domingo, 24 de setembro de 2023

Orçamento de Lula reforça desigualdade nos municípios do interior do País

Na última terça-feira, 19, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apontou a desigualdade como o maior desafio do mundo durante o discurso de abertura da Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, porém, o governo do petista tem repetido práticas de distribuição do dinheiro federal do antecessor Jair Bolsonaro e reforçado distorções nos municípios do País.

O município paraense de Cachoeira do Piriá, a 257 quilômetros de Belém, tem a sexta pior renda do País. Em média, cada um dos 19 mil moradores recebe R$ 38,41 por mês. Não é por falta de recursos federais, porém, que a vida é tão difícil no lugar.

Somente no primeiro semestre deste ano, o governo Lula enviou R$ 30 milhões para a prefeitura investir na saúde, na educação e na assistência social. Entretanto, 87% do dinheiro caiu na folha de pagamento do município, pagando inclusive o salário do prefeito e assessores administrativos.

Em junho, apesar dos recursos enviados para Cachoeira do Piriá, o Ministério Público encontrou uma situação precária no posto de saúde de Piçarreira, um dos bairros da cidade paraense. O prédio estava sem pintura e estrutura danificada, com banheiros interditados e uma farmácia sem medicamentos para hipertensão e diabetes. Também não havia local para descarte de materiais contaminados.

No geral, o governo Lula não exigiu contrapartida das prefeituras para os recursos que enviou, repassou dinheiro sem critérios de aplicação e distribuição para demandas da população e cortou verbas destinadas a benefícios sociais, destinados diretamente a famílias, e à educação básica.

Ao mesmo tempo, o presidente está com mais dinheiro para gastar - e escolher onde gastar - em comparação com seus antecessores. Despesas sem avaliação e cada vez mais obscuras, uma marca do mandato de Jair Bolsonaro, no entanto, se repetem agora na distribuição dos recursos federais e se refletem na primeira peça orçamentária encaminhada pelo petista ao Congresso Nacional.

Na série de reportagens especiais "Desigualdade - O Brasil tem jeito?", o Estadão percorreu 2.312 quilômetros, passando por 15 cidades do Distrito Federal, Goiás e Tocantins, para responder por que o País é tão desigual mesmo com tanto dinheiro. Grandes investimentos feitos no passado criaram ilhas de riqueza e bolsões de pobreza em volta. Os municípios recebem cada vez mais repasses federais, mas não têm atacado as principais necessidades da população.

•        Lula diz na ONU que desigualdade precisa 'inspirar' indignação

Na ONU, o presidente disse que a desigualdade precisa "inspirar" indignação. "Indignação com a fome, a pobreza, a guerra, o desrespeito ao ser humano", afirmou Lula. A desigualdade deu a tônica de toda a fala, feita a uma plateia seleta de líderes globais em Nova York. A prática do governo do petista de repassar dinheiro para as prefeituras, sem atacar a desigualdade, entretanto, permanece.

A gestão de Lula reservou R$ 376,4 bilhões para transferir diretamente aos municípios em 2024, um valor recorde. Será um ano de eleições municipais e os recursos são cobiçados pelos prefeitos, muitos deles candidatos à reeleição ou padrinhos políticos de quem vai tentar uma vaga nas urnas, mas o recurso cada vez mais é consumido com folha salarial. "Podemos ter algum avanço na reforma tributária e na própria revisão dos gastos, inclusive nas transferências, mas o desafio não é simples. Não tem bala de prata para essa questão", diz o secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos.

No orçamento brasileiro, os programas sociais entraram na lista de cortes. O governo é obrigado a reduzir as despesas se verificar risco de descumprir alguma regra fiscal do País. Neste ano, diante da necessidade de bloquear os recursos, conforme o Estadão revelou, os principais afetados pela tesourada do governo foram o Auxílio Gás, benefício dado para a compra do gás de cozinha a famílias carentes, a educação básica, setor que ainda enfrenta atrasos e é apontado como essencial para a redução das desigualdades regionais. Essas ações ficaram sem a garantia de recursos até o fim do ano. Verbas herdadas do extinto orçamento e emendas parlamentares foram blindadas.

O orçamento de 2024 é o primeiro encaminhado por Lula ao Congresso, já que essa peça é sempre proposta pelo Executivo no ano anterior. O governo promete aumentar investimentos, mas isso vai depender de um dinheiro que a União ainda não tem. Além disso, as transferências diretas para municípios vão aumentar em ano de eleição de prefeitos e vereadores, incluindo repasses sem critérios e nem transparência, sem nenhuma contrapartida de como esse recurso vai resolver os problemas sociais das cidades brasileiras.

O Bolsa Família, principal vitrine da gestão petista na área social, não tem reajuste previsto. Além disso, o governo escolheu colocar R$ 21,2 bilhões do programa em uma programação que hoje ele não possui autorização para usar e que dependerá da inflação deste ano e de aprovação do Congresso.

Na avaliação do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, o que falta é prioridade para escolher onde gastar. "A previdência e a folha de pagamento do setor público somam quase 80% do gasto, e fora isso têm os subsídios tributários. É um ponto totalmente fora da curva em qualquer país do planeta", diz o economista. "Para fazer o debate para valer, o governo tem que ter a coragem de cutucar essas áreas, e eu não vejo nenhum sinal de que isso vai acontecer."

