Duas vitórias da Constituição
Os fatos políticos desta semana reafirmaram duas
grandes vitórias da Constituição de 1988 em nome do respeito aos ritos
democráticos e à restauração do Estado Democrático de Direito. No próximo dia 5
de outubro, a “Constituição Cidadã”, conforme a definição emocionada do
presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães,
cujo belíssimo e vibrante discurso assisti presencialmente no Plenário da
Câmara dos Deputados, em Brasília, completa seus 48 anos. É um dos mais
longevos períodos de plenitude democrática da vida política brasileira.
Mas parece que foi ontem. Ainda reverberam nos
ouvidos dos que têm um mínimo de prurido democrático, as palavras do saudoso
Dr. Ulysses, o “senhor Diretas”, que em nome do pragmatismo da volta possível
ao Estado Democrático de Direito, após a derrota da Campanha pela Eleição
Diretas-Já, em 1984, teve de aceitar a candidatura indireta de Tancredo Neves,
com a promessa de convocação da Constituinte. Disse o Dr. Ulysses sábias
palavras:
- A persistência da Constituição é a sobrevivência
da democracia. Quando, após tantos anos de luta e sacrifícios, promulgamos o
estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua
honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que
ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina - afirmou.
Confesso que, ao reler o texto que trouxe para esta
coluna, senti um tremor, um fervor cívico que não tinha alcançado na
“juventude” dos meus 38 anos.
A força da Democracia
Os acontecimentos desta semana reforçaram a força
da Democracia, cujos amplos propósitos estão definidos na Carta de 1988. O
Supremo Tribunal Federal, como representante do Poder Judiciário, tem
desempenhado com rigor e altivez seu papel chave de guardião da Constituição e
do Estado Democrático de Direito. Vários ministros passaram pelas 11 cadeiras
do Supremo deste então. Uns honrando mais que outros(as) as suas
responsabilidades. Na semana em que a presidente do STF, ministra Rosa Weber,
encerra sua jornada no STF, pois atinge a idade da aposentadoria compulsória
(75 anos) no dia 2 de outubro, cedendo a cadeira de presidente, pelos próximos
dois anos, ao vice-presidente, ministro Luís Roberto Barroso, o Supremo
Tribunal Federal voltou a se postar como guardião da Democracia. A democracia é
uma bela flor a qual só damos valor quando a perdemos.
O rigor do STF ao reagir, sob a liderança do
ministro Alexandre de Moraes, que aglutinou em torno das investigações sobre as
“fake news”, a todas as mais variadas tentativas de supressão do Estado
Democrático de Direito, resultou nos inquéritos que a Polícia Federal, por
instrução da Procuradoria Geral da República, está conduzindo sobre o papel de
cada um dos 1.125 detidos na última das tentativas de provocar o caos político
em Brasília, com a invasão e depredação das sedes dos três Poderes da
República, no 8 de janeiro - as sedes do Executivo (Palácio do Planalto), do Legislativo
(Congresso e plenários da Câmara e Senado) e mais o Judiciário (prédio do
Supremo Tribunal Federal) - foi exemplar. Já ocorreram as primeiras e pesadas
quatro condenações em julgamentos individuais, com penas até 17 anos. Outros
301 indiciados já manifestaram desejo de acordo no julgamento por voto
eletrônico.
·
Apuração de
responsabilidades
Falta, no entanto, o mais importante: separar a
responsabilidade daqueles que atuaram como massa de manobra – embora alguns
tenham ido longe demais, como os envolvidos na tentativa de explosão, com
bomba, de um caminhão tanque de querosene de aviação num sábado de novembro no
Aeroporto de Brasília – daqueles que foram os financiadores e mentores dos atos
contra a democracia em nome da implantação de uma ditadura militar no país sob
o controle das Forças Armadas e, se possível, com Jair Bolsonaro no comando.
