O calvário das vítimas do Césio-137 continua em Goiânia, 36 anos depois
Setembro de 1987. Dois catadores de sucata, Roberto
dos Santos e Wagner Mota, entraram em uma antiga clínica radiológica
abandonada, localizada no setor Aeroporto, em Goiânia, na busca de materiais
para vender. Atraídos pelo valor que poderiam extrair da sucata de uma máquina
de radioterapia coberta de chumbo, os amigos tornaram-se protagonistas do maior
acidente com material radioativo da história do Brasil. E um dos mais graves do
mundo.
Sem qualquer suspeita do risco que corriam, os
catadores levaram o aparelho até Devair, dono de um ferro velho. Havia uma
quantidade significativa de Césio-137. Eram 19g de um elemento radioativo
altamente perigoso que mais parecia com uma pasta, de cor acinzentada, e virava
pó quando friccionado. A crise deflagrada marcou para sempre a capital de
Goiás, que viveu um dos eventos mais sombrios de sua história. O pó azul
brilhante que encantou a todos em um primeiro momento tornar-se-ia o símbolo de
um rastro de doença e morte.
• Os
Primeiros Sintomas da Tragédia com Césio-137
Vizinhos, amigos e parentes de Devair ficaram
encantados com a beleza do material que foi manipulado espalhando-se em roupas
e móveis. Algumas pessoas chegaram a passar o pó azul no rosto e nos próprios
corpos. A cor associada ao acidente veio, na verdade, de uma substância
fluorescente chamada sulfato de zinco. Essa substância foi adicionada à cápsula
de chumbo que continha o Césio-137 para torná-la visível em caso de vazamento.
Quando as cápsulas foram quebradas e o Césio-137 foi liberado, o sulfato de
zinco se espalhou e emitiu uma luminescência azul sob luz ultravioleta, dando a
aparência de “brilhar”.
O Césio-137 liberou uma quantidade incontrolável de
radiação altamente perigosa. Os catadores começaram a apresentar sintomas
alarmantes, como queimaduras na pele e náuseas. Percebendo a gravidade da
situação, procuraram um médico que, por sua vez, alertou as autoridades de
saúde locais. À medida que o caso era investigado, ficou claro que não se
tratava de um incidente isolado. O Césio-137 havia se espalhado para outros
locais, inclusive as casas dos catadores e das pessoas que tiveram contato com
o material radioativo. Os danos cresceram de maneira exponencial. A radiação
atingiu uma área de 2.000m2.
• A
Mobilização das Autoridades
O material circulou por diversos dias antes que as
autoridades sanitárias fizessem um chamado, num estádio de futebol, para triar
as pessoas atingidas. Trinta mil pessoas foram avaliadas e 257 tinham níveis
elevados de radiação. Muitas delas foram transferidas para o Hospital Naval no
Rio de Janeiro, onde havia estrutura para radioexpostos para uso do chamado
“Azul da Prússia”, antídoto para o Césio-137.
As autoridades isolaram a área ao redor da clínica
abandonada e das casas contaminadas e equipes de resgate e proteção radiológica
foram convocadas. Para proteger a população, foi necessária a evacuação de
centenas de pessoas da região afetada. As casas e os objetos contaminados pelo
Césio-137 foram isolados e removidos. O processo de descontaminação foi
complexo e demorado, envolvendo a lavagem de pessoas e a limpeza de ambientes.
• Vítimas
do acidente com material radiológico
Quatro pessoas morreram em consequência da
exposição à radiação durante o incidente. Leide das Neves Ferreira, de apenas 6
anos, teve contato com o material em 24 de setembro e foi uma das pessoas que
perderam a vida após o contato com Césio-137. Encantada com o brilho do
material, a criança teve lesões por todo o corpo depois que um primo espalhou o
pó radioativo nos braços e pernas da menina. Ela morreu em 23 de outubro de
1987, depois de não responder ao tratamento.
