Os documentos que mostram as conexões dos filhos de Pinochet com o
narcotráfico
Quando a ditadura chilena chegava aos seus últimos
dias, os interesses dos dois traficantes de armas mais poderosos do mundo e de
proeminentes narcotraficantes que levavam cocaína para a Europa e os Estados
Unidos convergiram na capital Santiago. Como personagens inesperados dessa
história, figuraram também os filhos de Augusto Pinochet Ugarte, o general que
se preparava para entregar o poder depois de 17 anos de governo. Além deles,
havia também um assessor que integrava o círculo mais íntimo da família do
ditador, alguns dirigentes da Diretoria de Inteligência Nacional (DINA) —
a polícia política do regime chileno — e da Central Nacional de Informações
(CNI), além do irmão de um dos fundadores do partido de direita União
Democrática Independente (UDI).
Até hoje, os filhos de Pinochet sempre negaram sua
participação na empresa de Edgardo Bathich, a Focus Chile. Entre os
controladores da empresa — que montava caminhões com peças de segunda mão
importadas da Europa —, figurava o maior narcotraficante até então na Espanha,
Firmino Tavares, que foi condenado em 2001 por tentativa de lavar mais de 20
milhões de dólares provenientes do narcotráfico; e os Ochoa Galvis, uma família
colombiana investigada pela DEA (órgão federal de repressão e controle de
narcóticos dos Estados Unidos) por tráfico de cocaína e lavagem de dinheiro.
Fora isso, o capital investido por Bathich na empresa veio de Mohamed
Khashoggi, filho de Adnan Khashoggi, o maior traficante de armas da época,
considerado o homem mais rico do mundo na década de 1980.
Bathich não só era o representante dos interesses
de Khashoggi no Chile como também tinha parentesco com Monzer Al Kassar, outro
protagonista do comércio ilegal de armas no final da guerra fria.
O CIPER teve acesso à contabilidade da Focus, onde
encontrou indícios que ligam os irmãos Marco Antonio e Augusto Pinochet Hiriart
aos donos da empresa.
Mas eles não foram as únicas pessoas ligadas ao
regime militar a participar dessa história. Também teve um papel Ambrosio
Rodríguez, o advogado de confiança de Augusto Pinochet e Lucía Hiriart, que
exerceu a função de Procurador da República, cargo que o ditador criou. A
proximidade de Rodriguez com o casal era tamanha que a esposa do ditador
chileno o encarregou de realizar com urgência a sua separação de bens quando
estourou o caso Riggs, para proteger os bens que poderiam ser confiscados pela
justiça.
Um advogado do escritório de Rodríguez abriu
empresas para narcotraficantes que depois foram processados criminalmente no
Chile e na Europa. Mas o fato mais relevante é que Rodríguez contava com a
confiança total dos traficantes que controlavam a Focus, a ponto de ser
designado por eles como mediador em um acordo assinado em Ibiza, na Espanha,
quando os “investidores”, já investigados pela Justiça, tiveram
desentendimentos no momento de repartir o patrimônio da companhia.
Outro personagem da trama era o advogado Héctor
Novoa Vásquez, irmão de Jovino Novoa, ex-senador e presidente da UDI que foi
Subsecretário Geral de Governo durante a ditadura. Héctor Novoa foi o advogado
que estruturou a organização empresarial com base no Panamá, para que os sócios
da Focus pudessem ter controle dos negócios por meio de ações ao portador, que
são títulos que escondem a identidade dos proprietários finais de uma empresa.
Novoa realizou essa gestão enquanto membro do escritório de advocacia Eluchans
y Compañía, de Edmundo Eluchans, ex-presidente da Câmara de Deputados e atual
membro do Conselho Constituinte do Chile.
