quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Justiça condena Cargill por trabalho escravo e infantil de fornecedores de cacau

A multinacional Cargill foi condenada pela Justiça do Trabalho, em primeira instância, por práticas de trabalho escravo e infantil em plantações de cacau de seus fornecedores no Brasil. A empresa ainda pode recorrer da decisão.

A condenação é resultado de uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). O órgão cobra a responsabilização de toda a cadeia produtiva do cacau, incluindo as indústrias que compram insumos de produtores rurais autuados por irregularidades.

Em sentença proferida no dia 18 de setembro, a 39ª Vara do Trabalho de Salvador determinou que a empresa pague uma indenização de R$ 600 mil por danos morais coletivos, a serem aplicados em projetos de proteção a crianças. Inicialmente, o MPT havia solicitado uma indenização de R$ 119 milhões.

Fundada nos Estados Unidos, a Cargill é responsável pelo processamento de grande parte do cacau produzido no país. Em nota enviada à Repórter Brasil, a empresa afirma que “não tolera tráfico humano, trabalho forçado ou infantil em suas operações ou cadeia de suprimentos”. A multinacional alega ainda que aplica “medidas imediatas” para suspender fornecedores flagrados em violações. Leia aqui a íntegra da nota enviada pela Cargill.

•        Ação do MPT se baseou em tratados internacionais

De acordo com os procuradores, a Cargill se omitiu “do dever legal de coibir e prevenir” que seus fornecedores utilizem mão de obra infantil ou que submetam trabalhadores a condições típicas da escravidão. O MPT ingressou com a ação após compilar diversos flagrantes dessas violações em fornecedores da multinacional.

Para os procuradores que assinam a ação, mesmo depois dessas infrações, a Cargill não adotou mecanismos para evitar a repetição dos problemas.

“Empresas que lucram e se beneficiam do trabalho escravo e infantil dizem que não têm relação direta ou de emprego [com os fornecedores]. Agora tivemos essa virada de chave, exigindo também a responsabilidade [de monitorar o cumprimento da lei] trabalhista”, afirma a procuradora Margaret Matos de Carvalho, uma das responsáveis pela ação contra a Cargill. Ela diz ainda que a ACP exige que a empresa acompanhe de perto as condições de trabalho nas propriedades dos fornecedores.

A responsabilização das gigantes do setor faz parte de uma estratégia do MPT, inspirada em obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais. Os procuradores também tomam como base o decreto federal com as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. O objetivo é combater violações aos direitos humanos e estimular relações éticas em toda a cadeia produtiva beneficiada por trabalho escravo ou infantil.

•        Histórico de violações em fornecedores

Ao menos 148 trabalhadores foram resgatados em fazendas de cacau durante fiscalizações realizadas entre 2005 e 2019 pelo governo federal. Flagrantes de violações se concentram na Bahia e no Pará, líderes na produção de cacau no Brasil (Foto: Sidney Oliveira/Agência Pará)

A ação contra a multinacional foi proposta em 2021 por um grupo de procuradores dedicados ao combate ao trabalho infantil e à escravidão. Na ACP, eles listaram algumas fiscalizações que comprovaram casos de trabalho escravo ou trabalho infantil entre fornecedores da Cargill.

Em 2010, foram resgatados 42 trabalhadores em uma fazenda dede cacau que fornecia para a empresa em Medicilândia, no Pará – no local, havia três menores de idade que ajudavam os pais na colheita. Em 2013, nessa mesma cidade, outro fornecedor da Cargill foi autuado por trabalho infantil. Em 2019, autoridades constataram que essa fazenda ainda explorava crianças.

Na sentença, a juíza Naiara Lage Pereira Bohnke argumentou que “não se busca a atribuição de responsabilidade da Demandada [a Cargill] diretamente pelas violações a direitos trabalhistas observadas ao longo da cadeia produtiva do cacau”.

