Assim as redes sociais sitiam o espaço público
O tema é essencial: o impacto da conectividade
global manipulada por gigantes planetários de gestão da informação, o chamado
GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft), gerando uma capacidade de
influenciar comportamentos em escala radicalmente nova, atingindo bilhões de
pessoas em todo o planeta. Há muita discussão sobre fake-news, mas a imensa
maioria utiliza as mídias sociais de maneira pouco consciente, e em todo caso
desconhecendo o uso da Inteligência Artificial, a função dos algoritmos, o
interesse dos anunciantes, e as articulações políticas, em particular com os sistemas
de segurança norte-americanos. É um universo novo, que transforma a economia, a
política, as relações sociais, a cultura, o uso do tempo, as relações de
trabalho.Nesse sentindo, o estudo de Max Fisher é uma leitura necessária.
Fisher é jornalista do New York Times, com prêmio Pulitzer, e fez a lição de
casa. Viajou para todos os países onde pesquisou os impactos desta “máquina do
caos”, inclusive no Brasil, entrevistou líderes de movimentos de diferentes
posicionamentos políticos, pesquisadores, e os líderes mundiais como Zuckerberg
e outros. Consultou material de pesquisas internas das próprias corporações de
mídias sociais. Em outros termos, temos uma primeira visão de conjunto das
dinâmicas que representa esse novo universo. As fontes são detalhadas de
maneira muito profissional – 40 páginas de notas e referências – que tornam
esse livro uma ferramenta importante. A escrita flui de maneira agradável, é um
jornalista, escreve de maneira simples e direta, tem dados suficientes para não
precisar embelezar.
É importante lembrar que esse universo que absorve
horas do nosso tempo diariamente é imensamente rentável. Estamos falando das
maiores fortunas e das maiores corporações do mundo. O dinheiro vem
essencialmente da publicidade. É importante lembrar que os acessos são
gratuitos, mas toda a publicidade que alimenta as fortunas dos gigantes da
comunicação é financiada pelas empresas que produzem os bens e serviços que
compramos, e é incorporada nos preços que pagamos. Em outros termos, este
gigante corporativo mundial é financiado por nós, no pagamento extra que
custeamos. A opção é “transformar todos os usuários em renda, vendendo
anúncios…E, conforme o fornecimento de anúncios de internet aumenta, o preço
cai. Em um memorando de 2014, o CEO da Microsoft anunciou que ‘cada vez mais, a
commodity realmente escassa é a atenção do ser humano.’”(161) A filosofia
básica? “Eles iam vender anúncios, todo mundo ia ficar rico”.(158)
A batalha, portanto, é por nossa atenção, e o
“engajamento”, ou seja, a geração de um vínculo emotivo o mais forte possível,
amarrando as pessoas na telinha. O método é simples. Usando AI e algoritmos, a
análise do uso das mídias pela população é permanentemente analisado, em
detalhe, e as mensagens que mais captam atenção, likes, comentários,
compartilhamentos, têm o seu conteúdo analisado e categorizado, identificando
os conteúdos e formatos que mais “engajam” as pessoas. Selecionando o que mais
captura a atenção, entre bilhões de mensagens, o algoritmo evolui para outra
seleção entre seleções, e assim sucessivamente, até concentrar a reprodução no
tipo de conteúdo que mais amarra as pessoas, e essas mensagens é que passam a
aparecer a cada passo, para cada usuário, segundo o perfil identificado.
De certa forma, não somos mais nós que escolhemos o
que ver, somos alimentados com o que gostamos de ver. “Em questão de meses, com
uma equipe pequena, tínhamos um algoritmo que aumentava o tempo assistido e
gerava milhões de dólares de receita extra em publicidade”, diz um
participante. “Foi muito, muito empolgante”.(147) Em termos de impacto, o
sistema, sem consciência dos usuários, passou a canalizar a atenção das
pessoas, e a confirmar visões cada vez mais estreitas, por confirmações
repetidas de diversas fontes. É o que chamamos de “bolhas”, e que Fisher chama
de “tocas de coelho”.