Héctor Novoa também era diretor do Banco O’Higgins,
onde os donos da Focus tinham as contas em que depositaram pelo menos 5,7
milhões de dólares transferidos do exterior para financiar a empresa e para
comprar mais de 30 propriedades em diferentes regiões do Chile. Os trâmites
para trazer o dinheiro para o país também foram realizados por Novoa. Entre as
propriedades adquiridas pelos sócios da Focus, estão diversas casas de luxo em
Lo Barnechea, na região metropolitana de Santiago, e Rapel, um balneário
turístico no verão. Com o dinheiro das empresas panamenhas, também investiram
em uma casa noturna chamada Alive, na Avenida El Bosque, no bairro de
Providencia — ponto de encontro das “noitadas” do círculo próximo do regime. O
mesmo grupo de investidores também chegou a controlar empresas agrícolas,
apícolas, de pesca, de transporte e de embalagens. Algumas delas continuam
ativas.
A Justiça nunca investigou a fundo esses
investimentos, nem os vínculos dos Pinochet Hiriart com narcotráfico. Quem
chegou mais perto disso foi o juiz Sergio Muñoz, quando estava no comando do
Caso Riggs. No processo, há um anexo contendo um relatório secreto do DEA, ao
qual CIPER teve acesso, que menciona os filhos de Pinochet. No mesmo anexo, há
evidências que indicam que, durante a ditadura, o Complexo Químico do Exército
vendeu éter — usado para refinar cocaína — para narcotraficantes.
O relatório confidencial do DEA oferece indícios
das conexões dos Pinochet com narcotraficantes. O documento afirma, por
exemplo, que Augusto Pinochet Ugarte autorizou um contrabando de cocaína para
os Estados Unidos em 1975. O relatório também traz o depoimento de Ivan
Frankell Baramdyka, um narcotraficante norte americano que chegou ao Chile em
1985 sob a identidade falsa de Trinidad Moreno e que criou uma empresa
pesqueira em sociedade com um ex-funcionário do Consulado do Chile em Los
Angeles, na Califórnia. Não se trata de um narcotraficante qualquer. Em um
processo judicial nos Estados Unidos, ele foi acusado de traficar 1.500 quilos
de cocaína do México para o país. Em depoimentos judiciais e entrevistas à
imprensa, Baramdyka afirmou fazer parte de uma rede de narcotráfico na qual
estava envolvido também um dos filhos de Pinochet e altos oficiais das Forças
Armadas chilenas.
O documento da DEA também fala sobre os vínculos
dos Pinochet Hiriart com o grupo que controlava a Focus, que incluía Christian
e Álex Jacob Neder, filhos do general da Força Aérea Chilena Elias Jacob Helo,
que chegou a ser diretor de saúde da Força Aérea. Os papéis afirmam que “em
1991, Jacob foi identificado como consumidor de cocaína e, em 2000, registrado
como traficante de narcóticos”.
Outro tema que a Justiça não investigou em
profundidade é o do tráfico de armas. Augusto Pinochet Hiriart declarou no caso
Riggs que viajou até a Líbia para fechar um negócio relacionado com Adnan
Khashoggi, o traficante de armas cujo filho era representado no Chile por
Edgardo Bathich, fundador da Focus. Nas contas da empresa, o CIPER encontrou
uma nota que indica que foram destinados 6 mil dólares para bancar uma viagem
de Augusto Pinochet Hiriart à Líbia. Além disso, no processo judicial que
investigou os crimes tributários da Focus, consta nos anexos uma denúncia
anônima endereçada à pessoa que dirigia a audiência, o juiz Humberto
Villavicencio, já falecido. A carta relata que, nos galpões da Focus
localizados em La Cisterna, eram fabricadas armas destinadas aos líbios.
Segundo a denúncia, a cargo deste projeto estaria
Fritz Dreyer Hansen, engenheiro da aeronáutica que chegou a ser general de
brigada das Forças Aéreas Chilenas durante a ditadura. Em 1980, Dreyer projetou
o T-35 Pillán, um avião de treinamento usado pelas Forças Aéreas. Nos registros
de contabilidade da Focus, encontramos gastos associados ao “Projeto Fritz
Dreyer”, que incluem viagens à Europa e à África, além de compras com a Famae.
