UM CRIME DE CINCO REAIS QUE NÃO MUDOU O BRASIL
Numa terça-feira, 17 de janeiro de 2012, Desireé
Mendes andava a esmo pelo Centro de São Paulo, no entorno da Cracolândia – área
que ganhou esse rótulo pejorativo devido à grande quantidade de dependentes
químicos que se concentram ali. Ela própria uma dependente química, na época
com 35 anos e grávida de quatro meses, Mendes tinha acabado de receber uma
notícia dura: seu ex-companheiro, pai da criança, fizera um exame que revelou
que ele era soropositivo. Transtornada com a possibilidade de estar também
contaminada com o vírus HIV, ela usou todo o dinheiro que levava consigo –
cerca de 150 reais – para comprar crack. Mas não teve tempo de consumir uma
pedra sequer. Poucos minutos depois, foi abordada pela Polícia Militar e presa
em flagrante por tráfico.
“Naquele dia eu tinha entrado em parafuso. Fiquei
imaginando: ‘Vou morrer, tô com Aids.’ Nem pensei em mais nada. Só em usar toda
droga que eu pudesse”, ela relembra. “Tinha comprado [o crack] para uso
próprio. Mas quando me pegaram com a droga, tinha alguém do meu lado com 5
reais. Usaram isso para dizer que eu estava vendendo, que era tráfico.”
Mendes deu essa versão à Justiça, mas prevaleceu a
acusação dos policiais. Ela já tinha antecedentes: durante os vinte anos em que
frequentou a Cracolândia, foi presa ao menos dezesseis vezes, segundo se
recorda. É provável que esse histórico tenha pesado contra ela no tribunal. Sem
que o caso fosse investigado para averiguar quem estava falando a verdade,
Mendes foi condenada a seis anos de prisão com base na Lei de Drogas.
Esse episódio reflete um padrão do Judiciário
brasileiro no trato de acusações que envolvem drogas. Uma pesquisa inédita
divulgada nesta sexta-feira (22) revela que 85,6% das prisões com base na Lei
de Drogas ocorrem em flagrante e mais da metade desses flagrantes (50,6%)
acontecem em via pública. Em 76,8% dos casos, a abordagem é feita por PMs. Os
dados foram colhidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em
parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Foi analisada uma
amostra de 28.851 processos de tribunais estaduais do Brasil inteiro iniciados
no primeiro semestre de 2019.
Mendes se encaixa em todos os quesitos revelados
pela pesquisa. Mas, mais do que isso, seu caso é revelador de um padrão do
sistema prisional feminino. A Lei de Drogas, que enquadra pessoas
principalmente pelos crimes de tráfico e associação para o tráfico, é a
principal razão para mulheres serem presas no Brasil. Segundo dados da
Secretaria Nacional de Políticas Penais, 55% da população carcerária feminina
em junho de 2022 tinha sido detida por tráfico de drogas, associação para o
tráfico ou tráfico internacional. Nos presídios masculinos, a proporção era de
27%.
Essa discrepância chamou a atenção da Secretaria
Nacional de Política Sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, que vem
tentando pautar políticas específicas para mulheres. A Senad criou recentemente
um grupo de trabalho com integrantes de oito ministérios para pensar
iniciativas que garantam ao público feminino acesso a políticas públicas de
diversas áreas, de modo a tentar minimizar o contingente de mulheres presas por
tráfico.
Em outra frente, em parceria com o CNJ, o
Ministério da Justiça pretende lançar um manual de aplicação da Lei de Drogas,
com a finalidade de orientar o trabalho dos juízes. A ideia é estabelecer
critérios objetivos para distinguir usuários e traficantes – esforço similar ao
que está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), que pode não apenas
estabelecer um critério quantitativo para distinguir porte e tráfico como pode
descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio. Segundo a diretora de Prevenção
e Reinserção Social da Senad, Nara Denilse de Araújo, o manual deve ajudar a
reduzir as brechas interpretativas na lei.
“A Lei de Drogas já parte do princípio do não
encarceramento do usuário, mas o que a gente vê, invariavelmente, é a aplicação
desordenada dessa lei”, diz Araújo. “Como não existe uma diferenciação muito
clara [entre traficante e usuário], acaba tendo caracterizações a partir de
critérios subjetivos, como o racial. Há uma insegurança jurídica muito grande.”
A pesquisa do Ipea com o Ministério da Justiça
mostra que 46,2% dos réus da Lei de Drogas se autodeclaram negros. Como não há
padronização, essa porcentagem abarca descrições como “pardo”, “mulato” e
“moreno”. É provável que a proporção de negros entre os réus seja maior, já que
quase um terço dos processos analisados não informava a cor dos acusados. Não
ficou comprovada relação dos presos com facções criminosas em 87% dos casos, o
que reforça o argumento da Senad de que se encarcera, principalmente, pequenos
traficantes.
