quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Mundo desenvolvido vê palhaçada sobre aborto no Brasil

O voto dado pela ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Rosa Weber em defesa da descriminalização do aborto no Brasil elevou o debate sobre o tema a um patamar inédito nos campos jurídico, político e social e pode ter o condão de voltar os olhos do mundo para o país, afirmam acadêmicas que se dedicam ao assunto.

A forma como a presidente da corte se posicionou dá, ainda, a oportunidade de seu sucessor, Luís Roberto Barroso, protagonizar um julgamento tido como histórico num momento em que cortes constitucionais do Sul Global têm se debruçado sobre o tema. Barroso assume a presidência do Supremo na quinta (28).

 “Esse voto contribui para que a gente expanda essa conversa, para que ela se dê numa perspectiva que reforce noções de direitos fundamentais e de proteção aos direitos das mulheres”, afirma a pesquisadora e professora associada do Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília) Flávia Biroli.

Para a cientista política, a ministra foi feliz ao usar argumentos que mostrariam como a penalização do aborto está em descompasso com as premissas da Constituição de 1988.

Weber rememorou que a criminalização da prática data de 1940 e de um contexto em que a cidadania das mulheres era exercida de forma deficitária. E partiu da premissa de que os direitos sexuais e reprodutivos são direitos fundamentais, destaca a professora da UnB.

“Um voto desses dá argumentos para quem quer entrar no bonde”, diz Biroli, sugerindo que a forma como o debate foi proposto pela ministra pode fazer com que outras pessoas possam aderir à demanda pela descriminalização da interrupção da gestação até a 12ª semana.

De acordo com a cientista política, estudos indicam que a sociedade brasileira está aberta a repensar suas posições sobro o procedimento, apesar do ruidoso ativismo antiaborto. “A realidade é muito mais complexa e muito menos estanque do que esses ativistas querem fazer crer”, afirma.

A antropóloga Debora Diniz, professora de direito da UnB e pesquisadora visitante da Universidade Brown, nos EUA, também tece elogios à argumentação esmiuçada em 129 páginas pela presidente do Supremo.

“Foi um voto muito pensado, estudado em cada palavra, em cada argumento. Um voto com delicadeza e, ao mesmo tempo, firmeza, mas também com profunda humildade. Não foi um texto só para iniciados [em estudos do direito]”, afirma a antropóloga.

O termo “justiça social reprodutiva”, usado por Weber em seu voto, é destacado pelas especialistas ouvidas pela coluna. De acordo com Diniz, a magistrada pode ter inaugurado um conceito no âmbito do direito internacional e no campo da teoria de gênero e feminista ao combinar a defesa da justiça social com a defesa da justiça reprodutiva.

A expressão, afirmam as acadêmicas, ganha relevância ao extrapolar o aborto, em si, e contemplar uma série de necessidades e questões das mulheres. Ela inclui, por exemplo, o dado de que mulheres negras são as mais expostas aos riscos decorrentes da criminalização do procedimento —como o de ir a óbito.

“Ao revisitar a jurisprudência do STF em matérias sobre direitos das mulheres, como o direito ao voto, ao trabalho, à amamentação, a uma vida livre de violência, a ministra olha a amplitude e diz: essa corte já enfrentou [temas caros para os] direitos da mulheres como direitos humanos e fundamentais. Não vamos temer a questão do aborto como questão sensível”, afirma Diniz.

Uma das responsáveis pela Pesquisa Nacional de Aborto, que foi realizada no Brasil nos anos de 2016, 2019 e 2021, a antropóloga ainda afirma que a autoria feminina do voto dado na sexta-feira (22) é evidente, uma vez que a ministra teria se preocupado com a vida das mulheres de forma integral.

A professora de direito penal da USP (Universidade de São Paulo) Mariângela Gama de Magalhães Gomes diz ver um grande simbolismo feminino não só no voto, mas também no esforço de Weber de pautar o julgamento antes de sua aposentadoria.

“Não dá para dizer categoricamente que um homem não teria essa preocupação, embora seja verdade que precisou de uma mulher para colocar em votação. Mas também não dá para dizer que qualquer mulher que fosse presidente do STF igualmente faria esse esforço”, pondera.