As supostas confissões, em acordo de leniência com
a Polícia Federal, homologado pelo ministro Alexandre de Moraes, do ajudante de
ordens do gabinete da Presidência da República, tenente-coronel Mauro Cid,
prometem facilitar, nas investigações e oitivas para confirmar o que disse o
militar, o real envolvimento das altas patentes militares. A reunião, convocada
por Bolsonaro com o alto comando das forças armadas, teria ocorrido em 24 de
novembro. O jornal “Folha de S. Paulo” publicou sábado, em detalhes, alguns dos
bastidores das reuniões que antecederam este 24 de novembro. Daria um filme.
Uma revelação engraça – mas sutil – foi o aviso,
pelo zap, ao ministro Alexandre Moraes, que há mais de dois anos fazia
musculação na Academia do QG do Exército, o famoso “Forte Apache”, diante do
qual acampavam hordas de futuros golpistas, de que “a Academia entraria em
obras pelos próximos dois meses”. Moraes, que não é bobo, guardou a senha e o
login.
Já escrevi aqui há alguns meses para louvar o papel
legalista dos generais quatro estrelas Tomás Paiva (atual comandante do
Exército), que então chefiava a região militar do Sudeste, Fernando Soares, que
comandava o Sul, e Ricard Nunes, que comandava o Nordeste, e fizeram chegar ao
então comandante do Exército, general Freire Gomes, entre o 1º e o 2º turno,
quando se consumou a derrota de Bolsonaro, que não mobilizariam as tropas numa
investida para declarar nulo o resultado das urnas, que supostamente ainda
incluía um decreto de prisão do presidente eleito Lula e dos ministros do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal.
Freire Gomes, que foi substituído por Tomás Paiva
no fim de janeiro, após o fracassado golpe de 8 de janeiro, quando alas do
Exército fizeram corpo mole e o próprio comandante resistiu a remover os
acampamentos dos radicais bolsonaristas que pediam intervenção militar entre
novembro e dezembro, foi quem teria transmitido ao presidente da República,
comandante em chefe das Forças Armadas, nesta reunião de 24 de novembro, a
oposição da maior força do país a um golpe. O ministro da Marinha, almirante
Almir Garnier, teria se alistado imediatamente às intenções golpistas de
Bolsonaro. Já o brigadeiro Carlos Batista, da Aeronáutica, ficou calado (mas,
como diz o ditado, quem cala, consente).
Tudo precisa ser esclarecido, incluindo a posição
dos generais e almirantes que cercavam, em trajes civis, o ex-presidente
Bolsonaro no Palácio do Planalto (e depois da derrota, no Alvorada). A saber, o
general Braga Neto, que deixou o Ministério da Defesa, em abril, para compor a
chapa eleitoral como candidato a vice. Seu sucessor, o ex-comandante do
Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, que fez a maior carga contra as urnas
eletrônicas. O general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI) – sem esquecer que o general Heleno já conspirou, em pleno
regime militar, com o então ministro do Exército, Sylvio Frota, a quem servia
como ajudante de ordens, para depor o presidente da República, general Ernesto
Geisel, em outubro de 1977. O feitiço virou contra o feiticeiro. Geisel
neutralizou o golpe, convocando os generais do comando do Exército e demitiu o
general Frota.
Falta averiguar a responsabilidade do general Luiz
Eduardo Ramos, que ocupou os mais variados ministérios. Líder da Brigada de
Paraquedista (arma de Bolsonaro ao ser expulso do Exército, em 1988), a brigada
sempre liberava uma tropa de choque de se infiltrava vestida de preto em vários
comícios e arruaças promovidas por Bolsonaro desde 2021. O objetivo era
insuflar o caos, para, com o acionamento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO),
deixar o país sob o comando das Forças Armadas. E ainda o almirante Flávio
Rocha.
·
Bola fora de Múcio
Diante da reação da sociedade civil e dos poderes
que zelam pela Constituição soou muito mal a tentativa apaziguadora do ministro
da Defesa, José Múcio Monteiro, de creditar ao espírito legalista das Forças
Armadas a manutenção da democracia no país. Não, o país não está hoje
mergulhado em uma ditadura como uma republiqueta latino-americana porque as
forças democráticas da sociedade civil reagiram.
