terça-feira, 26 de setembro de 2023

Os documentos que mostram as conexões dos filhos de Pinochet com o narcotráfico

Quando a ditadura chilena chegava aos seus últimos dias, os interesses dos dois traficantes de armas mais poderosos do mundo e de proeminentes narcotraficantes que levavam cocaína para a Europa e os Estados Unidos convergiram na capital Santiago. Como personagens inesperados dessa história, figuraram também os filhos de Augusto Pinochet Ugarte, o general que se preparava para entregar o poder depois de 17 anos de governo. Além deles, havia também um assessor que integrava o círculo mais íntimo da família do ditador, alguns dirigentes da Diretoria de Inteligência Nacional (DINA) —  a polícia política do regime chileno — e da Central Nacional de Informações (CNI), além do irmão de um dos fundadores do partido de direita União Democrática Independente (UDI).

Até hoje, os filhos de Pinochet sempre negaram sua participação na empresa de Edgardo Bathich, a Focus Chile. Entre os controladores da empresa — que montava caminhões com peças de segunda mão importadas da Europa —, figurava o maior narcotraficante até então na Espanha, Firmino Tavares, que foi condenado em 2001 por tentativa de lavar mais de 20 milhões de dólares provenientes do narcotráfico; e os Ochoa Galvis, uma família colombiana investigada pela DEA (órgão federal de repressão e controle de narcóticos dos Estados Unidos) por tráfico de cocaína e lavagem de dinheiro. Fora isso, o capital investido por Bathich na empresa veio de Mohamed Khashoggi, filho de Adnan Khashoggi, o maior traficante de armas da época, considerado o homem mais rico do mundo na década de 1980.

Bathich não só era o representante dos interesses de Khashoggi no Chile como também tinha parentesco com Monzer Al Kassar, outro protagonista do comércio ilegal de armas no final da guerra fria.

O CIPER teve acesso à contabilidade da Focus, onde encontrou indícios que ligam os irmãos Marco Antonio e Augusto Pinochet Hiriart aos donos da empresa.

Mas eles não foram as únicas pessoas ligadas ao regime militar a participar dessa história. Também teve um papel Ambrosio Rodríguez, o advogado de confiança de Augusto Pinochet e Lucía Hiriart, que exerceu a função de Procurador da República, cargo que o ditador criou. A proximidade de Rodriguez com o casal era tamanha que a esposa do ditador chileno o encarregou de realizar com urgência a sua separação de bens quando estourou o caso Riggs, para proteger os bens que poderiam ser confiscados pela justiça.

Um advogado do escritório de Rodríguez abriu empresas para narcotraficantes que depois foram processados criminalmente no Chile e na Europa. Mas o fato mais relevante é que Rodríguez contava com a confiança total dos traficantes que controlavam a Focus, a ponto de ser designado por eles como mediador em um acordo assinado em Ibiza, na Espanha, quando os “investidores”, já investigados pela Justiça, tiveram desentendimentos no momento de repartir o patrimônio da companhia.

Outro personagem da trama era o advogado Héctor Novoa Vásquez, irmão de Jovino Novoa, ex-senador e presidente da UDI que foi Subsecretário Geral de Governo durante a ditadura. Héctor Novoa foi o advogado que estruturou a organização empresarial com base no Panamá, para que os sócios da Focus pudessem ter controle dos negócios por meio de ações ao portador, que são títulos que escondem a identidade dos proprietários finais de uma empresa. Novoa realizou essa gestão enquanto membro do escritório de advocacia Eluchans y Compañía, de Edmundo Eluchans, ex-presidente da Câmara de Deputados e atual membro do Conselho Constituinte do Chile.

Héctor Novoa também era diretor do Banco O’Higgins, onde os donos da Focus tinham as contas em que depositaram pelo menos 5,7 milhões de dólares transferidos do exterior para financiar a empresa e para comprar mais de 30 propriedades em diferentes regiões do Chile. Os trâmites para trazer o dinheiro para o país também foram realizados por Novoa. Entre as propriedades adquiridas pelos sócios da Focus, estão diversas casas de luxo em Lo Barnechea, na região metropolitana de Santiago, e Rapel, um balneário turístico no verão. Com o dinheiro das empresas panamenhas, também investiram em uma casa noturna chamada Alive, na Avenida El Bosque, no bairro de Providencia — ponto de encontro das “noitadas” do círculo próximo do regime. O mesmo grupo de investidores também chegou a controlar empresas agrícolas, apícolas, de pesca, de transporte e de embalagens. Algumas delas continuam ativas.