Ainda segundo a sentença, o pedido do MPT pede a condenação da Cargill “a partir da perspectiva de que a empresa, dado o seu poder de controle e influência, não deve se omitir diante da realidade que se impõe (condições de trabalho análogo ao de escravo e trabalho infantil) e que tende a ser perpetuar se ações efetivas não forem devidamente tomadas”.

“A Cargill foi condenada por permitir trabalho escravo e trabalho infantil. A empresa finge que não está vendo. Por isso, está sendo condenada. É a responsabilidade da devida diligência”, argumentou a procuradora Carvalho em entrevista à Repórter Brasil.

•        Formalização de contratos com fornecedores

No processo, advogados da Cargill alegaram que a empresa não podia ser responsabilizada pelas práticas de seus fornecedores, porque não possui qualquer relação de trabalho com produtores de cacau e também porque não tem “poder de polícia” para inspecionar fazendas.

A multinacional alegou ainda que já exige em contratos que seus fornecedores declarem não utilizar mão de obra infantil ou análoga ao trabalho escravo.

Além da indenização, a Justiça também determinou que a Cargill formalize, em até 30 dias, contratos com produtores e fornecedores de cacau, com a inclusão de cláusulas sociais contra a utilização de trabalho infantil. A multinacional tem 60 dias para criar um mecanismo de controle “no âmbito dos departamentos de compras”.

A sentença determina ainda que a empresa crie, em até três anos, campanha publicitária permanente contra trabalho infantil e escravo.

Produção concentrada no Pará e na Bahia

Um relatório da Repórter Brasil mostrou que pelo menos 148 trabalhadores foram resgatados em fazendas de cacau durante fiscalizações realizadas entre 2005 e 2019 pelo governo federal. Flagrantes de violações se concentram na Bahia e no Pará, líderes na produção de cacau no Brasil.

•        Íntegra da nota enviada pela Cargill

“A Cargill não comenta processos em segredo de Justiça, em respeito à decisão do Tribunal Superior do Trabalho. A Cargill não tolera tráfico humano, trabalho forçado ou infantil em suas operações ou cadeia de suprimentos. Tomamos medidas para entender os potenciais problemas, ao mesmo tempo que continuamos trabalhando ativamente para proteger os direitos humanos, com um comprometimento firme de proteger os direitos da criança em todo o mundo. Apoiamos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU de promover trabalho decente para todos, incluindo o objetivo de eliminar o trabalho infantil. No Brasil, todos os fornecedores são verificados em relação às listas de embargo do governo e, se forem identificadas violações, tomamos medidas imediatas para suspender o fornecedor. Essa meta será atingida como parte do programa “Cargill Cocoa Promise”, o qual inclui as regiões de originação no Brasil. A Cargill também é signatária da iniciativa multisetorial “Cocoa Action”, uma ação pré-competitiva que alinha diferentes atores da cadeia para catalisar esforços e endereçar problemas prioritários para a sustentabilidade do cacau. Em mais de seus 56 anos presente no Brasil, a Cargill tem demonstrado esse comprometimento na observância e conformidade com todas as leis vigentes e aplicáveis aos seus negócios. Levamos esse compromisso a sério e exigimos que nossos fornecedores e parceiros se juntem a nós na priorização da segurança, bem-estar e dignidade dos indivíduos. Mais informações sobre o compromisso da Cargill com os ODS-08 especificamente para cadeia do cacau podem ser encontradas aqui“.

 

       Fazenda de condenado pela Chacina de Unaí é palco de trabalho escravo

 

Uma fiscalização do poder público federal resgatou 84 trabalhadores de condições análogas às de escravo no cultivo de cebola, em Água Fria de Goiás (GO), na fazenda São Paulo. Ela é administrada por Marcos Rogério Boschini, que tem um contrato de parceria com o dono da propriedade, Antério Mânica, seu sogro, condenado como um dos mandantes da Chacina de Unaí.

Em 28 de janeiro de 2004, os auditores fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira foram executados em uma fiscalização rural de rotina em fazendas no Noroeste de Minas Gerais. Por conta disso, nessa data celebra-se anualmente o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.

