Demarcação de terras indígenas x latifúndios: a grande tramoia
brasileira
Tramoia. Essa é a palavra que, para o
documentarista e antropólogo Vincent Carelli, traduz a relação entre ruralistas
e os poderes constituintes do Brasil. “Essa questão fundiária no Brasil é uma
grande tramoia”, pontua. Nessa equação, quem segue perdendo são os povos
indígenas. Para Carelli, quase nada mudou desde a chegada das primeiras naus
europeias no século XVI. “O fazendeiro que atira num índio hoje, reproduz o
mesmo gesto do bandeirante caçador de índios e de escravos”, dispara. “O índio
é tolerado, sob vigilância e num processo exaustivo de apagar a sua diferença,
apagar sua língua, esquecer sua cultura”, completa, durante entrevista
concedida por telefone à IHU On-Line.
Carelli ainda destaca que outra marca dessa expropriação é a constante
tentativa de revogar as poucas conquistas de povos originais. “A Constituição de 1988 passou a ser mais
generosa, mas a relação continua sendo de expropriação. Por isso também temos
essa tradição militar com toda a questão indígena de forma recorrente”,
analisa. Para ele, é mais do que necessário assegurar o que já foi conquistado
e trazer à mesa de forma clara a pauta de discussão sobre mais áreas que
precisam ser demarcadas. “Sem demarcação não há possibilidade de uma sobrevida
enquanto sociedade”, enfatiza.
Vincent Carelli é antropólogo, indigenista e documentarista
franco-brasileiro. É o idealizador do projeto Vídeo nas Aldeias, que forma cineastas indígenas. Estudou Ciências
Sociais na Universidade de São Paulo e desde 1973 está envolvido com projetos
de apoio a grupos indígenas no Brasil. Integrou a Fundação Nacional do Índio –
Funai, foi jornalista e repórter fotográfico. Ainda foi editor fotográfico e
pesquisador do Projeto Povos Indígenas no Brasil do CEDI – Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (sucedido pelo Instituto Socioambiental). Em 2009, seu
documentário Corumbiara,
longa-metragem que conta a história de um massacre de indígenas ocorrido em
1985 na Gleba Corumbiara, no sul de Rondônia, foi premiado como melhor filme do
37º Festival de Cinema de Gramado. Recentemente, lançou Martírio, que retrata violência sofrida pelos povos Guarani Kaiowá.
>>>> Confira
a entrevista.
·
Como compreender a
relação que há do Estado brasileiro para com os povos originais?
Vincent Carelli – A relação é de dominação, é o processo colonial que quer se
apoderar de recursos naturais. E isso se dá desde o descobrimento. É uma
conquista sobre os povos indígenas,
de expropriação desses povos. O tempo todo, em todo país, há uma frente que vai
avançando e tem várias estratégias. A primeira foi enviar a espada e a
cruz. Índio que
resistia era morto, e índio que não resistia era mandado para as missões. É um
processo contínuo e repetitivo de expropriação do território indígena.
·
O senhor descreve uma
lógica que remente ao período do descobrimento, da chegada do europeu ao
Brasil, e até o período colonial. Com isso, podemos compreender que a lógica
ainda é a mesma hoje em dia?
Vincent Carelli – Claro, é igualzinho. O fazendeiro que atira num índio hoje, no século XXI, reproduz o mesmo gesto do
bandeirante caçador de índios e escravos. Não mudou nada. O índio é tolerado,
sob vigilância e num processo exaustivo de apagar a sua diferença, apagar sua
língua, esquecer sua cultura. Muito recentemente, o Brasil chegou a ameaçar ser
moderno, depois voltou para trás. A Constituição de 1988 passou a ser mais
generosa, mas a relação continuou sendo de expropriação. Por isso também temos
essa tradição militar com
toda a questão indígena de
forma recorrente.
·
Qual a questão de fundo
no conflito entre índios e não índios no Brasil de hoje?