Criada em 2006, a Lei de Drogas foi defendida por
muitos parlamentares, na época, como um avanço na maneira como o Brasil lida
com a dependência química. O projeto acabou com a punição para usuários de
drogas e aumentou a pena mínima para traficantes. Mas a aplicação dessa nova
lei não resultou numa diminuição das prisões relacionadas a drogas. O
contingente de pessoas por tráfico triplicou entre 2006 e 2016. Pessoas que
antes eram presas como usuárias passaram a ser enquadradas como traficantes,
sem que houvesse – como não há até hoje – parâmetros claros para diferenciar
uma coisa da outra.
Quem trabalha no dia a dia com a população
carcerária considera fundamental que sejam criados esses parâmetros. A
defensora pública Mariana Martins Nunes, que atuou durante oito anos em varas
criminais no Paraná, atesta que, principalmente em casos de flagrante, a
polícia tem recorrido a avaliações vagas para enquadrar mulheres como
traficantes. O local e a aparência da pessoa, diz Nunes, aparecem
frequentemente como critérios para diferenciar o que é porte de drogas e o que
é tráfico.
“Como a lei não fixa o limite entre tráfico e uso,
mulheres periféricas acabam presas em flagrante com pouca quantidade de droga,
ainda que seja para uso próprio. Os critérios são subjetivos, até de
comportamento. Os juízes perguntam quanto custou [a droga], como a pessoa
conseguiu comprar… Fazem uma análise que leva à condenação sumária, mesmo que
as características sejam de uso, não de tráfico”, diz Nunes, que coordena o
Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria
Pública do Paraná.
A subjetividade da lei afeta homens e mulheres. Os
homens são a imensa maioria dos presos por tráfico no Brasil, quando se
considera os números absolutos (eram 623,3 mil homens e 28,7 mil mulheres, em
junho de 2022). Com uma mudança na Lei de Drogas, seja pelo STF ou por outra
via, o resultado que se espera é a diminuição da população carcerária tanto
masculina quanto feminina. Mas, considerando o perfil dos presos, é provável
que o impacto seja proporcionalmente maior nos presídios femininos. Isso
porque, como explica o desembargador Ruy Muggiati, do Tribunal de Justiça do
Paraná, a maioria das mulheres vai presa pelo que ele chama de “crimes de
subsistência” – aqueles que têm menor potencial ofensivo e por meio dos quais
elas conseguem levantar dinheiro para necessidades básicas.
No universo do tráfico, as mulheres estão, em
geral, num ponto inferior da hierarquia. Os críticos da Lei de Drogas
argumentam, por isso, que a prisão não é uma resposta efetiva para o problema,
porque abarrota os presídios com pessoas que não têm voz de comando nas redes
de tráfico e são facilmente substituíveis. Tudo isso gerando um custo alto para
o Estado – estima-se que cada preso custe 1,8 mil reais por mês –, sem atingir
a estrutura do tráfico.
“A Lei de Drogas aumentou muito a população
carcerária sem ter trazido vantagens palpáveis à sociedade. Temos a prisão de
muitos pequenos traficantes, que cometem o crime de subsistência. Cinco minutos
depois da prisão, já tem outra pessoa no lugar da pessoa que foi presa. Desse
jeito, não se sobe à hierarquia. Tem que se chegar a quem controla essa
estrutura”, argumenta Muggiati, que supervisiona o Grupo de Monitoramento e
Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF) do Tribunal de
Justiça do Paraná.
O fato de a maior parte das prisões ser feita em
flagrante, e pela Polícia Militar, é um reflexo dessa baixa eficácia da
política antidrogas, diz Muggiati. A PM é responsável, no Brasil, pelo
policiamento preventivo e ostensivo. Disso decorre que o índice de prisões com
base em investigações é muito pequeno. Os líderes das quadrilhas não perambulam
pela Cracolândia à vista da PM.
“A investigação é importante para identificar o
controle da rede. Se você tirar de circulação o grupo que controla, a rede cai
por inteiro, como um castelo de cartas. Mas não é isso o que, em regra,
acontece”, afirma o desembargador.
A pesquisa “Perfil do processado e produção de
provas nas ações criminais por tráfico de drogas”, divulgada nesta sexta-feira,
além de revelar que 8 a cada 10 prisões por tráfico são feitas por policiais
militares, mostra que em 33% dos casos os PMs decidiram agir motivados por
“comportamento suspeito” – um critério subjetivo e, do ponto de vista do combate
ao crime, superficial. Em 13% dos processos analisados, houve relaxamento da
prisão já na audiência de custódia, quando um juiz avalia preliminarmente a
legalidade da detenção.