Há mais informações em outros processos judiciais e
documentos desconfidencializados dos Estados Unidos. Em 2006, o ex-chefe da DINA
Manuel Contreras denunciou o envolvimento dos filhos de Pinochet com o
narcotráfico. No entanto, como à época ele já não tinha mais poder e procurava
conseguir um melhor acordo com a Justiça, suas palavras não tiveram impacto. A
informação que surge agora indica que, 17 anos antes, em 1989, ele entregou as
mesmas informações de maneira reservada à Embaixada dos Estados Unidos. Na
ocasião, Contreras disse que um dos filhos de Pinochet e Armando Fernández
Larios, um ex-agente da DINA que participou do atentado contra Orlando
Letelier, ex-ministro do governo Allende e ativista contra a ditadura chilena,
e que hoje vive em Miami sob um programa de proteção a testemunhas, tinham
vínculos com o narcotráfico.
E tem mais. Entre o final dos anos 1980 e início
dos anos 1990, operava no Chile uma rede de narcotráfico peruana que tinha
ligação direta com Eugenio Berríos, um químico da DINA que produzia gás sarin e
outras armas químicas para o regime. O advogado que criou e reformulou as
empresas que os peruanos usaram para dar uma aparência legal a seus negócios no
Chile era do escritório de Ambrosio Rodríguez, o mesmo advogado de confiança
dos Pinochet Hiriart que aparece como mediador do acordo entre os investidores
da Focus em Ibiza. Na ocasião dos 50 anos do golpe do Chile, a história do
ex-agente Eugenio Berríos e suas conexões com o narcotráfico foi reconstituída
em um podcast produzido pelo Centro de Investigações e Projetos Jornalísticos
da Universidade Diego Portales.
Esse não é o único fato que conecta os narcotraficantes
peruanos e os donos da Focus. Um oficial dos Carabineros, Marcelo Vargas Goas,
que conhecia Bathich desde a juventude, tinha relações com ambos os grupos:
comprava caminhões da Focus e mantinha amizade com os peruanos desde que
participou de uma operação de apreensão de cocaína que os visou. Também aparece
na trama outro homem vinculado aos órgão de segurança da ditadura: Raúl
Contreras Salas, que deixou o trabalho de guarda costas de Ambrosio Rodríguez,
com salário pago pela CNI, para se tornar chefe de segurança de uma das
empresas do líder do grupo criminoso peruano. Quando o mesmo grupo foi
dissolvido, Contreras foi trabalhar para a família Edwards, proprietária do
jornal El Mercúrio.
Esta reportagem é resultado de uma investigação
jornalística de mais de cinco meses. Foram analisados documentos e bancos de
dados de órgãos de Justiça no Chile, Peru, Colômbia, Canadá, Estados Unidos,
Panamá e Espanha. Também tivemos acesso aos registros de oito processos do
antigo sistema de justiça chileno, que somam dezenas de milhares de páginas com
informações que, ao serem cruzadas, nos permitiram encontrar os rastros
deixados por grandes traficantes de drogas e de armas cujos negócios incluíam
os filhos de Pinochet. Reunimos documentos de nove serviços de registros de
imóveis do país, o que nos permitiu descobrir as propriedades ligadas aos
protagonistas desta história. Também montamos um mapa com mais de 50 empresas
que evidencia a relação entre os personagens. Além disso, realizamos dezenas de
entrevistas e nos apoiamos em um arquivo de imprensa que abrange um período de
mais de 40 anos.