Vincent Carelli – O que está por trás é justamente essa relação de Estado. Quem
vendeu as terras Guarani Kaiowá? O Estado, o estado federal e o estado de Mato Grosso. Tudo foi feito numa
tramoia. Resolviam questões trabalhistas de empresas que fechavam, e que deviam
ao Estado, com titulação de terras. Resolviam a papelada do lote, chegavam e
marcavam não sei quantos lotes, com esse discurso ruralista. Todos os
documentos de posse daquela região foram uma falácia; o relatório de Pimentel Barbosa, só em demarcar
aquelas reservas, já flagrou vários casos de grilagem das aldeias. Essa questão fundiária no Brasil é uma grande tramoia.
·
Quais os maiores erros da
política indigenista brasileira ao longo de sua história?
Vincent Carelli – É a questão militar,
essa postura de ter que controlar os índios. Anos atrás, por exemplo, os índios eram proibidos de falar
a própria língua. É como se os índios pudessem tramar alguma insurgência. A
atitude era de opressão mesmo. As atitudes dos chefes de postos do Serviço de Proteção aos Índios – SPI
eram essas, eram coronéis com revólver 38 na cintura, os índios eram obrigados
a fazer trabalhos forçados… O final do SPI é uma tragédia. O Relatório Figueiredo mostra isso, todo
aquele trabalho escravo, arrendamentos irregulares etc. E os arrendamentos que o [presidente Michel] Temer está reeditando vivem à revelia, ao arrepio da Constituição. Em grande parte das reservas dos Kaingang, os arrendatários viraram proprietários, e
as reservas foram encolhendo. Reeditar, neste momento, arrendamento de área
indígena é, sim, retroceder muitos anos.
·
A que o senhor atribui
essa recente ofensiva contra as terras indígenas?
Vincent Carelli – Não é neste momento, vem de muito tempo. Só que, agora, os
ruralistas que queriam a PEC para trazer a decisão sobre regulamentação de
áreas indígenas para o Congresso já
nem estão mais falando nisso, porque eles estão no poder. Eles são o Executivo, e agora nem precisa mais
de PEC, pois eles resolvem,
botam decretos para arrendar, enfim… A bruxa está solta. Como o país não tem
comando, agora pode matar mesmo, porque não vai ter investigação, não vai ter
coisa nenhuma. Eles estão bem à vontade, estão com a faca e o queijo na mão.
Aquele tipo de ataque que está retratado no filme [Martírio] acontece todo o dia.
·
O senhor diz que essa
ofensiva não é de agora. Ocorre desde quando?
Vincent Carelli – Ela ocorre toda vez que há uma resistência dos índios. Eles foram, ao longo de décadas,
deportados e confinados em oito pequenas reservas que não somavam nem 20 mil
hectares. A vida foi ficando impossível, pois os grupos deportados para a
reserva vão para uma área que não é deles, é de um outro grupo. Dourados tem 18 mil índios em 2.500 hectares. Quem
consegue plantar sob essas condições? E ainda há o arrendamento das terras.
O resultado são suicídio, mortalidade infantil,
guerra entre os povos – porque Rondon
ainda fez o favor de trazer os Terena para
a reserva de Dourados,
sendo que os Terena eram os inimigos tradicionais dos Kaiowá. Assim, tudo aquilo virou um
imbróglio. Além disso, assassinatos e tantos conflitos internos, e mais ainda
com fazendeiros, sem qualquer chance de subsistência, porque não tem terra para
todo mundo plantar. Sob essas condições, a única opção de trabalho acaba sendo
o trabalho escravo no corte da cana, que é algo que
a pessoa aguenta alguns anos e depois não dá mais. Quando essa grande crise
estoura, no final dos anos 1970, quem assume alguma esperança?
