Mundo desenvolvido vê palhaçada sobre aborto no Brasil
O voto dado pela ministra do STF (Supremo Tribunal
Federal) Rosa Weber em defesa da descriminalização do aborto no Brasil elevou o
debate sobre o tema a um patamar inédito nos campos jurídico, político e social
e pode ter o condão de voltar os olhos do mundo para o país, afirmam acadêmicas
que se dedicam ao assunto.
A forma como a presidente da corte se posicionou
dá, ainda, a oportunidade de seu sucessor, Luís Roberto Barroso, protagonizar
um julgamento tido como histórico num momento em que cortes constitucionais do
Sul Global têm se debruçado sobre o tema. Barroso assume a presidência do
Supremo na quinta (28).
“Esse voto
contribui para que a gente expanda essa conversa, para que ela se dê numa
perspectiva que reforce noções de direitos fundamentais e de proteção aos
direitos das mulheres”, afirma a pesquisadora e professora associada do
Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília) Flávia Biroli.
Para a cientista política, a ministra foi feliz ao
usar argumentos que mostrariam como a penalização do aborto está em descompasso
com as premissas da Constituição de 1988.
Weber rememorou que a criminalização da prática
data de 1940 e de um contexto em que a cidadania das mulheres era exercida de
forma deficitária. E partiu da premissa de que os direitos sexuais e
reprodutivos são direitos fundamentais, destaca a professora da UnB.
“Um voto desses dá argumentos para quem quer entrar
no bonde”, diz Biroli, sugerindo que a forma como o debate foi proposto pela
ministra pode fazer com que outras pessoas possam aderir à demanda pela
descriminalização da interrupção da gestação até a 12ª semana.
De acordo com a cientista política, estudos indicam
que a sociedade brasileira está aberta a repensar suas posições sobro o
procedimento, apesar do ruidoso ativismo antiaborto. “A realidade é muito mais
complexa e muito menos estanque do que esses ativistas querem fazer crer”,
afirma.
A antropóloga Debora Diniz, professora de direito
da UnB e pesquisadora visitante da Universidade Brown, nos EUA, também tece
elogios à argumentação esmiuçada em 129 páginas pela presidente do Supremo.
“Foi um voto muito pensado, estudado em cada
palavra, em cada argumento. Um voto com delicadeza e, ao mesmo tempo, firmeza,
mas também com profunda humildade. Não foi um texto só para iniciados [em
estudos do direito]”, afirma a antropóloga.
O termo “justiça social reprodutiva”, usado por
Weber em seu voto, é destacado pelas especialistas ouvidas pela coluna. De
acordo com Diniz, a magistrada pode ter inaugurado um conceito no âmbito do
direito internacional e no campo da teoria de gênero e feminista ao combinar a
defesa da justiça social com a defesa da justiça reprodutiva.
A expressão, afirmam as acadêmicas, ganha
relevância ao extrapolar o aborto, em si, e contemplar uma série de
necessidades e questões das mulheres. Ela inclui, por exemplo, o dado de que
mulheres negras são as mais expostas aos riscos decorrentes da criminalização
do procedimento —como o de ir a óbito.
“Ao revisitar a jurisprudência do STF em matérias
sobre direitos das mulheres, como o direito ao voto, ao trabalho, à
amamentação, a uma vida livre de violência, a ministra olha a amplitude e diz:
essa corte já enfrentou [temas caros para os] direitos da mulheres como
direitos humanos e fundamentais. Não vamos temer a questão do aborto como
questão sensível”, afirma Diniz.
Uma das responsáveis pela Pesquisa Nacional de
Aborto, que foi realizada no Brasil nos anos de 2016, 2019 e 2021, a
antropóloga ainda afirma que a autoria feminina do voto dado na sexta-feira
(22) é evidente, uma vez que a ministra teria se preocupado com a vida das mulheres
de forma integral.
A professora de direito penal da USP (Universidade
de São Paulo) Mariângela Gama de Magalhães Gomes diz ver um grande simbolismo
feminino não só no voto, mas também no esforço de Weber de pautar o julgamento
antes de sua aposentadoria.
“Não dá para dizer categoricamente que um homem não
teria essa preocupação, embora seja verdade que precisou de uma mulher para
colocar em votação. Mas também não dá para dizer que qualquer mulher que fosse
presidente do STF igualmente faria esse esforço”, pondera.