Além de Leide, a tia dela, Maria Gabriela Ferreira,
de 37 anos, Israel Batista dos Santo, de 22 anos, e Admilson Alves de Souza, de
18 morreram em decorrência da gravidade das lesões deixadas pelo Césio-137. Ivo
e Devair, por sua vez, carregaram a culpa por causar o acidente pelo resto de
suas vidas e caíram em depressão. Entregues à bebida e aos cigarros, ambos
vieram a falecer, anos depois do episódio.
Além das mortes imediatas, muitas outras pessoas
sofreram efeitos de saúde graves e de longo prazo devido à exposição à
radiação, tornando o acidente um dos eventos mais trágicos envolvendo materiais
radioativos na história do Brasil.
O acidente de Goiânia resultou em um processo
judicial complexo. Os donos da clínica radiológica, responsáveis por deixar o
material radioativo abandonado, foram condenados e cumpriram pena de prisão.
Além disso, diversas instituições de saúde e órgãos regulatórios foram
criticados por não terem fiscalizado adequadamente a clínica.
Os trabalhos de descontaminação dos locais afetados
produziram 6.500 toneladas de lixo contaminado, com apenas 19 g de Césio-137. O
lixo armazenado em caixas, tambores, containers era constituído de roupas,
utensílios domésticos, plantas, solo, animais de estimação, veículos, materiais
de construção – algumas casas foram implodidas, sem que pudesse tirar nada de
dentro, sequer brinquedos ou fotografias. Todo esse lixo radioativo foi levado
a um depósito construído na cidade de Abadia de Goiás, vizinha a Goiânia, onde
deverá permanecer por pelo menos 180 anos.
“Hoje, o depósito dos resíduos do acidente é mais
bem cuidado que as vítimas”, lamenta Suely Lina Moraes Silva. Aos 65 anos, a
presidente da AVCésio, Associação das Vítimas do Césio, faz parte do chamado
Grupo 2, aquelas pessoas cuja exposição foi inferior a 50 rads no corpo, que é
a unidade que mede a quantidade de radiação identificada. Filhos, sobrinhos, a
cunhada e muitos amigos de Suely também estão entre as vítimas. Eles enfrentam
hoje o desafio no reajuste da pensão, paga pelo poder público a 751 pessoas
contaminadas.
• A
Prevenção de Futuros Acidentes
Após o acidente, foi inaugurado um centro para
acompanhamento da saúde dos radioexpostos em Goiânia, onde periodicamente as
pessoas são avaliadas. A pneumologista e médica do trabalho Vera Castellano vem
se debruçando sobre a estrutura do Brasil para atendimento destes casos. “É
importante lembrar que exposição à radiação, mesmo em pequenas quantidades,
pode levar a alterações no DNA. Mesmo agora, mais de 30 anos após o acidente,
podemos ter vítimas com câncer”, explica a médica. “Não existe nenhum dado
publicado sobre como é feito este acompanhamento”, alerta. Na opinião da pesquisadora,
há risco de novos acidentes acontecerem “para prevenir, precisamos de um grande
controle das fontes radioativas utilizadas nos aparelhos médicos e nas
indústrias”, avalia.
Na opinião da médica, não estamos preparados para
acidentes radiológicos que aconteçam em um futuro próximo. “Temos estes leitos
no hospital do Rio de Janeiro, mas não vejo um plano bem definido para o caso
de uma nova emergência, diferentemente do que encontramos no Japão”, compara.
Ela esteve em Hiroshima, onde há um setor estruturado para receber pessoas
vítimas de acidentes radiológicos, que tem vários protocolos desde a chegada à
unidade. Eles também têm um cadastro muito bem estruturado das pessoas expostas
à bomba atômica com escala para os efeitos crônicos das exposições aos tipos de
câncer que podem acontecer muitos anos depois. São as lições que o Brasil não
aprendeu com o Césio-137 em Goiânia e deveria aprender.
Fonte: Por Articulação Antinuclear Brasileira
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