De acordo com a equipe de fiscalização, formada por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, procuradores do Ministério Público do Trabalho e agentes da Polícia Federal, o alojamento estava superlotado, com mofo e forte odor. Abrigava os 84 resgatados, apesar de comportar não mais que 30 pessoas. Por vezes, a fossa transbordava espalhando o mau cheiro.

Não havia sanitários e garantia de água potável na frente de trabalho. Parte dos trabalhadores não tinha descanso semanal. Reclamavam da qualidade e da quantidade de comida disponibilizada.

A ação na fazenda São Paulo foi a segunda maior em número de trabalhadores da Resgate 3, uma megaoperação que resgatou 532 pessoas em 22 estados e no Distrito Federal no mês de agosto (a maior, com 97 vítimas, ocorreu em uma fazenda de cultivo de alho em Minas Gerais).

Segundo o auto de infração, a fazenda São Paulo pertence à Terra Bela Agropecuária, de propriedade de Antério Mânica e filhos. Há um contrato de parceria agrícola entre eles e Marcos Rogério Boschini, que é casado com Márcia Mânica, filha de Antério.

Boschini e a esposa, por sua vez, são sócios da empresa ADF Distribuidora de Hortifrutigranjeiros, que administra o cultivo de cebola. O registro dos trabalhadores estava no CPF dele.

O empregador pagou o valor das verbas rescisórias determinadas pela Inspeção do Trabalho e danos morais individuais a cada um dos trabalhadores, segundo Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado com o MPT. Os auditores e procuradores identificaram condições degradantes e jornada exaustiva, dois caracterizadores de escravidão contemporânea.

À reportagem, Marcos Rogério Boschini manifestou discordância com o resultado da fiscalização e com informações veiculadas sobre ela. Diz que o acordo com o MPT “não se refere à trabalho degradante ou análogo à escravidão”.

Ainda ressalta que “desconhece o conteúdo de eventuais autos de infração, uma vez que até a presente data não os recebeu”. E afirma que pode vir a acionar a Justiça, caso discorde deles.

Questionado sobre o resgate na fazenda São Paulo, o advogado de Antério Mânica afirmou que eles não têm “nenhuma informação por desconhecer o auto de infração ou o procedimento”.

·         Condenados ainda não cumprem pena pela chacina

Os irmãos Antério e Norberto Mânica foram apontados como os mandantes da Chacina de Unaí pela Polícia Federal seis meses após o crime. Desde então, entre ida e vindas, julgamentos e anulações, eles foram condenados. Porém, aguardam recursos em liberdade.

O motorista Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel parou o carro da equipe e homens fortemente armados teriam descido e fuzilado os fiscais. Os auditores fiscais morreram na hora.

O inquérito apontou que a motivação do crime foi o incômodo provocado pelas multas impostas à família de fazendeiros, sendo que o auditor fiscal do trabalho Nelson José da Silva era o alvo principal. Ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em infrações por sistematicamente descumprirem as leis.

Mesmo após ser vinculado à chacina, Antério foi eleito prefeito de Unaí, em 2004, com 72,37% dos votos válidos. E reeleito em 2008. Em novembro de 2008, chegou a ser um dos condecorados com a Medalha da Ordem do Mérito Legislativo, em cerimônia promovida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Antério foi condenado 100 anos de prisão, em 2015, mas teve o julgamento anulado. Em maio do ano passado, foi condenado novamente a 64 anos.

Aguardando o processo em liberdade, ele pediu votos à reeleição de Jair Bolsonaro no ano passado através de um vídeo que circulou pelas redes sociais.

·         Trabalho escravo contemporâneo no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 61,7 mil trabalhadores resgatados, desde 1995, estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades. Em 2021 e 2022, 30 pessoas foram resgatadas por ano do trabalho escravo doméstico.

A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

 

Fonte: Reporter Brasil

 

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