·
Relações perigosas
Nos registros de contabilidade da Focus Chile,
aparece duas vezes o sobrenome Pinochet. O primeiro se refere a um empréstimo
de 20 mil dólares a Marco Antonio Pinochet Hiriart, o mais novo dos dois filhos
homens do ditador. A dívida é datada de 20 de outubro de 1989, dois meses antes
da criação formal da Focus Chile, e aparece vinculada a uma conta do Citibank
de Edgardo Bathich no exterior.
Nos anos 1990, diversos artigos da imprensa
afirmaram que Bathich e Pinochet Hiriart eram sócios, mas eles sempre negaram.
“Que relação você tinha com os filhos do general Pinochet?”, perguntou o
jornalista Manuel Salazar a Bathich em seu livro “Traficantes & lavadores“.
Na entrevista reproduzida pelo jornal El Mercurio, aparece a resposta: “Sempre
via Marco Antonio Pinochet nos mesmos lugares que costumávamos frequentar, na
vida social. Íamos nas mesmas boates ou festas, mas daí a afirmar que éramos
sócios como fez a imprensa, quem dera, mas acho que nunca nem falamos de
négocios”.
Marco Antonio Pinochet falou sobre sua relação com
Bathich no depoimento que deu em junho de 2003 no caso do desaparecimento e
assassinato de Eugenio Berríos, o químico da DINA: “Devo dizer que, de fato,
conheci Edgardo Bathich Villarroel em 1988 em lugares públicos, como a
discoteca ‘Gente’. Depois, viajamos juntos para um concurso de beleza na cidade
de Punta del Este, no Uruguai, e outra vez nos encontramos em Miami, nos
Estados Unidos. No entanto, sobre a pergunta que me fizeram, nunca tive nenhuma
relação comercial com essa pessoa. Uma vez, Edgardo Bathich comprou por
importação direta uma lancha da marca Chaparral, da qual eu era representante
no Chile.”
O que Marco Antonio Pinochet não mencionou nessa
declaração é que as lanchas Chaparral, que ele representava, eram vendidas nas
dependências da Focus, como mostram anúncios publicados em jornais, que foram
registrados no livro “La Delgada Línea Blanca”, dos jornalistas Rodrigo de
Castro e Juan Gasparin.
Alex Jacob Neder, um dos diretores da Focus e filho
do general da Força Aérea Chilena Elias Jacob Helo, declarou em desdobramento
do Caso Riggs que investigou a relação dos Pinochet com o narcotráfico: “Com
relação a Marco Antonio Pinochet, de fato, eu o vi em umas quatro oportunidades
com Edgardo Batich, de quem era amigo e tinham negócios em comum, em particular
um negócio referente a lanchas Chaparral. Pelo que sei, Marco Antonio Pinochet
ficou com o negócio.”
Diversos ex-funcionários da casa de luxo que
Bathich construiu no Lago Rapel disseram ao CIPER que, no final dos anos 80,
era comum ver o chefe chegar de helicóptero ao local acompanhado de Marco
Antonio Pinochet. Um dos ex-funcionários, Bernardo Cornejo, que foi prefeito de
Litueche pelo Partido Democrata Cristão entre 2004 e 2012, e depois Conselheiro
Regional até 2022, acrescentou que a informação que eles tinham era de que o
terreno em Rapel era de Bathich e de Pinochet.
“Eu trabalhava na manutenção do sistema elétrico e
também cuidando das lanchas e dos veículos aquáticos. E quem eu via lá às vezes
era Marco Antonio Pinochet. O conheci pessoalmente. Entre os funcionários,
comentavam que ele era sócio de Edgar na propriedade desse terreno em Rapel,
mas eu não tenho certeza disso. Os dois quase sempre chegavam de helicóptero.
Era uma propriedade bastante grande comparada com as outras que existiam
naquela área. Era uma península que depois cortaram e transformaram em uma
pequena ilha. Eu saí desse trabalho por questões políticas. Edgardo Bathich uma
vez me falou ‘vou ter que te demitir, apesar de estar bastante satisfeito com o
seu trabalho, mas aqui tem o filho do general e todo mundo diz que você é dos[
que vão votar] ‘Não’. Aí me demitiram, isso foi antes do plebiscito chileno de
1988”, contou Cornejo ao CIPER.
