras donas do local, há o uso de jagunços e seguranças de empresa
privada para expulsar as pessoas dos fechos (em vários casos, empresas do
Sargento Erlani). E, por fim, a área é invadida, cercada e protegida por
pistoleiros, como os que encontramos no trabalho de campo que fizemos em junho
deste ano. 1. Pessoas desconhecidas começam a rondar a região 2. Drones e
aviões sobrevoam as terras 3. Áreas são visitadas por pessoas que falam que são
as verdadeiras donas do local 4. Jagunços e seguranças de empresa privada
expulsam as pessoas dos fechos 5. Área é invadida, cercada e protegida por
pistoleiros Em fevereiro, a Associação Comunitária Agropastoril e de Proteção Ambiental
de Boi Arriba Abaixo entrou com uma ação de reintegração de posse contra Erlani
Gonçalves Santos, Silvério Teles Baeta Zebral e a empresa Reviver
Participações, por grilagem da área. De acordo com a ação, assinada pela
advogada Liliane Pereira Campos, em maio de 2022, Sargento Erlani, “conhecido
por ter empresa de segurança clandestina e trabalhar para fazendas grileiras,
chegou na área expulsando os posseiros [fecheiros], alegando ser preposto da
Fazenda Reviver Participações”. Na ação, a advogada relata que a entrada
da empresa na área ocorreu por meio de violência da pistolagem local. “Homens
armados causaram e causam terror, o que é possível ser observado no boletim de
ocorrência lavrado na Delegacia de Polícia de Correntina.[…] Os réus, ora grileiros,
abriram variantes, derrubaram as cercas antigas dos posseiros, cercaram a área
com novas cercas, trouxeram postes de energias, colocaram nova cancela com
cadeado”, relata. Ainda de acordo com o documento, Erlani teria
participado diretamente da ação violenta contra os moradores, “tendo chegado na
área, em companhia de outros homens igualmente armados, e expulsado os
posseiros”, como indica boletim de ocorrência anexo à ação. Erlani é
descrito como um agenciador de homens armados nas áreas de fechos de pasto, “ou
seja, está a serviço das grilagens de terra. Trata-se de policial militar
aposentado, de meia idade, que se esconde atrás de uma empresa de segurança de
fachada, mas sobretudo atrás da impunidade e inércia dos órgãos que deveriam
promover investigação de seus atos ilícitos”. De acordo com um documento
de compra e venda apresentado no processo, o segundo réu na ação, Silvério
Teles Baeta Zebral, e sua esposa, Angela Teles Baeta Zebral, residentes no Rio
de Janeiro, teriam vendido, em 2021, a área para o terceiro réu, a Reviver
Participações, que tem sede em Salvador. A Reviver Participações é parte
de um grupo de CNPJs voltados à construção civil. Oficialmente, o presidente é
Odair de Jesus Conceição, que aparece atrelado a outros CNPJs. Mas há empresas
de outras áreas, como a Reviver Administração Prisional Privada Ltda. Uma
das empresas de Conceição, a Mendes e Ferreira Segurança Patrimonial Ltda,
recebeu R$ 4,3 milhões do governo federal entre 2015 e 2017. Conceição é o
presidente da Laços Patrimonial SA, da Associação dos Condomínios e Associação
de Moradores de Praia do Forte, Reviver e Associação Brasileira das Empresas
Especializadas na Prestação de Serviços a Presídios. É ainda sócio da Mendes e
diretor de 18 empresas. Pela administração prisional, a Reviver recebeu 1.147
pagamentos do governo da Bahia desde 2016, num total de R$ 450 milhões. Décadas
de grilagem Silvério Teles Zebral e a Reviver não são novatos no ramo da
grilagem. Eles estão envolvidos em outro caso de tentativa de ocupação ilegal
no mesmo município de Correntina, em uma área vizinha ao fecho de Boi Arriba –
o Fecho da Faca – em uma história que se arrasta desde o final dos anos
1980. “Há muitos anos este fecho enfrenta a tentativa de grilagem por
parte do Sr. Silvério Teles Baeta Zebral”, afirma a advogada Liliane Pereira
Campos, na ação proposta em fevereiro. Na ação mais antiga, Zebral figura como
proprietário de um apartamento em Ipanema, no Rio de Janeiro. E em uma
audiência de tentativa de conciliação realizada em 2011, ele chegou a oferecer
aos geraizeiros que moram no Fecho de Faca que ficassem com parte do fecho Boi
Arriba, como se fosse proprietário. Na tentativa de grilagem do Fecho de
Faca, Zebral e Reviver entraram com um pedido de reintegração de posse contra
os moradores da comunidade. E, nesse processo, houve uma perícia feita a pedido
do juiz, quando se constatou a presença de posseiros, cercas, arames farpados,
pastagens, ranchos e outras benfeitorias feitas pelos posseiros. Ameaça,
sequestro, tentativa de homicídio Um dos casos envolvendo o Sargento Erlani é
emblemático do que se dá com os geraizeiros. A Associação de Advogados de
Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia (AATR) pediu ao Ministério Público