A Justiça nunca investigou a fundo esses investimentos, nem os vínculos dos Pinochet Hiriart com narcotráfico. Quem chegou mais perto disso foi o juiz Sergio Muñoz, quando estava no comando do Caso Riggs. No processo, há um anexo contendo um relatório secreto do DEA, ao qual CIPER teve acesso, que menciona os filhos de Pinochet. No mesmo anexo, há evidências que indicam que, durante a ditadura, o Complexo Químico do Exército vendeu éter — usado para refinar cocaína —  para narcotraficantes.

O relatório confidencial do DEA oferece indícios das conexões dos Pinochet com narcotraficantes. O documento afirma, por exemplo, que Augusto Pinochet Ugarte autorizou um contrabando de cocaína para os Estados Unidos em 1975. O relatório também traz o depoimento de Ivan Frankell Baramdyka, um narcotraficante norte americano que chegou ao Chile em 1985 sob a identidade falsa de Trinidad Moreno e que criou uma empresa pesqueira em sociedade com um ex-funcionário do Consulado do Chile em Los Angeles, na Califórnia. Não se trata de um narcotraficante qualquer. Em um processo judicial nos Estados Unidos, ele foi acusado de traficar 1.500 quilos de cocaína do México para o país. Em depoimentos judiciais e entrevistas à imprensa, Baramdyka afirmou fazer parte de uma rede de narcotráfico na qual estava envolvido também um dos filhos de Pinochet e altos oficiais das Forças Armadas chilenas.

O documento da DEA também fala sobre os vínculos dos Pinochet Hiriart com o grupo que controlava a Focus, que incluía Christian e Álex Jacob Neder, filhos do general da Força Aérea Chilena Elias Jacob Helo, que chegou a ser diretor de saúde da Força Aérea. Os papéis afirmam que “em 1991, Jacob foi identificado como consumidor de cocaína e, em 2000, registrado como traficante de narcóticos”.

Outro tema que a Justiça não investigou em profundidade é o do tráfico de armas. Augusto Pinochet Hiriart declarou no caso Riggs que viajou até a Líbia para fechar um negócio relacionado com Adnan Khashoggi, o traficante de armas cujo filho era representado no Chile por Edgardo Bathich, fundador da Focus. Nas contas da empresa, o CIPER encontrou uma nota que indica que foram destinados 6 mil dólares para bancar uma viagem de Augusto Pinochet Hiriart à Líbia. Além disso, no processo judicial que investigou os crimes tributários da Focus, consta nos anexos uma denúncia anônima endereçada à pessoa que dirigia a audiência, o juiz Humberto Villavicencio, já falecido. A carta relata que, nos galpões da Focus localizados em La Cisterna, eram fabricadas armas destinadas aos líbios.

Segundo a denúncia, a cargo deste projeto estaria Fritz Dreyer Hansen, engenheiro da aeronáutica que chegou a ser general de brigada das Forças Aéreas Chilenas durante a ditadura. Em 1980, Dreyer projetou o T-35 Pillán, um avião de treinamento usado pelas Forças Aéreas. Nos registros de contabilidade da Focus, encontramos gastos associados ao “Projeto Fritz Dreyer”, que incluem viagens à Europa e à África, além de compras com a Famae.

Há mais informações em outros processos judiciais e documentos desconfidencializados dos Estados Unidos. Em 2006, o ex-chefe da DINA Manuel Contreras denunciou o envolvimento dos filhos de Pinochet com o narcotráfico. No entanto, como à época ele já não tinha mais poder e procurava conseguir um melhor acordo com a Justiça, suas palavras não tiveram impacto. A informação que surge agora indica que, 17 anos antes, em 1989, ele entregou as mesmas informações de maneira reservada à Embaixada dos Estados Unidos. Na ocasião, Contreras disse que um dos filhos de Pinochet e Armando Fernández Larios, um ex-agente da DINA que participou do atentado contra Orlando Letelier, ex-ministro do governo Allende e ativista contra a ditadura chilena, e que hoje vive em Miami sob um programa de proteção a testemunhas, tinham vínculos com o narcotráfico.