Nem Edgardo Bathich nem Marco Antonio Pinochet
quiseram responder às perguntas enviadas pela reportagem por carta em 2 de
setembro. Também não tivemos retorno de Augusto Pinochet Hiriart, filho mais
velho do general Pinochet, que também aparece na contabilidade da Focus Chile
em uma anotação que indica “viagem Líbia”. O gasto, de 6 mil dólares, não tem
data.
Algumas pistas sobre essa viagem aparecem no
processo do Caso Riggs. Em depoimento em 3 de agosto de 2004, Augusto Pinochet
filho relacionou sua viagem à Líbia aos negócios da Valmoval, fabricante de
fuzis que ele vendeu ao Exército e que esteve na origem do caso dos
“pinocheques” nos anos 1990: “Fui eu que viajei para a Líbia, e foi o irmão do
meio do Kadaffi (sic), que cuidava da parte econômica, que aprovou isso. O
senhor Kashoggi, que eu tinha conhecido em Los Angeles, que era muito procurado
e tinha uns negócios relacionados a suprimentos para o Exército dos EUA, ele
abastecia a costa do Pacífico, o Sr. Kashoggi vendia armamentos que dos Estados
Unidos (sic). Kashoggi tinha relações com Kadaffi.”
A declaração não especifica os negócios com
Kashoggi faz referência a Adnan, o traficante de armas, ou a seu filho Mohamed,
que era representado no Chile por Edgardo Bathich.
Esses vínculos dos Pinochet Hiriart com Edgardo
Bathich e com o grupo de narcotraficantes e vendedores de armas que girava em
torno dos negócios da Focus Chile foram alertados pela DEA dos Estados Unidos.
Essas conexões são evidenciadas na análise de um relatório secreto da agência
ao qual o CIPER teve acesso para esta investigação.
·
Os Pinochet no radar da DEA
O relatório de 15 páginas da DEA foi entregue à
Direção Nacional de Combate às Drogas da Polícia de Investigações (PDI) do
Chile. Em julho de 2004, o então agente oficial da DEA no Chile, James
Kuykendall, se reuniu com o juiz Sergio Muñoz, que tocava o caso Riggs, para
oferecer ajuda. Disse que a DEA tinha informações sobre o desvio de produtos
químicos para a fabricação de drogas na Bolívia, sobre a participação de
cidadãos chilenos nessas atividades desde os anos 1970 e sobre as pessoas
investigadas no caso, entre eles os filhos de Pinochet
O relatório chegou no final de 2004, e a PDI o
encaminhou ao juiz Muñoz em 22 de dezembro. A DEA não queria que a origem da
informação fosse atribuída à agência. Todas as informações contidas no
documento foram consideradas extremamente sensíveis e haviam permanecido em
sigilo até agora.
Nele são detalhados os possíveis vínculos dos
Pinochet com o narcotráfico. O documento enumera todos os indícios compilados
pela DEA, tirados de fontes abertas, como matérias da imprensa, e também
coletados por seus agentes. Entre esses dados está, por exemplo, a informação
de que, em 1975, Augusto Pinochet Ugarte autorizou um narcotraficante a enviar
cocaína para os Estados Unidos. Também é informado que um parente de um alto
executivo da empresa Sociedad Química y Minera de Chile (SQM) “foi alegadamente
identificado como narcotraficante em 1996, no entanto, não há mais informações
a respeito”. Esse executivo era um homem de confiança de Julio Ponce Lerou,
ex-genro de Augusto Pinochet que foi casado com Verónica Pinochet Hiriart. Esta
última foi sócia do homem indicado pela DEA, de acordo com registros de 1980
analisados pelo CIPER.