Estadual que investigasse a atuação de policiais militares, a serviço de
Erlani, contra várias comunidades tradicionais de Correntina. Como se
precisasse relembrar a Constituição, explicou ao promotor que é papel dele a
fiscalização das polícias. A AATR apontou que empresas e fazendeiros
estavam avançando sobre as terras tradicionais para convertê-las em áreas de
reserva legal – a chamada “grilagem verde”, que permite tomar para si uma terra
preservada em uma área menos valorizada em troca de poder desmatar totalmente
as fazendas presentes em áreas mais valiosas. Nos quintais das
comunidades, fecheiros produzem legumes, verduras e frutas. Foto: Tatiana
Merlino Moradores relatam que aviões e drones circulam pela região, sem
autorização. Foto: Tatiana Merlino Nos quintais das comunidades, fecheiros
produzem legumes, verduras e frutas. Foto: Tatiana Merlino Moradores relatam
que aviões e drones circulam pela região, sem autorização. Foto: Tatiana
Merlino Moradores relatam que aviões e drones circulam pela região, sem
autorização. Foto: Tatiana Merlino Com isso, desde 2013 haviam crescido os
casos de ameaças envolvendo Erlani e várias de suas empresas de “milícia”, de
acordo com a AATR. Os pistoleiros atuam “fechando estradas tradicionais,
abrindo novos aceiros e picadas, construindo cercas, queimando ranchos de uso
coletivo, derrubando cercas dos fechos, além das ameaças e violências diretas
aos moradores das comunidades”. Os documentos apresentados pela associação
incluem contratos de segurança privada assinados entre grandes fazendeiros e o
policial-pastor. E dão conta de 14 episódios nos quais foram registrados
boletins de ocorrência contra as empresas dele, e nenhuma providência foi
tomada. Ameaças, cabanas destruídas, gado desaparecido, violência física,
sequestro e, por fim, uma tentativa de homicídio. Tudo isso foi apresentado ao
Ministério Público em 2021. Mas, no ano seguinte, o promotor substituto Alison
da Silva Andrade informou que teria de arquivar o caso. As ocorrências eram
antigas demais e, portanto, haviam prescrito. A situação dá uma dimensão,
também, do desalento que marca a relação dos geraizeiros com o Estado. Falhas e
corrupção são a marca de praticamente todas as instâncias públicas possíveis e
imagináveis. A delegacia que não registra o BO. O PM que faz parte
da perseguição. A vara que fica sem juiz. O Ministério Público que
fica sem promotor. O governo federal. O governo estadual. A
prefeitura. O Ministério Público Federal. Ninguém parece interessado em
proteger os interesses dos geraizeiros. Pelo contrário. O governo federal
(de Dilma Rousseff a Lula 3) reconhece e promove o Matopiba, mantém encontros
amistosos com os fazendeiros, fecha os olhos para a destruição do
Cerrado. Dias antes de testemunharmos o encontro entre os geraizeiros, em
junho, Lula esteve na Bahia Farm Show, autointitulada a maior feira do agro no
Nordeste. O evento acontece anualmente na cidade de Luis Eduardo Magalhães, a
apenas 255 quilômetros de Correntina. Lula esteve na abertura do evento
dos grandes produtores da Bahia Foto: Ricardo Stuckert (PR) “Então, pelo
amor de deus, é preciso parar de construir rivalidade onde ela não existe. A
gente não pode dar corda para o discurso ignorante. Por que eu poderia ser
contra um produtor rural que quer terra para trabalhar? Por que eu poderia ser
contra um grande produtor que está produzindo e vendendo sua soja ou fazendo o
Brasil voltar a plantar algodão, coisa que o Brasil tinha deixado de plantar?”,
disse Lula, na ocasião. Nenhuma das comunidades tradicionais teve a mesma sorte
de receber a visita do presidente. Do Bolsa Família ao latifúndio Em 8 de maio
de 2021, dois comerciantes de Catalão, Goiás, compraram uma fazenda de 9,2 mil
hectares em Correntina, a 810 quilômetros de distância de onde vivem. Seria
apenas mais um entre tantos casos de brasileiros tentando a sorte no
agronegócio do Matopiba, região tratada como “a última fronteira agrícola”. Mas
havia muitos poréns nessa história. Ao mesmo tempo em que diziam
desembolsar R$ 5 milhões no negócio, Jairo Pereira de Amorim e Antônio Nogueira
Filho integravam a lista de pessoas que recorreram ao auxílio emergencial
liberado pelo governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19. As
parcelas de R$ 150 a R$ 600 poderiam ser úteis para comprar arroz e feijão, mas
não uma fazenda desse tamanho. A lista de poréns não começa e nem termina
aqui. O valor de 5 milhões de reais é irrisório para os padrões atuais da
região, que tem fazendas avaliadas em 200, 300 e até 500 milhões de reais. A
suposta vendedora é Rosalina Rosa da Anunciação, uma senhora de 93 anos que,
