Tribunais de justiça no Brasil gastaram R$ 2,6 milhões com constelação
familiar
“Vou te esfaquear, te matar e beber o seu sangue,
vagabunda, puta”, teria dito Beatriz a Júlia, que é madrasta de sua filha, após
ver fotos das duas em uma rede social. Devido às ameaças, Júlia processou
Beatriz por danos morais. Ela conseguiu a indenização, porém, também precisou
ouvir da juíza que era preciso perdoar a agressora. “Uma boa separação dá certo
quando os parceiros dizem um para o outro: eu amei muito você. O que dei para
você, dei com muito prazer. Você também me deu muito, vou guardar isso com
honra”, disse a juíza do Tribunal de Justiça do Sergipe (TJSE) Camila da Costa
Pedrosa Ferreira, na sentença. A frase, segundo ela, é uma “sábia visão de Bert
Hellinger”, o criador da constelação familiar.
Segundo a Agência Pública apurou, menções a Hellinger e “lições” da
constelação familiar têm sido usadas em decisões na Justiça e também para
intimar pessoas a participar de conversas preparatórias para as audiências de
conciliação. De acordo com as informações obtidas em diários oficiais e por
meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), os tribunais de justiça brasileiros
já utilizaram a técnica em centenas de processos e gastaram mais de R$ 2,6
milhões em cursos de constelação familiar para juízes e servidores.
A constelação familiar é uma prática alternativa
que usa dinâmicas para resolver conflitos familiares. São realizadas
dramatizações, no geral, em grupos, que recriam cenas sobre questões familiares
e costumam envolver membros de várias gerações. Ela não é reconhecida pelo
Conselho Federal de Psicologia, que publicou nota em 2023 destacando que a constelação tem
“incongruências éticas e de conduta profissional”.
Cinco tribunais confirmaram à reportagem que
oferecem a prática: os tribunais de justiça da Bahia (TJBA), de Minas Gerais
(TJMG), de Santa Catarina (TJSC), de São Paulo (TJSP) e do Ceará (TJCE). Já o
TJSE, citado no início desta reportagem com uma decisão de 2021, informa que
não utiliza a constelação familiar como método de conciliação de conflitos.
Neste último, segundo a assessoria de imprensa do
tribunal, a constelação não estaria vinculada à solução de conflitos, mas como
um programa de acolhimento do Núcleo de Justiça Restaurativa, que atende
“processos ainda não transitados em julgado ou em cumprindo de pena” e
“questões de família, sucessões, endividamentos, trabalhista, violência doméstica, casos de crimes que
tramitam no Tribunal do Júri e cíveis”.
Outros tribunais informaram gastos com constelação,
mas disseram não terem a prática estabelecida por portaria ou regulamentação
atualmente.
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Tribunais de justiça
brasileiros bancam cursos e oficinas de constelação familiar
O Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) é o que
acumula os maiores gastos com constelação entre todos os que responderam à
reportagem: R$ 1,5 milhão com cursos e palestras a servidores. A reportagem
solicitou ao tribunal o número de atividades realizadas sobre o tema e o
montante investido, mas não obteve retorno. Os valores apurados pela Pública foram encontrados em
publicações do Diário Oficial do TJRO.
Procurada, a assessoria informou que a técnica “não
é mais utilizada nas audiências”. O curso mais recente financiado pelo TJRO se
encerrou em novembro de 2022, mas a chefe do Núcleo de Conciliação das Varas de
Família de Porto Velho, Jaife da Silva Chaves, diz acreditar que o projeto de
constelação familiar desenvolvido pela presidência do TJRO tenha sido encerrado
por volta de 2019.
Sami Storch, juiz precursor do “direito sistêmico”,
se destaca entre os palestrantes. Segundo a reportagem apurou, em 2016 o
Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) pagou pelo menos R$ 17 mil em diárias,
pernoite e inscrições para que seis servidores participassem de um seminário
com Storch em São Paulo (SP).
A reportagem apurou que os cursos nos tribunais
incluem desde palestras e oficinas com carga horária curta até cursos mais
robustos, que chegam a 100 horas/aula, com obrigatoriedade de estágio
supervisionado para conclusão. Na maioria dos casos, as formações foram
ministradas por servidores dos próprios tribunais ou por instituições
contratadas.