>> “Gatos” e
rezadores
Os capitães
Kaiowá eram “gatos”. O termo “gato”, usado na Amazônia, é aquele que alicia a mão de
obra. A fazenda contrata o “gato”, que reúne os trabalhadores numa forma
de trabalho escravo. Então,
o capitão vira o “gato” e esse agenciador acaba ganhando por cabeça de
trabalhador. Assim, em vez de os fazendeiros irem direto pegar mão de obra
indígena, eles precisavam passar primeiro pelo posto do SPI, e depois da Funai, e, aos poucos, os capitães
indicados pelo SPI e pela Funai vão assumindo essa função. Essas pessoas não
tinham o menor interesse em recuperar as áreas das aldeias de onde vieram.
Quem assume o comando desse movimento que buscava
recuperar as áreas indígenas são
os rezadores. Fazem isso
numa visão muito própria deles, de que a terra pertence ao criador, não pode
ser apropriada, pois é para uso de todos, mas eles são o povo eleito para
proteger as florestas e a terra em que vivem. O processo de retomada se torna
um longo ritual que primeiro consiste em conseguir reunir os membros das
famílias dispersas nas reservas. Depois, iniciam um processo de reza, que pode
levar dois ou três anos, que culmina num batizado, pois eles fazem essa reza
toda para se proteger. O sinal da retomada é transmitido aos rezadores no
processo de reza e essa oração intensa é feita para proteger, porque eles vão
certos de que não vai acontecer nada. Se acontece um incidente, matam um ou
dois, é porque a reza não foi forte o suficiente e tem que começar de novo. A
natureza desse processo é condizente com a visão cosmológica deles, e seguem uma linha de pensamento
ativa muito própria deles.
·
Na sua fala, podemos
perceber a centralidade da terra. Mas percebemos também a diferença de
concepção sobre o que é a terra para índios e não índios. É por isso que se dá
o conflito?
Vincent Carelli – É isso. Penso que a outra visão é de que a propriedade privada é a coisa mais sagrada
do mundo para o ser humano. Isso está na boca do Caiado ou do Lupion.
Veja: é a propriedade da terra, não é a terra.
·
Então, a demarcação de
terras continua sendo a grande luta dos povos indígenas no país?
Vincent Carelli – Sem demarcação, não há possibilidade de uma sobrevida enquanto
sociedade. Esses padrões econômicos que eles, os ruralistas, acham que é legal é o que suplanta tudo. Isso ocorre
em qualquer Brasil rural em
que essa necessidade econômica imposta pelos ruralistas vem sempre antes.
·
Quais são os desafios
para aproximar esses dois mundos, mostrando que é possível uma outra relação
com a terra, não apenas pelo viés econômico?
Vincent Carelli – Quanto mais elite, maior é o ódio, o desprezo pelos índios, porque estão
disputando terras, recursos. Eu acho que não tem mais como aproximar esses dois
mundos. Tem que formar uma nova geração. Mas agora, com a educação dando marcha
a ré, fica difícil.
·
As primeiras cenas de
Martírio revelam sua entrada nas comunidades indígenas ainda no início da
década de 1980. O que mudou na luta desses povos, comparando aquele momento com
a atualidade?
Vincent Carelli – A demanda dos índios aumentou.
Nos primeiros 20 anos, eles conseguiram duplicar a área deles, conseguiram
reconquistar cinco áreas. Isso levou 20 anos, ao custo de muitas mortes. Hoje,
tem mais de 30 áreas em demanda e isso não vai parar.
·
Mas como é essa luta
hoje, é mais desigual? Pois de lá para cá tivemos uma nova Constituição.
Vincent Carelli – Martírio é
endereçado diretamente ao Supremo
Tribunal Federal – STF. A Constituição está
sendo desmontada, basta ver as PEC em
todas as áreas. Ela está sendo desmontada pelo Congresso, através das PEC, e pelo Supremo, justamente na criação dessa coisa esdrúxula que chamaram
de “marco temporal”. Isso veio no pacote da decisão aparentemente
favorável de reconhecimento das terras da reserva Raposa Serra do Sol, que foi um acordo fechado
depois de uma pressão internacional. “Tudo bem, mas essa foi a última”. Foi
esse o recado do Supremo com
suas condicionantes, como a de que jamais uma área indígena demarcada poderá ser ampliada, e com o
marco temporal, que diz que os índios que em outubro de 1988 estavam naqueles
locais poderiam reivindicar aquelas terras. Aqueles que não estavam, adeus e
“babau”.