E tem mais. Entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, operava no Chile uma rede de narcotráfico peruana que tinha ligação direta com Eugenio Berríos, um químico da DINA que produzia gás sarin e outras armas químicas para o regime. O advogado que criou e reformulou as empresas que os peruanos usaram para dar uma aparência legal a seus negócios no Chile era do escritório de Ambrosio Rodríguez, o mesmo advogado de confiança dos Pinochet Hiriart que aparece como mediador do acordo entre os investidores da Focus em Ibiza. Na ocasião dos 50 anos do golpe do Chile, a história do ex-agente Eugenio Berríos e suas conexões com o narcotráfico foi reconstituída em um podcast produzido pelo Centro de Investigações e Projetos Jornalísticos da Universidade Diego Portales.

Esse não é o único fato que conecta os narcotraficantes peruanos e os donos da Focus. Um oficial dos Carabineros, Marcelo Vargas Goas, que conhecia Bathich desde a juventude, tinha relações com ambos os grupos: comprava caminhões da Focus e mantinha amizade com os peruanos desde que participou de uma operação de apreensão de cocaína que os visou. Também aparece na trama outro homem vinculado aos órgão de segurança da ditadura: Raúl Contreras Salas, que deixou o trabalho de guarda costas de Ambrosio Rodríguez, com salário pago pela CNI, para se tornar chefe de segurança de uma das empresas do líder do grupo criminoso peruano. Quando o mesmo grupo foi dissolvido, Contreras foi trabalhar para a família Edwards, proprietária do jornal El Mercúrio.

Esta reportagem é resultado de uma investigação jornalística de mais de cinco meses. Foram analisados documentos e bancos de dados de órgãos de Justiça no Chile, Peru, Colômbia, Canadá, Estados Unidos, Panamá e Espanha. Também tivemos acesso aos registros de oito processos do antigo sistema de justiça chileno, que somam dezenas de milhares de páginas com informações que, ao serem cruzadas, nos permitiram encontrar os rastros deixados por grandes traficantes de drogas e de armas cujos negócios incluíam os filhos de Pinochet. Reunimos documentos de nove serviços de registros de imóveis do país, o que nos permitiu descobrir as propriedades ligadas aos protagonistas desta história. Também montamos um mapa com mais de 50 empresas que evidencia a relação entre os personagens. Além disso, realizamos dezenas de entrevistas e nos apoiamos em um arquivo de imprensa que abrange um período de mais de 40 anos.

·         Relações perigosas

Nos registros de contabilidade da Focus Chile, aparece duas vezes o sobrenome Pinochet. O primeiro se refere a um empréstimo de 20 mil dólares a Marco Antonio Pinochet Hiriart, o mais novo dos dois filhos homens do ditador. A dívida é datada de 20 de outubro de 1989, dois meses antes da criação formal da Focus Chile, e aparece vinculada a uma conta do Citibank de Edgardo Bathich no exterior.

Nos anos 1990, diversos artigos da imprensa afirmaram que Bathich e Pinochet Hiriart eram sócios, mas eles sempre negaram. “Que relação você tinha com os filhos do general Pinochet?”, perguntou o jornalista Manuel Salazar a Bathich em seu livro “Traficantes & lavadores“. Na entrevista reproduzida pelo jornal El Mercurio, aparece a resposta: “Sempre via Marco Antonio Pinochet nos mesmos lugares que costumávamos frequentar, na vida social. Íamos nas mesmas boates ou festas, mas daí a afirmar que éramos sócios como fez a imprensa, quem dera, mas acho que nunca nem falamos de négocios”.

Marco Antonio Pinochet falou sobre sua relação com Bathich no depoimento que deu em junho de 2003 no caso do desaparecimento e assassinato de Eugenio Berríos, o químico da DINA: “Devo dizer que, de fato, conheci Edgardo Bathich Villarroel em 1988 em lugares públicos, como a discoteca ‘Gente’. Depois, viajamos juntos para um concurso de beleza na cidade de Punta del Este, no Uruguai, e outra vez nos encontramos em Miami, nos Estados Unidos. No entanto, sobre a pergunta que me fizeram, nunca tive nenhuma relação comercial com essa pessoa. Uma vez, Edgardo Bathich comprou por importação direta uma lancha da marca Chaparral, da qual eu era representante no Chile.”

O que Marco Antonio Pinochet não mencionou nessa declaração é que as lanchas Chaparral, que ele representava, eram vendidas nas dependências da Focus, como mostram anúncios publicados em jornais, que foram registrados no livro “La Delgada Línea Blanca”, dos jornalistas Rodrigo de Castro e Juan Gasparin.