As acadêmicas ouvidas pela coluna avaliam positivamente o pedido do ministro Barroso para que o tema seja discutido em plenário —embora, com isso, o julgamento tenha sido postergado. “Esse é o tipo de coisa que não se faz de uma hora para outra”, diz Biroli.

 

       Direita quer impedir STF de julgar aborto

 

Senadores de oposição criticaram nas últimas semanas os avanços do Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamentos que, na avaliação desses parlamentares, abordam temas de competência do Legislativo. Entram nesse grupo as análises sobre a descriminalização do porte de maconha para consumo próprio, a validade do marco temporal para demarcação de terras indígenas e a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

Em reação, o grupo articula a apresentação de propostas e um movimento de pressão sobre o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para que ele adote um contraponto ao Judiciário.

Os senadores esperam conseguir reeditar o tom adotado por Pacheco nas críticas à discussão no Supremo da descriminalização do porte de maconha para uso próprio.

Na ocasião, ao dizer que o STF invadia a competência do Congresso, o presidente do Senado apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para inserir, no texto constitucional, a proibição do porte e da posse de qualquer tipo de substância ilícita, independentemente da quantidade.

As emendas à Constituição têm sido avaliadas por senadores críticos ao Supremo como uma possível saída para driblar os julgamentos da Corte em outros dois casos: marco temporal e descriminalização do aborto.

Há também dois movimentos para levar os temas ao centro do debate político.

Liderada pelo deputado Pedro Lupion (PP-PR), a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) tem defendido a união das bancadas ruralista, evangélica, católica e da segurança pública para obstruir as votações no Congresso para pressionar Pacheco e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a endossar propostas contrárias ao marco temporal e ao aborto.

No Senado, o líder da oposição na Casa, Rogério Marinho (PL-RN), deve apresentar nesta terça-feira (26) um projeto que convoca plebiscito sobre a descriminalização do aborto.

>>> Entenda, abaixo, nesta reportagem as reações apresentadas por parlamentares contra o STF:

•        Descriminalização do aborto

O STF ainda não pautou o retorno do julgamento sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, mas os senadores de oposição têm defendido dar uma “resposta” do Congresso ao tema.

Na última sexta-feira (22), o Supremo suspendeu a análise virtual do caso após um pedido do ministro Luís Roberto Barroso para levar a discussão ao plenário físico da Corte. Antes, a presidente do STF, ministra Rosa Weber, depositou o seu voto em defesa da descriminalização da prática até o período de 12 semanas.

No Senado, porém, os movimentos contrários à discussão da Corte tiveram início com os rumores de que Rosa colocaria o caso em julgamento antes de se aposentar em 2 de outubro. As críticas se intensificaram com a confirmação da data do julgamento, e os movimentos de reação ganharam corpo com o voto da ministra.

Líder da oposição na Casa, o senador Rogério Marinho (PL-RN) reúne assinaturas para uma proposta que convoca um plebiscito para que a população vote se é a favor ou contra a legalização do aborto.

Para começar a caminhar na Casa, o projeto precisa de, no mínimo, 27 assinaturas. Ao g1, Marinho afirmou já ter reunido número de apoios superior ao piso exigido e que o texto deverá ser protocolado nesta terça-feira (26).

O plebiscito é uma consulta à população anterior à discussão de propostas legislativas. O resultado da votação define qual o projeto deverá ser discutido pelo Congresso. Para ser convocado, além da aprovação no Senado, o plebiscito precisa ser aprovado pela Câmara.

Em outro movimento, nesta segunda-feira (25), o senador Magno Malta (PL-ES) apresentou uma PEC para incluir no artigo 5º da Constituição – o principal dispositivo do texto, que prevê direitos e deveres dos cidadãos – que há garantia da “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.

Na prática, a inclusão desse texto poderia impedir o aborto em qualquer circunstância, até mesmo nas situações atualmente previstas em lei. O texto tem apoio de 27 senadores, entre os quais três parlamentares da base aliada ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: Jorge Kajuru (PSB-GO), Chico Rodrigues (PSB-RR) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB).