Esse é exatamente o caso dos Guarani Kaiowá. Por que não estavam lá
em 1988? Porque foram deportados e confinados em outros lugares por ação dos
fazendeiros, por ação dos agentes do Estado e pela Missão Evangélica Caiuá, que fez uma
parceria diabólica com o SPI.
Iam para os lugares que não estavam nas reservas e diziam: “Você quer saúde?
Ah, mas só atendo lá na reserva. Quer escola para teu filho? Mas só se for na
reserva”. Essa foi a parceria que está recebendo não sei quantos milhões para
tratar de saúde indígena no país, por conchavo de seu Jucá, que já foi presidente da Funai e que justamente abriu as
áreas indígenas para mineração, garimpo de ouro, madeireiras. Ele está sempre
nessa mesma frequência.
·
No documentário, o senhor
reconta a história de um ataque de índios a um fazendeiro. A sua narrativa
subverte a que circulou nas redes sociais e na grande mídia, que colocava os
índios como algozes. O que essa passagem revela para o senhor?
Vincent Carelli – Revela a manipulação das direções, e é por isso que eu fiz
questão de ir atrás. Como foi uma notícia tão debatida, compartilhada,
divulgada, fiz questão de ir lá conferir como é que, verdadeiramente,
aconteceu. Então, chegou um cara com uma arma, atirando nas pessoas, ou seja,
mostrei a história ao revés. Eu achei a história meio esquisita porque os
índios não atacam, a insurgência de Guaranis é pacífica, porque eles sabem muito bem que a
relação de forças é desigual. Há massacres históricos que começam no século
XVII com a Guerra Guaranítica e seguem ao longo dos
tempos, mostrando que essa relação de forças não é para brincadeira. Até nessa
história do filme tem um momento engraçado em que o repórter fala que “os índios saem de seu esconderijo
fortemente armados”, e aí aparece um índio com um arquinho, flechinha… Toda a
plateia que assiste isso [no filme], ri.
Fato é que a perspectiva dos índios é pacifista, é de
resistência. Eles pensam: “Estou aqui, vou ficar aqui, porque é meu”. E o
discurso é sempre assim: “Tudo bem, você quer me tirar? Então, é melhor você me
matar, porque daí eu sou enterrado aqui e, de algum jeito, fico aqui”. Por
isso, quando ouvi falar em índios assassinos, pensei: “Opa. Isso não é bem
assim. Preciso ver isso, quero saber a versão dos índios”. Eu achei importante,
era um desafio, mas valeu desconstruir essas versões.
·
Esse episódio também traz
um outro ponto: mulheres indígenas da própria aldeia que vendem para
fazendeiros o vídeo do suposto ataque, que constitui a versão de que os índios
haviam atacado primeiro. O que esse tipo de relação também revela?
Vincent Carelli – Isso não é uma categoria do índio. Em qualquer comunidade há o traidor. Foram duas índias que
eram merendeiras nas escolas das fazendas que venderam o vídeo. E, inclusive,
uma outra mulher fala: “Elas são loucas por dinheiro, são bem próximas dos
produtores”. Eu também fiz questão de mostrar isso, porque não adianta dizer:
índio está no lado bom, e branco é mau. Não podemos ser maniqueístas assim, em
todo movimento há o traidor, seja por interesses pessoais ou por outros
motivos. Isso serve para complexificar, para não ficar somente no preto ou
branco. E há muitos problemas. As sequelas psicológicas, sociais, culturais e
as condições de vida que eles têm enfrentado são questões seríssimas.
·
Como o senhor avalia a
cobertura que a imprensa dá aos conflitos de terras envolvendo povos indígenas?