A começar pela imprensa que expôs à farta as
arruaças da noite de 12 de dezembro, quando após a promulgação da eleição de
Lula e Alkimin pelo STE, homens de preto lideraram um quebra-quebra na
Esplanada dos Ministérios, com incêndio de automóveis e ônibus e depredação de
uma delegacia do DF, e mais a invasão da portaria da Polícia Federal. O Supremo
sempre esteve vigilante, avocando para as asas do ministro Alexandre de Moraes
(mais prevenido do que nunca) a extensão destas investigações, face sua conexão
com todo o arcabouço de golpe desenhado desde a eleição.
A própria organização da campanha de Luís Inácio
Lula da Silva teve papel preventivo contra a tentativa de golpe ao acionar as
chancelarias das nações de maior influência política-democrática no mundo – em
especial os Estados Unidos, México, Canadá, as nações da União Europeia, o
Japão – para que dessem imediato reconhecimento ao vencedor do processo
eleitoral, o que desarmou os espíritos. Emissários das Forças Armadas dos EUA
disseram aos comandos militares que o governo Biden não apoiaria nada fora da
ordem Constitucional e das regras eleitorais. Por isso, Biden e os dirigentes
europeus parabenizaram Lula pela vitória minutos após o TSE proclamar o
resultado.
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Quem era o cabeça?
Cabe, portanto, para a Constituição de 1988
prevalecer, estabelecer e punir a efetiva e inegável responsabilidade do ex-presidente
Jair Bolsonaro no “start” do golpe. Se o golpe tivesse prevalecido, certamente
outra determinação da Constituição - o direito natural dos povos indígenas, que
estavam no Brasil antes do Descobrimento e na expansão territorial que dobrou a
área inicial do Tratado de Tordesilhas -, reafirmada por 9 x 2 pelo Supremo
Tribunal Federal, seria letra morta. Se depender dos trogloditas que depredam
as terras indígenas e as reservas florestais, seria restabelecido o sistema de
donatários de Capitanias Hereditárias, com farta distribuição de sesmarias, sem
qualquer preocupação com o meio ambiente e os povos originários.
Bolsonaro alega que sempre jogou “dentro das quatro
linhas da Constituição”. O VAR diz que não. Ou melhor, uma auditoria da
Controladoria-Geral da União (CGU) mostra que afora minar as urnas eletrônicas,
nem as regras eleitorais foram respeitadas. A administração usou farta
distribuição de verbas públicas para aliciar eleitores a votar na reeleição do
presidente, com o aumento do Auxílio Emergencial de R$ 400 para 600 mensais, de
julho a setembro, além da distribuição de R$ 1 mil a taxistas e caminhoneiros,
no mesmo período.
Segundo a CGU, o governo do ex-presidente Jair
Bolsonaro liberou 84% de todo o recurso de auxílios financeiros durante o período
eleitoral de 2022. No período de agosto a outubro, até o final do 2º turno, a
gestão Bolsonaro pagou R$ 9,77 bilhões do total de R$ 11,65 bilhões previstos
no ano em empréstimos consignados do Auxílio Brasil, do Auxílio Caminhoneiro e
do Auxílio Taxista, impactando 3,7 milhões de pessoas/eleitores.
Para o ministro da CGU, Vinícius de Carvalho, os
relatórios indicam, “um claro uso desses instrumentos de maneira inadequada
durante o período eleitoral”. Um dos usos mais escandalosos foi a abertura pela
Caixa Econômica Federal dos empréstimos consignados aos beneficiados do Auxílio
Emergencial (com prazo até 31 de dezembro, assim como o Auxílio Taxista e o ao
Caminhoneiro).
Foi uma farra tremenda para cooptar o eleitor (os
que iam votar em Lula na Bahia e no Nordeste eram barrados em morosas revistas
da Polícia Rodoviária Federal). No caso do Auxílio Taxista, quase oito em cada
dez dos 246 mil beneficiários (78%) estavam foram do perfil. Pessoas que nem
tinham carteira de motorista receberam o recurso. Só desse benefício foram R$
1,4 bilhões enviados. No somatório total, foram R$ 1,97 bilhão em potenciais
pagamentos indevidos de todos os benefícios. E ainda assim, deu Lula. E a
Constituição.
Fonte: Por Gilberto Menezes Côrtes, no Jornal do
Brasil
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