Trata-se de indícios obtidos pela DEA, que
acompanhava as atividades da família Pinochet, mas que não foram aprofundados.
Assim informa o relatório: “As informações que estão sendo compartilhadas são
de natureza histórica e a maior parte delas tem origem no período de 1970 a
1980. Nada foi feito para verificar essas informações.”
O pedido de confidencialidade feito pela agência
dos EUA ficou registrado em outro documento: “Compartilham-se essas informações
com o entendimento de que não devem ser atribuídas a uma fonte específica,
exceto dentro dos meios governamentais”.
Sobre Edgardo Bathich, a DEA afirmou que “em 1991,
Bathich é alegadamente consumidor de cocaína e traficante de armas. Preso em
1992 em Madrid, Espanha, junto a Monzer Al Kassar em posse de múltiplos gramas
de cocaína.” Enquanto é fato que Bathich foi preso junto a Al Kassar quando
aterrissaram em Madrid em um voo proveniente de Viena, CIPER não conseguiu
confirmar se foi encontrada cocaína em sua posse no momento da detenção.
Outra pessoa de que se tem informações é Hugo
Marambio Arellano, sócio de Marcelo Townsend Pinochet, primo dos Pinochet
Hiriart. O relatório da DEA aponta: “Em 1992, foi identificado como sócio de
uma companhia de transporte marítimo. Em 1997, foi identificado como o proprietário
de uma embarcação apreendida com cinco toneladas de cocaína. Em 1998, foi preso
no Chile por conspiração relacionada a cocaína e lavagem de dinheiro junto com
Manuel Losada.” Há evidências disso na imprensa e nos documentos judiciais.
O empresário Manuel Losada foi condenado no
processo judicial depois que o navio Harbour foi interceptado na baía de
Guantánamo com cinco toneladas de cocaína colombiana.
Isto não aparece no relatório da DEA mas é um dado
relevante: Hugo Marambio Arellano era sócio do primo dos Pinochet Hiriart em
empresas ligadas ao transporte marítimo. Marcelo Townsend Pinochet, filho de
María Inés Pinochet Ugarte compartilhava com Marambio a propriedade da
Proveedora de Naves y Servicios Marítimos Limitada e Agencias Marítimas Internationales
Limitada.
Gonzalo Townsend Pinochet, outro sobrinho de
Augusto Pinochet, também aparece no relatório da DEA, figurando em uma lista de
pessoas identificadas pela agência como “distribuidoras de cloridrato de
cocaína na Quinta Região [região de Valparaíso] e Santiago”. O relatório faz
referência a informações levantadas pela Brigada Antinarcóticos de Valparaíso
da PDI em 1997. Ao CIPER, Gonzalo Townsend negou qualquer envolvimento com o
narcotráfico. Em novembro de 2004, seu filho e sua ex-mulher foram detidos por
Carabineiros com dois quilos de cocaína e 56 plantas de maconha, “além de cerca
de três milhões de pesos em dinheiro, joias, um carro com o qual vendiam a
droga e uma pistola com munição”, de acordo com reportagem da época do jornal
El Mercúrio.
Apesar de o caso Riggs ter sido o processo que
chegou mais perto de verificar indícios dos vínculos dos Pinochet com
traficantes de drogas e de armas, não houve acusações formais. O que o juiz
Muñoz buscava era a origem dos milhões de dólares que os Pinochet mantinham
ocultos. Apenas uma parte dessa fortuna foi descoberta quando foram detectadas
as contas que a família tinha em diferentes agências do Banco Riggs, nos
Estados Unidos.
A investigação do caso Riggs conseguiu comprovar
que insumos usados na fabricação de drogas eram vendidos sem controle do
Complexo Químico do Exército em Talagante, na região metropolitana de Santiago,
para narcotraficantes nos anos 1980. A informação também havia permanecido sob
sigilo.