“Este pequeno acréscimo adequa nossa Constituição Federal aos atuais avanços científicos e terá o poder de garantir o direito à vida de milhares de crianças brasileiras que são assassinadas por falta de proteção jurídica”, afirmou Malta.

•        Marco temporal

Com maioria ruralista, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado deverá aprovar nesta quarta-feira (27) o projeto que estabelece um marco temporal para demarcação de terras indígenas no Brasil. Encerrada esta etapa, o texto, que já foi aprovado pela Câmara, vai ao plenário principal da Casa.

Mesmo otimistas com a aprovação, senadores avaliam que pode haver, ainda, judicialização sobre o tema, em uma eventual entrada em vigor do texto. Isso porque a proposta seria aprovada como uma lei comum, o que poderia levar a uma nova discussão no STF sobre a sua validade

Por outro lado, os parlamentares avaliam que inserir o marco na Constituição poderia dar fim aos embates jurídicos. Uma PEC nesse sentido foi apresentada no Senado no último dia 21, mesma data em que o STF julgou inconstitucional a tese do marco temporal. O argumento derrubado pelo Supremo prevê que os povos indígenas só terão direito à demarcação de terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Na prática, áreas sem a ocupação de indígenas ou com a ocupação de outros grupos neste período não poderiam ser demarcadas.

A PEC, protocolada pelo senador Hiran Gonçalves (PP-RR), insere, no artigo da Constituição que trata do direito dos povos indígenas às terras, justamente a data como requisito para o reconhecimento das áreas. O texto tem o apoio de outros 26 senadores.

“É indispensável que o Congresso Nacional estabeleça um marco temporal adequado para selar de vez essa questão. A decisão do STF não encerra a discussão. Nós vamos aprovar, na CCJ, [o projeto de lei sobre o marco]. Mas acho que vamos ter um desenrolar ainda. Pode haver um veto ou não do projeto, judicialização. Mas a PEC tem uma característica de mais consistência. No meu ver, [a PEC] encerra essa discussão. É nossa prerrogativa, e a gente não pode abrir mão disso”, disse Gonçalves ao g1

Na Câmara, membros da bancada ruralista avaliam retomar a tramitação de uma PEC parada na Casa que pode elevar as indenizações pagas pela União a ex-proprietários de terras demarcadas a partir de 5 de outubro de 2013.

•        União das bancadas

O presidente da FPA, deputado Pedro Lupion, tem defendido que uma união da bancada ruralista no Congresso para levar à frente um movimento de pressão sobre Pacheco e Lira, para conquistar apoio a propostas contrárias ao marco temporal. A bancada do agro reúne mais de 300 deputados e senadores no Congresso.

Para elevar o alcance do movimento, Lupion sinaliza que vai procurar lideranças das bancadas evangélica e da segurança pública para articular uma posição conjunta dentro da Câmara e do Senado.

Membros da FPA vão se reunir na tarde desta terça-feira (26) para decidir a estratégia que será adotada pelo grupo.

O coordenador da comissão de Direito de Propriedade da frente, deputado Lucio Mosquini (MDB-RO), disse ao g1 que o encontro deve discutir também a abertura de um diálogo com lideranças de outras bancadas temáticas do Congresso.

Procurados pelo g1, dirigentes da frente evangélica e membros da bancada da segurança pública defenderam a unidade e afirmaram que devem discutir a aliança nos próximos dias.

Entre as possibilidades estudadas pela bancada ruralista está a adoção de instrumentos para obstruir as pautas de votação nas Casas.

Lupion já havia defendido essa proposta em coletiva a jornalistas após a sessão de julgamento do Supremo sobre o marco temporal.

“Se for necessário obstruir trabalhos na Câmara dos Deputados, se for necessário obstruir trabalhos no Senado, se for necessário, nas últimas consequências, nós vamos para garantir o direito à propriedade e os direitos dos produtores rurais do Brasil”, disse na ocasião.

 

Fonte: FolhaPress/g1

 

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