Alex Jacob Neder, um dos diretores da Focus e filho do general da Força Aérea Chilena Elias Jacob Helo, declarou em desdobramento do Caso Riggs que investigou a relação dos Pinochet com o narcotráfico: “Com relação a Marco Antonio Pinochet, de fato, eu o vi em umas quatro oportunidades com Edgardo Batich, de quem era amigo e tinham negócios em comum, em particular um negócio referente a lanchas Chaparral. Pelo que sei, Marco Antonio Pinochet ficou com o negócio.”

Diversos ex-funcionários da casa de luxo que Bathich construiu no Lago Rapel disseram ao CIPER que, no final dos anos 80, era comum ver o chefe chegar de helicóptero ao local acompanhado de Marco Antonio Pinochet. Um dos ex-funcionários, Bernardo Cornejo, que foi prefeito de Litueche pelo Partido Democrata Cristão entre 2004 e 2012, e depois Conselheiro Regional até 2022, acrescentou que a informação que eles tinham era de que o terreno em Rapel era de Bathich e de Pinochet.

“Eu trabalhava na manutenção do sistema elétrico e também cuidando das lanchas e dos veículos aquáticos. E quem eu via lá às vezes era Marco Antonio Pinochet. O conheci pessoalmente. Entre os funcionários, comentavam que ele era sócio de Edgar na propriedade desse terreno em Rapel, mas eu não tenho certeza disso. Os dois quase sempre chegavam de helicóptero. Era uma propriedade bastante grande comparada com as outras que existiam naquela área. Era uma península que depois cortaram e transformaram em uma pequena ilha. Eu saí desse trabalho por questões políticas. Edgardo Bathich uma vez me falou ‘vou ter que te demitir, apesar de estar bastante satisfeito com o seu trabalho, mas aqui tem o filho do general e todo mundo diz que você é dos[ que vão votar] ‘Não’. Aí me demitiram, isso foi antes do plebiscito chileno de 1988”, contou Cornejo ao CIPER.

Nem Edgardo Bathich nem Marco Antonio Pinochet quiseram responder às perguntas enviadas pela reportagem por carta em 2 de setembro. Também não tivemos retorno de Augusto Pinochet Hiriart, filho mais velho do general Pinochet, que também aparece na contabilidade da Focus Chile em uma anotação que indica “viagem Líbia”. O gasto, de 6 mil dólares, não tem data.

Algumas pistas sobre essa viagem aparecem no processo do Caso Riggs. Em depoimento em 3 de agosto de 2004, Augusto Pinochet filho relacionou sua viagem à Líbia aos negócios da Valmoval, fabricante de fuzis que ele vendeu ao Exército e que esteve na origem do caso dos “pinocheques” nos anos 1990: “Fui eu que viajei para a Líbia, e foi o irmão do meio do Kadaffi (sic), que cuidava da parte econômica, que aprovou isso. O senhor Kashoggi, que eu tinha conhecido em Los Angeles, que era muito procurado e tinha uns negócios relacionados a suprimentos para o Exército dos EUA, ele abastecia a costa do Pacífico, o Sr. Kashoggi vendia armamentos que dos Estados Unidos (sic). Kashoggi tinha relações com Kadaffi.”

A declaração não especifica os negócios com Kashoggi faz referência a Adnan, o traficante de armas, ou a seu filho Mohamed, que era representado no Chile por Edgardo Bathich.

Esses vínculos dos Pinochet Hiriart com Edgardo Bathich e com o grupo de narcotraficantes e vendedores de armas que girava em torno dos negócios da Focus Chile foram alertados pela DEA dos Estados Unidos. Essas conexões são evidenciadas na análise de um relatório secreto da agência ao qual o CIPER teve acesso para esta investigação.

·         Os Pinochet no radar da DEA

O relatório de 15 páginas da DEA foi entregue à Direção Nacional de Combate às Drogas da Polícia de Investigações (PDI) do Chile. Em julho de 2004, o então agente oficial da DEA no Chile, James Kuykendall, se reuniu com o juiz Sergio Muñoz, que tocava o caso Riggs, para oferecer ajuda. Disse que a DEA tinha informações sobre o desvio de produtos químicos para a fabricação de drogas na Bolívia, sobre a participação de cidadãos chilenos nessas atividades desde os anos 1970 e sobre as pessoas investigadas no caso, entre eles os filhos de Pinochet

O relatório chegou no final de 2004, e a PDI o encaminhou ao juiz Muñoz em 22 de dezembro. A DEA não queria que a origem da informação fosse atribuída à agência. Todas as informações contidas no documento foram consideradas extremamente sensíveis e haviam permanecido em sigilo até agora.