Vincent Carelli – Não é só uma questão regional [de Mato Grosso], é nacional. A Bandeirantes, a Globo,
são latifundiários; toda a grande mídia nacional repercute o discurso
ruralista. Dizem que os índios querem 40% do Estado, quando querem 4%. E não há
regionalismo ou qualquer argumento que possa contrapor, não se chega a dados
etc. Funciona como uma caixa de ressonância de um discurso inflamado dos
ruralistas. Isso não é só no que se refere à questão indígena; nunca se viu uma
imprensa tão parcial.
·
E como o senhor vê o
papel das redes sociais?
Vincent Carelli – Para os índios,
é uma maneira de fazer chegar a informação pelo menos a uma rede de aliados.
Recebemos notícias de um ataque ao vivo. Eles aprenderam a fazer o midiativismo, porque todo mundo tem
celular e grava as coisas. Esta é a única janela de comunicação mais direta.
·
Como compreender a
resistência que tem havido dentro do Ministério da Justiça com relação ao
trabalho de antropólogos, muitos tendo até a legitimidade de suas pesquisas
questionadas?
Vincent Carelli – É uma safadeza, é o Brasil obscurantista.
Qual é o técnico do Ibama ou
seja lá do que for que vai saber avaliar e olhar devidamente um povo ou um
território? Esse movimento faz parte da jogada toda. Está se criminalizando
esse trabalho. Lá na CPI [da Funai] foram criminalizadas 90 pessoas entre
procuradores, advogados, antropólogos e até jornalistas. Depois, viram que
“pegava mal” e tiraram os procuradores da lista. Tudo isso faz parte de uma
grande estratégia de criminalizar exatamente quem tem competência para fazer
esse trabalho. Assim, fica fácil fazer qualquer discurso.
Eu vi todos os relatórios de demarcação dos grupos de trabalho formados
na Era Lula e
constatei que são trabalhos da maior seriedade, feitos por profissionais,
historiadores. E por isso que agora o “bicho papão” virou antropólogo. Fui
mostrar o filme nos acampamentos onde ele foi filmado e no final me
perguntaram: “Mas você não é antropólogo?”. Falei que não. Se falasse que era
antropólogo, não sei o que teria acontecido comigo. É aquela piada do Caiado discursando: “Até quando
vai chegar um antropólogo na sua propriedade, sonhando que ali tinha índios”.
Essa é a chacota dos ruralistas.
·
No filme, o senhor
retrata também a forma como a luta indígena é tratada em Brasília,
especialmente por parlamentares no Congresso. O que essa experiência revelou?
Vincent Carelli – Era preciso ouvir os dois lados, a ideia era essa. O palco
do ruralista é o Congresso e ali eles expressam os
clichês e os preconceitos clássicos contra os índios. Dizem que índios são
vagabundos, que relatório de demarcação é uma piada. Primeiro que eles querem
falar de forma rebuscada sem saber, é algo que se faz ridículo do começo ao
fim. Depois, tem aquele falso discurso nacionalista, quando o Heinze balança um papel e diz: “O rei da Noruega
veio aí visitar os Yanomami,
e quem dirá que a Noruega e outros países não invadirão o Brasil para tomar nosso
petróleo?”. Agora, veja que gozado: sabe quem comprou a primeira cota de
pré-sal, para leiloar o país? A Noruega.
Sempre digo que Noruega e esses outros países não precisam invadir o Brasil.
Isso está fora de moda. Eles compram o Brasil. Ou seja, é um discurso
completamente falso.
E ainda tem aquele teatro que fazem, dizendo: “Só
por cima de meu cadáver! Os índios
são paraguaios!”. Aliás, por isso a necessidade de voltar à Guerra do Paraguai. A grande
acusação é de que os índios são do Paraguai e que estão invadindo o Brasil. Espera lá: foi o Brasil quem
anexou essa área que era do Paraguai.