Dos 27 tribunais estaduais brasileiros, 17
responderam à solicitação feita com base na LAI, dentro do prazo. Destes, 13
informaram dados de cursos, com valores. Já oito enviaram informações
incompletas, principalmente sobre os custos, ou apenas encaminharam o pedido a
outro órgão.
Apesar de “vedadas quaisquer exigências relativas
aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público”,
segundo a LAI (Lei 12.527/2011), vários órgãos requisitaram “esclarecimento a
respeito da finalidade das informações solicitadas”. O Tribunal do Mato Grosso
do Sul (TJMS), por exemplo, indeferiu a solicitação da reportagem com a
justificativa de que o motivo não havia sido informado.
No TJCE, em resposta à reportagem, a servidora
responsável pela coordenação das constelações alegou que “não é questão da lei”
e que iria responder o solicitado, mas gostaria de “saber qual era o objetivo
[do pedido]”.
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Tribunais têm intimado
pessoas a participar de constelações
Segundo pesquisadores ouvidos pela reportagem, o
uso da constelação nos tribunais foi facilitado pela Resolução 125 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 29 de novembro de 2010, que trata da
organização dos serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais
de solução de conflitos.
À Pública,
o CNJ afirmou que não há recomendações do órgão a respeito do uso das
constelações, embora alguns utilizem a técnica. E que, como o assunto está
sendo debatido, por conta de um pedido de regulamentação da prática, o CNJ não tem se manifestado oficialmente sobre o assunto.
Para o pesquisador do uso da constelação no campo
jurídico Mateus França, a resolução efetivamente é uma brecha. “Essa resolução
não fala diretamente de constelação familiar. Ela institui meios alternativos
de resolução de conflitos. A resolução é bastante aberta. Ela diz que se deve
buscar meios alternativos de solução de conflitos, e isso entra num objetivo do
CNJ de baixar pilhas [de processos]. Nesse modelo de baixar processos a
qualquer custo, podemos chegar em coisas muito sérias. Quando a constelação
veio com aqueles números superaltos, o CNJ se impressionou”, afirma.
Criados em 2015, a partir do novo Código de
Processo Civil, os Centros Judiciários de Solução Consensual de Conflitos
(Cejusc) são os responsáveis por aplicar essas ferramentas alternativas. Fica a
cargo do Tribunal de Justiça de cada estado decidir a regulamentação e as atividades
que serão oferecidas. Além das sessões de constelação, há projetos que vão
desde rodas de conversa, palestras e oficinas de parentalidade. Em geral, os
métodos antecedem a audiência de conciliação, realizada também por um
profissional do Cejusc.
Em alguns casos, o encaminhamento para a
constelação familiar é feito pelo juiz do caso, em forma de convite ou
intimação. A reportagem apurou que as duas formas ocorreram, por exemplo, no
TJSC.
Embora o não comparecimento na audiência de
conciliação possa ser justificado, a presença em sessões de constelação pode
ser interpretada pelo magistrado como “evidência” de boa-fé – e a ausência,
como falta de colaboração.
Para Michelle Hugill, servidora do TJSC, “um
convite do Judiciário nunca é um convite”. Como a constelação não é oferecida
em todos os tribunais e a convocação das partes nem sempre é registrada
oficialmente, não é possível afirmar quantas sessões já foram realizadas na
Justiça brasileira. Apesar disso, de acordo com as publicações dos diários oficiais,
o país já acumula centenas de intimações para a prática.
Para Mateus França, a defesa de que a constelação
teria resultados é baseada em poucos estudos de metodologia incerta. O jurista
e sociólogo também questiona se “vale tudo” para chegar a uma taxa absoluta de
acordos. “Quanto uma técnica como a constelação, que oferece explicações
mágicas para os problemas das pessoas, não leva artificialmente ao acordo?
Porque essas pessoas talvez acreditem que a melhor coisa a fazer é aceitar o
acordo: ‘Talvez eu tenha muita culpa nessa história, tenha questões com meus
antepassados que eu não lidei’. O acordo foi feito, o número do acordo está
ali, mas será que efetivamente foi feita uma solução adequada para o
conflito?”, diz.