As acadêmicas ouvidas pela coluna avaliam
positivamente o pedido do ministro Barroso para que o tema seja discutido em
plenário —embora, com isso, o julgamento tenha sido postergado. “Esse é o tipo
de coisa que não se faz de uma hora para outra”, diz Biroli.
Direita
quer impedir STF de julgar aborto
Senadores de oposição criticaram nas últimas
semanas os avanços do Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamentos que, na
avaliação desses parlamentares, abordam temas de competência do Legislativo.
Entram nesse grupo as análises sobre a descriminalização do porte de maconha
para consumo próprio, a validade do marco temporal para demarcação de terras
indígenas e a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
Em reação, o grupo articula a apresentação de
propostas e um movimento de pressão sobre o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), para que ele adote um contraponto ao Judiciário.
Os senadores esperam conseguir reeditar o tom
adotado por Pacheco nas críticas à discussão no Supremo da descriminalização do
porte de maconha para uso próprio.
Na ocasião, ao dizer que o STF invadia a
competência do Congresso, o presidente do Senado apresentou uma Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) para inserir, no texto constitucional, a proibição
do porte e da posse de qualquer tipo de substância ilícita, independentemente
da quantidade.
As emendas à Constituição têm sido avaliadas por
senadores críticos ao Supremo como uma possível saída para driblar os
julgamentos da Corte em outros dois casos: marco temporal e descriminalização
do aborto.
Há também dois movimentos para levar os temas ao
centro do debate político.
Liderada pelo deputado Pedro Lupion (PP-PR), a
Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) tem defendido a união das bancadas
ruralista, evangélica, católica e da segurança pública para obstruir as
votações no Congresso para pressionar Pacheco e o presidente da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), a endossar propostas contrárias ao marco temporal e ao aborto.
No Senado, o líder da oposição na Casa, Rogério
Marinho (PL-RN), deve apresentar nesta terça-feira (26) um projeto que convoca
plebiscito sobre a descriminalização do aborto.
>>> Entenda, abaixo, nesta reportagem as
reações apresentadas por parlamentares contra o STF:
• Descriminalização
do aborto
O STF ainda não pautou o retorno do julgamento
sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, mas os
senadores de oposição têm defendido dar uma “resposta” do Congresso ao tema.
Na última sexta-feira (22), o Supremo suspendeu a
análise virtual do caso após um pedido do ministro Luís Roberto Barroso para
levar a discussão ao plenário físico da Corte. Antes, a presidente do STF,
ministra Rosa Weber, depositou o seu voto em defesa da descriminalização da
prática até o período de 12 semanas.
No Senado, porém, os movimentos contrários à
discussão da Corte tiveram início com os rumores de que Rosa colocaria o caso
em julgamento antes de se aposentar em 2 de outubro. As críticas se
intensificaram com a confirmação da data do julgamento, e os movimentos de reação
ganharam corpo com o voto da ministra.
Líder da oposição na Casa, o senador Rogério
Marinho (PL-RN) reúne assinaturas para uma proposta que convoca um plebiscito
para que a população vote se é a favor ou contra a legalização do aborto.
Para começar a caminhar na Casa, o projeto precisa
de, no mínimo, 27 assinaturas. Ao g1, Marinho afirmou já ter reunido número de
apoios superior ao piso exigido e que o texto deverá ser protocolado nesta
terça-feira (26).
O plebiscito é uma consulta à população anterior à
discussão de propostas legislativas. O resultado da votação define qual o
projeto deverá ser discutido pelo Congresso. Para ser convocado, além da
aprovação no Senado, o plebiscito precisa ser aprovado pela Câmara.
Em outro movimento, nesta segunda-feira (25), o
senador Magno Malta (PL-ES) apresentou uma PEC para incluir no artigo 5º da
Constituição – o principal dispositivo do texto, que prevê direitos e deveres
dos cidadãos – que há garantia da “inviolabilidade do direito à vida desde a
concepção”.
Na prática, a inclusão desse texto poderia impedir
o aborto em qualquer circunstância, até mesmo nas situações atualmente
previstas em lei. O texto tem apoio de 27 senadores, entre os quais três
parlamentares da base aliada ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva: Jorge Kajuru (PSB-GO), Chico Rodrigues (PSB-RR) e Veneziano Vital do
Rêgo (MDB-PB).