aparentemente, quase ninguém conhece. Analfabeta, moradora do centro de
Correntina, Rosalina supostamente tocava os negócios por meio de procurações
dadas a outras pessoas para que assumissem com liberdade total sobre a
propriedade. Entre 2018 e 2019, talvez muito indecisa, Rosalina repassou ao
menos cinco vezes essa procuração. A situação se torna mais curiosa. Em
dezembro de 2020, ou seja, poucos meses antes de registrar uma ação judicial
contra a Associação Comunitária Agropastoril e Ambiental do Vale do Capão
Grosso, em parceria com Antônio Filho e reivindicando a posse da área do Fecho
de Capão Grosso, Jairo de Amorim apresentou à Justiça uma outra versão, em uma
outra ação. Dessa vez, pediu para ser reconhecido como proprietário da terra
por usucapião, instrumento legal que permite reivindicar a propriedade de uma
área ocupada de longa data. Famílias vivem, há décadas, de agricultura e
criação de gado na área em questão. Mais uma vez, o suposto proprietário de uma
área multimilionária alegou não ter renda alguma. Para isso, anexou um extrato
da conta bancária completamente zerada, fenômeno curioso para o dono de uma
loja, e que não convenceu o juiz: “No caso dos autos verifico que há indícios
de capacidade financeira do requerente haja vista ser comerciante.” Nessa
ação, Jairo alega manter “a posse de forma mansa e pacífica, contínua, sem
oposição” há mais de vinte anos, uma versão contraditória com o que ele mesmo
afirma na outra ação, em que diz ter recém comprado a fazenda. Segundo a
alegação do advogado, é preciso que o Judiciário resolva a questão com urgência
porque, do contrário, os fecheiros dividirão a área entre si. Porém, em
despacho de junho deste ano, o juiz Matheus Agenor Alves Santos, afirmou que
embora Jairo diga que está sofrendo ameaça à sua posse “entendo que os
documentos que acompanham a petição inicial não demonstram a existência da
posse prévia do autor bem como não delimitam, com um mínimo de precisão
temporal quando ocorreram os supostos fatos.” Encenação Em agosto deste ano, em
uma insólita audiência da ação na qual reivindica a posse de Capão Grosso,
testemunhas de Jairo e Antonio deram informações pouco precisas sobre a área
por eles reivindicada. A primeira pessoa a falar, Wanderson Araújo de
Sousa, trabalhou fazendo o levantamento topográfico da área, em 2019 e que, no
local, não havia nenhum posseiro, tampouco casa. Também afirmou não ter
conhecimento de quem era dono da área antes dos autores da ação. “Não havia
gado, pisoteio de gado nem fezes de gado.” Grileiros entraram com uma
ação judicial contra a associação de Capão Grosso pedindo reintegração de posse
da área. Foto: Tatiana Merlino A segunda testemunha, Adriano Martins Pires, que
assim como Jairo e Antônio vive em Catalão, disse que foi fazer a limpeza de pé
de cerca, contratado por Antônio Nogueira. Questionado pelo juiz se havia ido
de Catalão até Correntina, ou seja, se havia percorrido 800 quilômetros apenas
para fazer a limpeza da região, Pires contou que é comerciante e que “mexe com
fazendas no Tocantins”. Adriano é sócio da Madeireira Araguaia, em Catalão, ao
lado de Soraia Ribeiro dos Santos Pires, que também recebeu parcelas (cinco) do
auxílio emergencial em 2020. A madeireira tem ao menos um processo por crime
ambiental, no valor de R$ 29 mil. A terceira testemunha, Vilmar Egídio Cardoso,
disse que mora no Oeste da Bahia e que “mexe com esse negócio de fazenda, de
vender fazenda”. O juiz precisou pedir um esclarecimento: ele é corretor de
imóveis? “Sim.” Vilmar disse que quem passou a procuração para ele foi
Rosalina, e que a conheceu apenas no dia em que isso se deu, no final dos anos
1990. Ao final da audiência, a advogada Liliane afirmou que nenhum
documento apresentado pelos dois comprova a posse. “O único que poderia indicar
posse é o contrato de venda, que não está assinado, não tem firma da senhora
Rosalina. Esses detalhes eu gostaria de deixar registrado aqui”, finalizou.
Vanderlei dos Santos diz que moradores dos fechos de Correntina vão resistir ao
processo de grilagem. Foto: Tatiana Merlino A audiência foi acompanhada pelos
integrantes da Associação Comunitária Agropastoril e Ambiental do Vale do
Capão Grosso e fecheiros que vivem e usam o local. “Hoje acabou o sossego das
famílias”, afirma Vanderlei Pereira dos Santos, 33 anos, ex-presidente da
associação e morador da região. “Nasci e me criei aqui. Nós vivemos e
dependemos do Gerais. Mas hoje estamos vendo esse processo de grilagem. Pra
andar aqui, temos que ir em grupo, é perigoso a pessoa sair e não voltar. Mas
nós vamos lutar, não vamos recuar”, defende.
Fonte: Por Tatiana
Merlino, em O Joio e O Trigo
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