Segundo Michelle Hugill, mesmo que existissem
estudos provando que a constelação familiar auxilia na resolução de conflitos,
ainda assim o Judiciário não deveria aplicá-la. “Mesmo que se entenda como uma
terapia diferente, holística, pseudoterapia, que seja, não é uma técnica, é uma
terapia. É diferente da conciliação e da mediação.” Para ela, o papel da
Justiça não é fazer terapia. “A gente não pega uma das partes e manda nosso
psicólogo atender essa pessoa, não é a nossa função”, exemplifica.
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Constelação familiar tem
ganhado espaço no Judiciário brasileiro
A visão de Bert Hellinger e das constelações
começou a ganhar espaço no Judiciário ao menos desde 2012, quando o “direito
sistêmico” se popularizou entre magistrados e servidores judiciais no Brasil.
“O juiz que tem uma postura sistêmica vai olhar o
conflito diferente daquele juiz de postura punitivista”, defende Fabiano
Oldoni, coautor do livro Direito sistêmico: aplicação das leis
sistêmicas de Bert Hellinger ao direito de família e ao direito penal. Para
o advogado, juristas com essa filosofia prezam por soluções mais harmônicas e
convidam os envolvidos a refletir sobre as causas dos conflitos.
Contudo, Oldoni defende que o juiz não deve
constelar os próprios casos, porque “toma conhecimento de questões que depois,
se for julgar o processo, ele é parcial”. O advogado acrescenta que, caso não
haja um acordo na conciliação, o juiz terá que julgar a ação e, se tiver
constelado ou participado da técnica, “ele saberá de coisas que muitas vezes
não estão nem no processo”. De acordo com o Código de Processo Civil, a
audiência de conciliação, que ocorre sem a presença do juiz, é confidencial.
No TJMG, segundo o Cejusc, as sessões de
constelação seguem esse padrão. No entanto, não são todos os tribunais de
justiça que possuem regulamentação específica para as constelações familiares.
O TJBA, por exemplo, afirmou que “a sistemática de
utilização da ferramenta fica a critério do magistrado, resguardada a
voluntariedade do procedimento”. Por esse motivo, o Núcleo Permanente de
Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec) da Bahia afirma não ter
conhecimento se os autos do processo são repassados para o constelador, nem se
alguma informação retorna ao juiz depois da constelação.
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“Eu perguntei se eles
sabiam se tinha um aborto na família”, disse juíza de paz em caso de
inventário
A juíza de paz do cartório do 2° Ofício de
Sobradinho (DF) e mediadora voluntária do Núcleo Virtual de Mediação e
Conciliação (Denuvimec) do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios (TJDFT), Mírtala Delmondez, aplica a visão sistêmica nos casamentos
que celebra e em inventários. Ela lembra que, certa vez, uma família não
conseguia chegar a um acordo e o processo só foi concluído após constelar.
Mírtala explica que, pelas regras do “direito sistêmico”, o filho mais velho
tem que encaminhar o inventário. Nesse caso, quem liderava as negociações
pensava ser o primogênito, mas não sabia da existência de um irmão abortado.
Segundo ela, após a revelação, a família chegou a um consenso.
“Essa família tinha três filhos, as irmãs não
deixavam que o irmão visse a mãe. Elas estavam com ódio dele, ele, com ódio
delas. Aí montamos a constelação. Esse rapaz pensava que ele tinha que fazer o
inventário, porque era o homem da família, não porque era o mais velho. E ele estava
como se fosse o mais velho, só que ele não era. Aí eu perguntei se eles sabiam
se tinha um aborto na família e eles falaram que não. Daí eu falei: ‘Essa peça
aqui vocês não sabem quem é, mas, se você sentir no coração, você coloca no
campo”. Aí ela [advogada do rapaz] segurou a peça e disse que sentiu que devia
colocar. Quando ela colocou, era justamente onde estava travando. Antes desse
rapaz, tinha um irmão mais velho que ele. Então ele não era o mais velho.”
Na última década, magistrados fascinados pela
prática de Bert Hellinger e inspirados por Sami Storch conduziram iniciativas
próprias nos tribunais.