Antes daquela terça-feira, em janeiro de 2012,
Desireé Mendes já tinha sido presa por tráfico de drogas. Ela confessa que, ao
longo dos anos em que frequentou a Cracolândia, vendeu pequenas porções de
drogas como forma de levantar dinheiro para sustentar a própria dependência
química e se alimentar – aquilo que Ruy Muggiati chamaria de “crime de
subsistência”. A dependência química de Mendes serviu de porta de entrada para
o crime. “Não posso dizer que não trafiquei. Eu vendia, fumava, dormia na
calçada. Vendia por causa do meu vício. Não ganhei dinheiro. Pra mim, o tráfico
só trouxe prejuízo.”
Muggiati e a defensora pública Mariana Nunes contam
que casos como o de Mendes aparecem todos os dias nas varas criminais. Na
avaliação deles, o poder público precisa pensar em políticas que foquem na
redução de danos e na assistência multidisciplinar aos dependentes químicos. Os
dois defendem que os usuários sequer deveriam ser presos.
“O problema é que a questão é tratada com um viés
punitivista. O importante seria, ao se constatar que a pessoa é usuária de
drogas, o enquadramento como usuária prevalecer sobre a eventual venda que ela
esteja fazendo, e encaminhar para o tratamento adequado a partir dessa
constatação”, diz Nunes. “Como a pessoa dependente vai fazer se, em dado
momento, não tiver recursos para adquirir [a droga]? Vai ter que praticar uma
venda. Legalmente, essa pessoa não poderia sequer ser imputável. Mas como vai
se descobrir isso, num contexto em que a investigação policial praticamente
inexiste?”, lamenta Muggiati.
Em 2012, quando ainda estava presa, Desireé Mendes
deu à luz Enzo, seu quarto filho. O episódio foi traumático: segundo ela, seis
policiais militares a escoltavam na sala de parto, como se ela fosse uma
criminosa de alta periculosidade. Na verdade, não foi a primeira vez: dez anos
antes, quando nasceu seu segundo filho, ela também estava presa. Não foi
escoltada, mas os policiais militares a algemaram ao leito hospitalar pelos pés
e pelas mãos.
Enzo nasceu com plena saúde, mas Mendes temia que
ela e o filho estivessem contaminados com HIV. Pediu um exame. O resultado chegou
dez dias depois, com resultado negativo. Naquele dia, Mendes decidiu “virar a
chave”. “Ali, resolvi mudar de vida. É contraditório, porque a prisão, que tem
o ambiente mais hostil que você possa imaginar e comete todo tipo de violação
contra você, foi o que salvou minha vida”, ela relembra. ‘Mas isso porque eu
tomei a decisão. O sistema, em si, não regenera ninguém. Pelo contrário: ele te
esmaga.”
Por meio de um habeas corpus, Mendes conquistou, já
em 2012, o direito de recorrer da condenação em liberdade. Restou uma multa de
mais de 10 mil reais, que ela vem pagando desde então em parcelas. Fora da
prisão, Mendes retornou à casa da mãe. A ressocialização não foi fácil. Ela diz
ter recebido dezenas de nãos, nas inúmeras tentativas que fez de conseguir um
emprego. “Eu não conseguia emprego para picar cebola, para varrer uma rua.
Quando chegava na questão dos antecedentes [criminais], era rua. As pessoas
desistem, porque o caminho é cheio de humilhações, e aí reincidem. Se não
trafica, se não rouba, não tem dinheiro. O sistema é feito para punir até
quando você já está do lado de fora.”
A situação melhorou quando Mendes passou a vender
brigadeiros que ela mesmo fazia. Tomou gosto pela culinária e, em seguida,
trabalhou por cinco anos como chef confeiteira num bistrô, onde desenvolveu,
segundo ela, uma sobremesa campeã de vendas. Tornou-se um típico exemplo de
superação e, como tal, foi convidada a dar palestras em programas de
ressocialização e também para internas da Fundação Casa. Graduou-se no curso de
Gastronomia da Universidade Mackenzie, em um programa de inclusão para
ex-detentas.
Aos 45 anos, Mendes trabalha hoje como confeiteira
autônoma. As encomendas chegam, principalmente, a partir de sua página no
Instagram. Ela sabe que seu caso de superação é uma exceção. Muitas
ex-presidiárias carregam o estigma da prisão por toda a vida e não conseguem
voltar ao mercado de trabalho. “A ideia não é ressocializar? Então por que
nunca ninguém me perguntou nada? Ninguém perguntou se eu tinha arroz em casa ou
se meus filhos estavam passando por dificuldade. O sistema é feito para acabar
com você, para te manter submissa, humilhada. Ressocialização não existe”, ela
diz. “A minha ressocialização eu fiz sozinha. Consegui, apesar do sistema. Dei
muita sorte. E sei que isso é raro.”
Fonte: Revista Piauí
Nenhum comentário:
Postar um comentário