Na verdade, para eles, os índios são os fantoches. Aquele
velho discurso militar paranoico de que o mundo vai tomar a Amazônia coloca desta vez a Funai, um órgão do Estado brasileiro,
com ONGs internacionais como se quisessem desestabilizar a economia da
agricultura brasileira ou tomar a Amazônia. E o que o Temer faz? Baixa um decreto autorizando “os gringos” a comprar terras na Amazônia. O discurso é um, e a prática é radicalmente oposta. É de uma
hipocrisia sem tamanho, e com esse discurso e depois a prática, eles acabam se
revelando. Isso é ótimo, é um registro maravilhoso ter isso exposto assim no
filme. Já pensou nos índios assistindo? Tenho passado muito o filme em aldeias.
O povo chora e se revolta.
·
Gostaria que o senhor
detalhasse como tem sido essa recepção nas aldeias.
Vincent Carelli – A recepção pelos índios é
muito boa, agradecem por eu ter produzido esse filme. Dizem que essa versão é
um marco. Eles choram e agradecem, e isso não ocorre só onde filmamos, pois tem
gente passando o filme em outras aldeias. Passaram na universidade em Dourados, em todas as aldeias das
cidadezinhas do entorno e inclusive o filme chegou aos fazendeiros.
Distribuímos 1.200 cópias para poderem ter e usar. Os procuradores também
ficaram com cópias, mandaram para o juiz. Em toda a região a recepção é boa.
Temos, ainda, recebido muitas pessoas pedindo para exibir o filme e fazer
grupos de debate e projeção pública.
·
E qual a reação de
indígenas quando veem no seu filme um discurso como um desses parlamentares que
o senhor cita?
Vincent Carelli – É de revolta…
·
E em Brasília, como foi a
recepção do filme?
Vincent Carelli – Foi uma catarse total. Xingavam os deputados, só não estavam
preparados porque não levaram nem ovo e nem tomate, mas, se tivessem, teriam
jogado. A plateia se insurgiu, foi maravilhoso. Foi uma sessão que os críticos
consideraram histórica. Até porque as questões estavam muito frescas ainda, as
coisas tinham acabado de acontecer.
·
Entre os parlamentares,
como foi? Alguma reação contra o senhor?
Vincent Carelli – Não, não. Contra mim, nada. Bem, a maioria das coisas que
coloquei lá [no filme], eles que postam na internet. Eu descobri que eles têm
orgulho do que dizem.
·
Como o filme tem
repercutido fora do Brasil? E como os outros países olham esses conflitos aqui
no Brasil?
Vincent Carelli – Lá fora, na Europa,
nos Estados Unidos, as
pessoas ficam chocadas. Em qualquer desses países, se um deputado fala 1%
daqueles absurdos que aqui falam, no outro dia é demitido ou pede demissão.
Essa é a parte mais chocante para eles, pois realmente é impensável. Estou
acabando de chegar do Doclisboa,
e no meio da projeção, de repente, um brasileiro levanta. Ele surtou! Começou a
xingar e a dizer: “Esse é o Brasil de
m… Olha a cara deles”. Ele gritava na sala, não aguentou o filme e foi embora.
Isso foi um brasileiro em Lisboa. Ou seja, isso é algo que realmente não desce.
Acho que um parlamentar japonês se suicidaria, mas Brasil é Brasil.
·
O que significou para o
senhor a experiência de Martírio, todo esse trabalho?
Vincent Carelli – É a maior realização da minha vida. É um filme “feito com as
tripas” e teve a felicidade de realmente comover as pessoas. O que mais se pode
esperar? É por isso que, inclusive, considero que não é um filme meu, é
do Brasil. Uma obra que
todo mundo quer assistir não se pode ficar segurando de forma unilateral. Ainda
mais num momento dramático para o Brasil. Pelo menos essa lição que os índios
dão para a gente tem que circular.
Fonte: Entrevista com Vincent Carelli, por João
Vitor Santos, no IHU
Nenhum comentário:
Postar um comentário