•        Saúde e educação podem ficar com menos recursos

Não bastasse o orçamento sem garantia, os gastos com saúde e educação podem diminuir a partir do ano que vem. O governo vai propor uma revisão nos valores mínimos exigidos pela Constituição para as duas áreas, alegando necessidade de revisão da máquina e maior espaço para gastar com outras coisas. Não se sabe ainda quais prioridades serão colocadas no lugar e como ficarão os investimentos em escolas, hospitais e postos de saúde. Enquanto os mínimos de saúde e educação estão na mira, nenhum debate é feito sobre as emendas parlamentares, que também estão vinculadas a pisos constitucionais.

O valor programado para as emendas é de R$ 37,7 bilhões no próximo ano. Na prática, o governo abriu mão de planejar essa parcela do gasto e entregou a definição para os parlamentares, sem nenhum critério nem transparência. Dentro desse bolo, a emenda Pix, revelada pelo Estadão, pode chegar a R$ 12,5 bilhões em 2024, mais do que os R$ 7 bilhões de 2023. Na prática, um recurso que o País transfere para as prefeituras sem saber como vai ser usado, antes de qualquer compromisso com políticas públicas e sem fiscalização, pois não há prestação de contas. Totalmente na contramão do discurso adotado pelo governo sobre planejamento e avaliação da qualidade das despesas.

O secretário de Orçamento Federal reconhece as distorções atuais nas contas públicas. Ele afirma que o governo procura combater a desigualdade com medidas mais urgentes, como a retomada da valorização real do salário mínimo e aumento da merenda escolar e da escola em tempo integral.

Para questões mais complexas, no entanto, planeja uma revisão de todos os gastos e uma avaliação das políticas públicas antes de mudar os rumos. "Se a avaliação concluir que uma política não entrega os melhores para redução de desigualdade, ela pode ceder espaço para que uma nova política pública seja formulada", afirma Paulo Bijos.

•        Transferências não têm sido capazes de reverter desigualdade

Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Pedro Ferreira de Souza, as transferências governamentais não têm sido capazes de reverter a desigualdade. Os indicadores melhoraram em 2022, muito por conta das medidas eleitoreiras do governo Jair Bolsonaro, e devem ter um novo avanço neste ano, mas ainda esbarram nos problemas do mercado de trabalho e nas distorções da cobrança de impostos sobre os mais pobres.

Na prática, o Brasil ainda não recuperou as perdas da pandemia de covid-19 e da crise econômica da década passada, que aumentaram a pobreza, reduziram a renda dos brasileiros e aumentaram a desigualdade. "Se tivéssemos cinco anos bons nesses indicadores, poderíamos falar que estamos melhores. Mas ter cinco anos bons no Brasil é uma coisa que não acontece há muito tempo. O que vivemos é uma ida e volta", afirma o pesquisador.

 

       Fazer mais com menos

 

Por definição, a eficiência do gasto do setor público é menor do que a do setor privado, por vários motivos, como as necessárias amarras e controles que precisa haver na área pública, a descontinuidade de projetos quando da mudança de governo, as pressões políticas para alocação de recursos, a falta de capacidade de gestão de muitos entes públicos, conduzidos por interesses que pouco tem a ver com eficiência e com foco no interesse público. Então, quanto mais recursos são transferidos da sociedade para o Estado, via aumento de arrecadação de impostos, como estamos vendo hoje no Brasil, maior a ineficiência na alocação de recursos do país, e consequentemente menor a produtividade e a competitividade da economia.

O Brasil tem a maior carga tributária entre os países em desenvolvimento, o que potencializa o problema de má alocação de recursos. O Estado, que deveria arrecadar para servir a sociedade, cada vez mais serve-se dela. Estudos têm demonstrado que nós temos a pior relação do planeta entre impostos cobrados e retorno à sociedade. As despesas correntes, isto é, os gastos para manter a máquina pública, tem crescido nos últimos anos, chegando a 20% do PIB, forçando o aumento da carga tributária, que passou de 25% na década de 90 para a faixa de 33% a 35% nos últimos anos. Para investimentos, essenciais para o crescimento do país, praticamente não tem sobrado recursos públicos.

O Estado precisa aprender a gastar com mais eficiência o enorme volume de recursos que já arrecada. Temos que entender que o avanço vem de gastar melhor e não de gastar mais. Na educação, por exemplo, gastamos perto de 6% do PIB, mais do que países que são referência e tem as melhores colocações no teste PISA, onde estamos entre os últimos colocados. O mesmo vale para a saúde, para a segurança e outros serviços públicos.

Ter preocupação com a política social e com o crescimento econômico, para a geração de empregos, é proposta legítima de um plano de governo. A forma de promover as duas coisas é que faz toda a diferença. Experiências de diversos países demonstraram que a via do aumento de gastos alimentado por majoração de tributos tem gerado resultados muito mais tímidos e de alcance curto do que a via da redução de gastos alicerçada em aumento de sua eficiência. A primeira alternativa é a mais fácil, mas alimenta a inflação, pressiona a taxa de juros, o que acaba inibindo o crescimento e prejudicando justamente os mais pobres.

Os atalhos sempre parecem a solução mais simples, mas, se quisermos preparar o país para um crescimento mais robusto e consistente, temos que estar dispostos a pavimentar o nosso caminho.

Sem dúvida a responsabilidade social é pauta obrigatória quando se discutem prioridades do país, especialmente no prover igualdade de oportunidades, além de serviços de saúde, educação e segurança adequados. Mas a solução não deve vir por meio de extração de mais recursos da sociedade, isto é, de aumento de carga tributária, que já é muito elevada. Uns mais, outros menos, todos já pagamos demais. É preciso um esforço para fazer mais com menos.

 

Fonte: Agencia Estado/Correio Braziliense

 

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