Nele são detalhados os possíveis vínculos dos Pinochet com o narcotráfico. O documento enumera todos os indícios compilados pela DEA, tirados de fontes abertas, como matérias da imprensa, e também coletados por seus agentes. Entre esses dados está, por exemplo, a informação de que, em 1975, Augusto Pinochet Ugarte autorizou um narcotraficante a enviar cocaína para os Estados Unidos. Também é informado que um parente de um alto executivo da empresa Sociedad Química y Minera de Chile (SQM) “foi alegadamente identificado como narcotraficante em 1996, no entanto, não há mais informações a respeito”. Esse executivo era um homem de confiança de Julio Ponce Lerou, ex-genro de Augusto Pinochet que foi casado com Verónica Pinochet Hiriart. Esta última foi sócia do homem indicado pela DEA, de acordo com registros de 1980 analisados pelo CIPER.

Trata-se de indícios obtidos pela DEA, que acompanhava as atividades da família Pinochet, mas que não foram aprofundados. Assim informa o relatório: “As informações que estão sendo compartilhadas são de natureza histórica e a maior parte delas tem origem no período de 1970 a 1980. Nada foi feito para verificar essas informações.”

O pedido de confidencialidade feito pela agência dos EUA ficou registrado em outro documento: “Compartilham-se essas informações com o entendimento de que não devem ser atribuídas a uma fonte específica, exceto dentro dos meios governamentais”.

Sobre Edgardo Bathich, a DEA afirmou que “em 1991, Bathich é alegadamente consumidor de cocaína e traficante de armas. Preso em 1992 em Madrid, Espanha, junto a Monzer Al Kassar em posse de múltiplos gramas de cocaína.” Enquanto é fato que Bathich foi preso junto a Al Kassar quando aterrissaram em Madrid em um voo proveniente de Viena, CIPER não conseguiu confirmar se foi encontrada cocaína em sua posse no momento da detenção.

Outra pessoa de que se tem informações é Hugo Marambio Arellano, sócio de Marcelo Townsend Pinochet, primo dos Pinochet Hiriart. O relatório da DEA aponta: “Em 1992, foi identificado como sócio de uma companhia de transporte marítimo. Em 1997, foi identificado como o proprietário de uma embarcação apreendida com cinco toneladas de cocaína. Em 1998, foi preso no Chile por conspiração relacionada a cocaína e lavagem de dinheiro junto com Manuel Losada.” Há evidências disso na imprensa e nos documentos judiciais.

O empresário Manuel Losada foi condenado no processo judicial depois que o navio Harbour foi interceptado na baía de Guantánamo com cinco toneladas de cocaína colombiana.

Isto não aparece no relatório da DEA mas é um dado relevante: Hugo Marambio Arellano era sócio do primo dos Pinochet Hiriart em empresas ligadas ao transporte marítimo. Marcelo Townsend Pinochet, filho de María Inés Pinochet Ugarte compartilhava com Marambio a propriedade da Proveedora de Naves y Servicios Marítimos Limitada e Agencias Marítimas Internationales Limitada.

Gonzalo Townsend Pinochet, outro sobrinho de Augusto Pinochet, também aparece no relatório da DEA, figurando em uma lista de pessoas identificadas pela agência como “distribuidoras de cloridrato de cocaína na Quinta Região [região de Valparaíso] e Santiago”. O relatório faz referência a informações levantadas pela Brigada Antinarcóticos de Valparaíso da PDI em 1997. Ao CIPER, Gonzalo Townsend negou qualquer envolvimento com o narcotráfico. Em novembro de 2004, seu filho e sua ex-mulher foram detidos por Carabineiros com dois quilos de cocaína e 56 plantas de maconha, “além de cerca de três milhões de pesos em dinheiro, joias, um carro com o qual vendiam a droga e uma pistola com munição”, de acordo com reportagem da época do jornal El Mercúrio.