Segundo a reportagem apurou, diversas comarcas do
Rio Grande do Sul passaram a utilizar a constelação na conciliação. Isso
ocorreu, inclusive, a partir da atuação de magistrados que, na época,
ministravam palestras sobre o tema.
Assim como no Rio Grande do Sul, há outros casos de
juristas e advogados que buscaram promover cursos e workshops para capacitar
funcionários dos tribunais sobre a constelação e o “direito sistêmico”.
Segundo a reportagem apurou, ao menos desde 2016, o
TJCE tem oferecido várias formações em constelação. A iniciativa seria uma
continuidade de formações oferecidas a psicólogos do tribunal, que começaram em
2007.
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Críticos da constelação
apontam que prática pode reforçar discriminação contra mulheres
Para a psicóloga Beatriz Coltro, que realiza
perícias judiciais no TJSC, um dos perigos do uso da constelação familiar como
perícia é tornar a análise muito rasa. Enquanto uma sessão dura em média 50
minutos, os laudos técnicos elaborados pela psicóloga em processos da Vara da
Família no TJSC despendem mais tempo. “São várias sessões para escutar o pai,
várias sessões para escutar a mãe. Eu utilizo técnicas, testes psicológicos que
têm validação pelo nosso satélite, que é um sistema de avaliação de técnicas
psicológicas”, explica Beatriz.
Também do TJSC, o juiz Romano Ensweiler considera
que as premissas de pertencimento e hierarquia da constelação familiar
desfavorecem as mulheres e podem provocar ainda mais danos se aplicadas a casos
de violência doméstica. “Se a mulher se indignar com essa situação, na verdade
isso vai causar mais problemas. Ou seja, a indignação da vítima traz uma
energia ruim e acaba gerando violência. Quer dizer, então, que a vítima tem que
aguardar e apanhar calada.”
Em razão desse debate, no final de 2022 o Fórum
Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher
(Fonavid) orientou que “no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher
não sejam utilizadas práticas de constelação familiar ou sistêmica”.
Em resposta à reportagem, o TJMG frisou que o
projeto de constelação familiar do Cejusc de Belo Horizonte não atende casos de
violência doméstica. Em contrapartida, nem todos os tribunais brasileiros
seguem a mesma orientação. Entre março e abril deste ano, em pelo menos dois
casos que envolvem violência doméstica houve intimações para a participar do
projeto de constelação familiar virtual do TJSP; em um deles, faz-se uma
ressalva ao final: “Considerando os relatos de violência doméstica, a presença
da autora não é recomendada”.
Existem projetos de lei nesse sentido, como o PL 9.444/2017, que estabelece normas para
a constelação sistêmica na solução de conflitos e aguarda parecer do relator na
Câmara dos Deputados desde 2021.
Alguns juristas contrários à prática nos tribunais,
como o juiz Romano Ensweiler, consideram que uma regulamentação só pioraria as
coisas. “Dentro do Judiciário, não tem cabimento. As minhas convicções pessoais
eu deixo em casa. Como eu vou criar um curso, implementar algo que não tem como
[comprovar]? A regulamentação vai dar um selo de garantia, um selo de seriedade
que não existe.”
Após receber mais de 25 mil apoios através do
sistema e-Cidadania, portal do Senado Federal que recebe propostas da população
e as coloca para votação online, a Sugestão Legislativa n° 1, de 2022, que propõe o “banimento da prática de Constelação Familiar das
Instituições Públicas”, entrou em tramitação. A matéria aguarda, desde março de
2023, o parecer do relator Eduardo Girão, senador que sugeriu a homenagem à
constelação familiar, que resultou em nove horas de debate em 2022.
A assessoria do senador confirmou que o relatório
está atrasado “devido ao momento conturbado que o Brasil atravessa e também
pelo fato do parlamentar estar muito focado nas questões que envolvem a CPMI de
8 de janeiro”. A equipe reforçou que “o senador já manifestou, em diversas
oportunidades, ser favorável à prática”. No início de julho deste ano, o Conselho
Federal de Psicologia enviou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, uma moção de apoio à proposta de
banimento.
Fonte: Por Jullia Gouveia e Karol Bernardi, da Agência
Pública
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