A gestão baseada em algoritmos que priorizam o que
maximiza a atenção, utiliza pontuação. No Facebook, “comentários curtos
ganhavam quinze pontos, recompartilhamentos e comentários longos ganhavam
trinta, recompensando tudo que provocasse uma discussão longa e emotiva.” Um
relatório interno alertou que “os conteúdos com desinformação, veneno e
violência são excessivamente dominantes entre os recompartilhamentos.” O
próprio Zuckerberg escreveu que “quando deixamos sem controle, as pessoas se
envolverão de modo desproporcional com conteúdo mais sensacionalista e
provocador.” (324, 325) A deformação ficava clara, mas o que prevaleceu foi o
interesse comercial: como o envolvimento emocional, em particular carregado de
ódio, era é que gerava mais adesão e multiplicação de mensagens, e, portanto,
mais interesse publicitário, os algoritmos foram instruídos a reforçar as
polarizações.
Ainda que Trump, Bolsonaro e outros líderes
utilizassem empresas como a Cambridge Analytica e outras empresas de difusão
direcionada por algoritmos, a realidade é que, no quadro da política de
maximização de atenção das próprias plataformas, as pessoas eram levadas à
polarização e a reações fanáticas, de tanto ver os seus preconceitos reproduzidos
e compartilhados. As plataformas geraram na realidade um sistema de seleção
negativa. Uma pesquisa de 300 milhões de comentários descobriu “como tratar
pessoas e fatos em termos moral-emotivos aguçados traz à tona os instintos de
aversão e violência no público – que é afinal de contas, exatamente o que as
plataformas sociais fazem, em uma escala de bilhões, a cada minuto de todos os
dias…Sociedades inteiras estimuladas para o conflito, a polarização e a fuga da
realidade – para algo como o trumpismo.” (211)
Importante insistir no mecanismo, que fica claro
nas análises e nos exemplos: para vender mais espaço publicitário, busca-se
maximizar o compartilhamento, e os algoritmos são instruídos para canalizar,
estimular ou abafar as mensagens de bilhões de usuários segundo este critério,
com a IA ajudando a encontrar as reorientações necessárias. Como as
polarizações emotivas, em particular os sentimentos de identidade grupal e de
ódio tribal são poderosos motivadores, terminam por dominar as mídias sociais. Em
outros termos, a deformação é embutida, e inteligentemente construída pelo
próprio critério de maximização, guiado por sua vez pelo interesse geral de
maximização de retorno financeiro. “Em linhas gerais, é algo inconsciente,
quase animalista, e por isso facilmente manipulado por líderes oportunistas ou
por algoritmos em busca de lucro.” Provavelmente ambos. (243)
Boa parte da força do livro resulta do fato de ser
recente: nos últimos anos, universidades e centro de pesquisa de vários países
realizaram estudos quantitativos e qualitativas, que são aqui sintetizadas.
Temos realmente agora um dimensionamento do impacto frequentemente
catastrófico, em particular no caso do Youtube, que inflamou ódios e conflitos
raciais em diversas partes do mundo. “O feito dos sistemas do YouTube de
conseguir analisar e organizar bilhões de horas de vídeo em tempo real, depois
direcionar bilhões de usuários pela rede, com esse nível de precisão e
consistência, era incrível para a tecnologia e demonstrava a sofisticação e a potência
do algoritmo.”(272) O YouTube, comenta um pesquisador, “havia criado uma nova
identidade coletiva”.
Fisher dedica capítulos a Myanmar, onde o ódio
entre comunidades de religiões diferentes levou a massacres de minorias, mas
também no Sri Lanka, apresenta o caso dos Estados Unidos, do Brasil (capítulo
11), da Índia, da Alemanha e outras regiões europeias com subida do fascismo ou
de movimentos neonazistas. De repente, frustrados ideológicos encontram não só
caminhos para falar para o mundo, mas algoritmos que potencializam os seus
discursos de forma desproporcional. Em dezembro 2022, o Facebook informava ter
2,96 bilhões de usuários mensais.
É importante notar, e isso aparece em numerosas
partes do livro, a que ponto as deformações continuam sem enfrentamento, sem
regulação, apesar de muitas denúncias, e evidências claras do papel nefasto
para o convívio social. Deixem-me lembrar que estive na Tunísia nos momentos da
Primavera Árabe, e jovens me explicavam como as mídias sociais os haviam
ajudado a se articularem online. Alguns anos depois, essas mesmas pessoas
lamentavam a inversão de valores que essas mídias haviam gerado. Continuamos no
limbo. Inteligência artificial manipulada por estupidez natural.
Fonte: Por Ladislau Dowbor, em Outras Palavras
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