Apesar de o caso Riggs ter sido o processo que chegou mais perto de verificar indícios dos vínculos dos Pinochet com traficantes de drogas e de armas, não houve acusações formais. O que o juiz Muñoz buscava era a origem dos milhões de dólares que os Pinochet mantinham ocultos. Apenas uma parte dessa fortuna foi descoberta quando foram detectadas as contas que a família tinha em diferentes agências do Banco Riggs, nos Estados Unidos.

A investigação do caso Riggs conseguiu comprovar que insumos usados na fabricação de drogas eram vendidos sem controle do Complexo Químico do Exército em Talagante, na região metropolitana de Santiago, para narcotraficantes nos anos 1980. A informação também havia permanecido sob sigilo.

·         Éter do exército para o narco

Em 1993, o narcotraficante dos EUA de origem colombiana Frankell Ivan Baramdyka já havia adiantado a informação: insumos do Complexo Químico do Exército que são usados para refinar a cocaína estavam sendo vendidos, sem nenhum tipo de registro, para narcotraficantes. Ele acrescentou ainda que havia feito parte dessa operação, que contava com a colaboração de uma rede formada por altos generais das Forças Armadas, da CNI, de Bathich e de um dos filhos de Pinochet, a qual exportava cocaína para a Europa nos mesmos voos que transportavam armas da Famae (Fábricas y Maestranzas del Ejército de Chile) e do traficante de armas chileno Carlos Cardoen. Baramdyka fez essas revelações em uma entrevista concedida ao então diretor da revista Análisis, Rodrigo de Castro.

Extraditado do Chile, Baramdyka retornou aos Estados Unidos em 1993 para enfrentar acusações de contrabando de 1.500 quilos de coca para o país. A investigação comandada por Muñoz comprovou pelo menos uma parte da denúncia. As informações estão registradas em um dossiê especial do Caso Riggs, cujos documentos podem ser acessados pela ferramenta de busca online “Papeles de la Dictadura”, iniciativa desenvolvida pelo CIPER com a colaboração do Centro de Investigación y Proyectos Periodísticos da Universidade Diego Portales na ocasião dos 50 anos do golpe de Estado no Chile.

O Complexo Químico do Exército produzia éter para a fabricação de pólvora. Já os narcos precisavam do produto para refinar a cocaína. Nos anos 1980, apenas essa instalação militar tinha permissão para produzir éter no Chile.

Em depoimento aos investigadores da PDI, Hérnán Velásquez Mulatti, brigadeiro do Exército chileno, declarou que assumiu o comando do Complexo Químico em fevereiro de 1985. Ele ficou no cargo até fevereiro de 1987, quando foi substituído pelo coronel Gerardo Huber (envolvido no tráfico de armas para a Croácia, assassinado em 1992). A primeira luz de alerta foi acesa durante o depoimento de Velásquez Mulatti ao juiz Muñoz:

“Quanto aos nossos clientes, eram principalmente o Exército e clientes do setor privado. Quanto à produção de Éter, eram aproximadamente uns mil litros por mês, e [sobre] os clientes que o compravam, me chamou muito a atenção que a venda desse produto não tinha nenhum controle, era vendido para qualquer pessoa, inclusive notei que elas vinham até da Bolívia”, declarou Mulatti. Ele acrescentou que chamou o Departamento de Drogas dos Carabineros, que foram até as instalações em Talagante junto com agentes da DEA. Os agentes pediram para que fossem registrados os compradores de éter, anotando seus nomes e as placas dos veículos.

Em março de 2005, os investigadores que trabalhavam junto ao juiz Muñoz solicitaram ao gerente da Divisão Química do complexo de Talagante, o então coronel do Exército Patricio Garín, todos os registros anteriores a 1986 sobre a produção de éter, além dos registros contábeis de cada venda, mas o coronel respondeu que esses documentos não existiam.

Segundo um relatório da PDI apresentado no caso, o Complexo Químico do Exército produzia anualmente cerca de 6 mil litros de éter para ser vendidos para civis, com exceção dos anos de 1984 e 1985, quando foram produzidos 12 e 20 mil litros respectivamente. A investigação conseguiu determinar que, em meados dos anos 80, 20 mil litros foram vendidos para um cidadão boliviano que os transportou em caminhões até a cidade portuária de Arica utilizando intermediadores, e que, em seguida, a carga foi interceptada pela polícia boliviana junto com a DEA, que a confiscou.

 

Fonte: Por Nicolás Sepúlveda e Benjamín Miranda, da Agência Pública

 

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