·
Éter do exército para o
narco
Em 1993, o narcotraficante dos EUA de origem
colombiana Frankell Ivan Baramdyka já havia adiantado a informação: insumos do
Complexo Químico do Exército que são usados para refinar a cocaína estavam
sendo vendidos, sem nenhum tipo de registro, para narcotraficantes. Ele
acrescentou ainda que havia feito parte dessa operação, que contava com a
colaboração de uma rede formada por altos generais das Forças Armadas, da CNI,
de Bathich e de um dos filhos de Pinochet, a qual exportava cocaína para a
Europa nos mesmos voos que transportavam armas da Famae (Fábricas y Maestranzas
del Ejército de Chile) e do traficante de armas chileno Carlos Cardoen.
Baramdyka fez essas revelações em uma entrevista concedida ao então diretor da
revista Análisis, Rodrigo de Castro.
Extraditado do Chile, Baramdyka retornou aos
Estados Unidos em 1993 para enfrentar acusações de contrabando de 1.500 quilos
de coca para o país. A investigação comandada por Muñoz comprovou pelo menos
uma parte da denúncia. As informações estão registradas em um dossiê especial
do Caso Riggs, cujos documentos podem ser acessados pela ferramenta de busca
online “Papeles de la Dictadura”, iniciativa desenvolvida pelo CIPER com a
colaboração do Centro de Investigación y Proyectos Periodísticos da
Universidade Diego Portales na ocasião dos 50 anos do golpe de Estado no Chile.
O Complexo Químico do Exército produzia éter para a
fabricação de pólvora. Já os narcos precisavam do produto para refinar a
cocaína. Nos anos 1980, apenas essa instalação militar tinha permissão para
produzir éter no Chile.
Em depoimento aos investigadores da PDI, Hérnán
Velásquez Mulatti, brigadeiro do Exército chileno, declarou que assumiu o
comando do Complexo Químico em fevereiro de 1985. Ele ficou no cargo até
fevereiro de 1987, quando foi substituído pelo coronel Gerardo Huber (envolvido
no tráfico de armas para a Croácia, assassinado em 1992). A primeira luz de
alerta foi acesa durante o depoimento de Velásquez Mulatti ao juiz Muñoz:
“Quanto aos nossos clientes, eram principalmente o
Exército e clientes do setor privado. Quanto à produção de Éter, eram
aproximadamente uns mil litros por mês, e [sobre] os clientes que o compravam,
me chamou muito a atenção que a venda desse produto não tinha nenhum controle,
era vendido para qualquer pessoa, inclusive notei que elas vinham até da
Bolívia”, declarou Mulatti. Ele acrescentou que chamou o Departamento de Drogas
dos Carabineros, que foram até as instalações em Talagante junto com agentes da
DEA. Os agentes pediram para que fossem registrados os compradores de éter,
anotando seus nomes e as placas dos veículos.
Em março de 2005, os investigadores que trabalhavam
junto ao juiz Muñoz solicitaram ao gerente da Divisão Química do complexo de
Talagante, o então coronel do Exército Patricio Garín, todos os registros
anteriores a 1986 sobre a produção de éter, além dos registros contábeis de
cada venda, mas o coronel respondeu que esses documentos não existiam.
Segundo um relatório da PDI apresentado no caso, o
Complexo Químico do Exército produzia anualmente cerca de 6 mil litros de éter
para ser vendidos para civis, com exceção dos anos de 1984 e 1985, quando foram
produzidos 12 e 20 mil litros respectivamente. A investigação conseguiu
determinar que, em meados dos anos 80, 20 mil litros foram vendidos para um
cidadão boliviano que os transportou em caminhões até a cidade portuária de
Arica utilizando intermediadores, e que, em seguida, a carga foi interceptada
pela polícia boliviana junto com a DEA, que a confiscou.
Fonte: Por Nicolás Sepúlveda e Benjamín Miranda, da
Agência Pública
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