“Este pequeno acréscimo adequa nossa Constituição
Federal aos atuais avanços científicos e terá o poder de garantir o direito à
vida de milhares de crianças brasileiras que são assassinadas por falta de
proteção jurídica”, afirmou Malta.
• Marco
temporal
Com maioria ruralista, a Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) do Senado deverá aprovar nesta quarta-feira (27) o projeto que
estabelece um marco temporal para demarcação de terras indígenas no Brasil.
Encerrada esta etapa, o texto, que já foi aprovado pela Câmara, vai ao plenário
principal da Casa.
Mesmo otimistas com a aprovação, senadores avaliam
que pode haver, ainda, judicialização sobre o tema, em uma eventual entrada em
vigor do texto. Isso porque a proposta seria aprovada como uma lei comum, o que
poderia levar a uma nova discussão no STF sobre a sua validade
Por outro lado, os parlamentares avaliam que
inserir o marco na Constituição poderia dar fim aos embates jurídicos. Uma PEC
nesse sentido foi apresentada no Senado no último dia 21, mesma data em que o
STF julgou inconstitucional a tese do marco temporal. O argumento derrubado
pelo Supremo prevê que os povos indígenas só terão direito à demarcação de
terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da
Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Na prática, áreas sem a ocupação de indígenas ou
com a ocupação de outros grupos neste período não poderiam ser demarcadas.
A PEC, protocolada pelo senador Hiran Gonçalves
(PP-RR), insere, no artigo da Constituição que trata do direito dos povos
indígenas às terras, justamente a data como requisito para o reconhecimento das
áreas. O texto tem o apoio de outros 26 senadores.
“É indispensável que o Congresso Nacional
estabeleça um marco temporal adequado para selar de vez essa questão. A decisão
do STF não encerra a discussão. Nós vamos aprovar, na CCJ, [o projeto de lei
sobre o marco]. Mas acho que vamos ter um desenrolar ainda. Pode haver um veto
ou não do projeto, judicialização. Mas a PEC tem uma característica de mais
consistência. No meu ver, [a PEC] encerra essa discussão. É nossa prerrogativa,
e a gente não pode abrir mão disso”, disse Gonçalves ao g1
Na Câmara, membros da bancada ruralista avaliam
retomar a tramitação de uma PEC parada na Casa que pode elevar as indenizações
pagas pela União a ex-proprietários de terras demarcadas a partir de 5 de
outubro de 2013.
• União
das bancadas
O presidente da FPA, deputado Pedro Lupion, tem
defendido que uma união da bancada ruralista no Congresso para levar à frente
um movimento de pressão sobre Pacheco e Lira, para conquistar apoio a propostas
contrárias ao marco temporal. A bancada do agro reúne mais de 300 deputados e
senadores no Congresso.
Para elevar o alcance do movimento, Lupion sinaliza
que vai procurar lideranças das bancadas evangélica e da segurança pública para
articular uma posição conjunta dentro da Câmara e do Senado.
Membros da FPA vão se reunir na tarde desta terça-feira
(26) para decidir a estratégia que será adotada pelo grupo.
O coordenador da comissão de Direito de Propriedade
da frente, deputado Lucio Mosquini (MDB-RO), disse ao g1 que o encontro deve
discutir também a abertura de um diálogo com lideranças de outras bancadas
temáticas do Congresso.
Procurados pelo g1, dirigentes da frente evangélica
e membros da bancada da segurança pública defenderam a unidade e afirmaram que
devem discutir a aliança nos próximos dias.
Entre as possibilidades estudadas pela bancada
ruralista está a adoção de instrumentos para obstruir as pautas de votação nas
Casas.
Lupion já havia defendido essa proposta em coletiva
a jornalistas após a sessão de julgamento do Supremo sobre o marco temporal.
“Se for necessário obstruir trabalhos na Câmara dos
Deputados, se for necessário obstruir trabalhos no Senado, se for necessário,
nas últimas consequências, nós vamos para garantir o direito à propriedade e os
direitos dos produtores rurais do Brasil”, disse na ocasião.
Fonte: FolhaPress/g1
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