Argentina cogita voltar a política econômica que a faliu
O tango nasceu na periferia de Buenos Aires no fim
do século XIX, influenciado pelos estilos musicais de imigrantes italianos e
espanhóis. No princípio, era uma música dançante e bem-humorada, mas com o
tempo ganharia contornos graves e dramáticos. Não poderia haver referência
melhor para definir a história da Argentina. Há 100 anos, o país chegou a ser
uma das dez maiores economias do mundo, com uma vitalidade financeira e
cultural que rivalizava com a pujança das metrópoles europeias. Nos últimos
anos, contudo, governos desastrosos levaram a um processo de declínio que
parece não ter fim. Agora, a inflação anual está em 135%, os índices de pobreza
atingem 40% da população e a moeda local, o peso, desvaloriza-se velozmente. À
beira do precipício, a Argentina, mais uma vez, flerta com o populismo. Depois
de aventuras malsucedidas de candidatos de esquerda, é a vez do radical de
direita Javier Milei liderar as pesquisas para o pleito que ocorrerá em 22 de
outubro. Milei defende, entre outras propostas questionáveis, o fechamento do
Banco Central e o fim do ensino público. Uma de suas ideias, contudo, merece
ser levada a sério e discutida com profundidade.
O candidato do partido A Liberdade Avança prometeu,
se eleito, dolarizar a economia argentina. Segundo ele, trata-se do único
caminho possível para acabar com a inflação no país. Em linhas gerais, seu
plano é parar de imprimir cédulas do peso argentino e estabelecer que toda e
qualquer transação financeira passe a ser feita em dólar. “No curtíssimo prazo,
é impossível fazer isso, simplesmente porque a Argentina não tem dólares
suficientes”, afirma Fabio Giambiagi, ex-economista-chefe do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pesquisador associado da Fundação
Getulio Vargas. As reservas cambiais da Argentina são consideradas baixas,
perto de 26 bilhões de dólares. Para efeito de comparação, o estoque do Brasil
é de aproximadamente 350 bilhões de dólares. Para engordar o cofre, Milei tem
dito que vai vender parte dos títulos em poder do Banco Central no mercado
secundário, mas os números que ele brande são mirabolantes, de até 60 bilhões
de dólares. A questão é: quem compraria tudo isso de um país com pouca
credibilidade? Ressalte-se ainda que a renúncia à gestão monetária não é bem-vista
pelo mercado internacional. “Toda vez que um país abre mão de padrões de
controle, está dizendo que é tão incapaz que prefere dar para outro o cuidado
de suas responsabilidades fiscais”, diz Alexandre Chaia, professor de finanças
do Insper.
Na história recente, nações como El Salvador,
Equador, Micronésia, Panamá, Porto Rico e Timor Leste — que estão longe de ser
potências econômicas — incorporaram a moeda americana. O exemplo mais próximo é
o do Equador. Em janeiro de 2000, o presidente Jamil Mahuad Witt anunciou a
dolarização da economia do país. A medida promoveu a estabilidade monetária,
algo que não era visto desde o longínquo 1970, mas eliminou a possibilidade de
o governo utilizar políticas cambiais para responder a choques externos. Qual
foi o efeito prático da iniciativa? “O crescimento econômico no Equador tem
sido positivo desde a dolarização”, disse a VEJA o economista Francisco Zalles,
um dos pais da medida e que atualmente apoia Milei na replicação do modelo na
Argentina. Entre 2000, quando a economia equatoriana foi dolarizada, e 2022, o
PIB do país cresceu, em média, 2,9% ao ano. No Brasil, a taxa anual média foi
de 2,3%. Para Zalles, o processo de dolarização é simples, dado que não existe
quantidade “mágica e perfeita” de dólares em reserva para se alterar uma
economia nesse nível de profundidade. “Apenas é necessário que o governo aceite
abrir mão de seu privilégio de imprimir dinheiro e devolva os dólares que
mantém em troca dos pesos em circulação”, diz. Zalles pontua ainda que, de
certa forma, a economia argentina já é dolarizada. Com a cotação do peso caindo
cotidianamente, as operações em dólar são amplamente aceitas no país.
Não é a primeira vez que a Argentina flerta com a
dolarização para conter a escalada dos preços. No início dos anos 1990, o
governo de Carlos Menem adotou a paridade fixa entre o peso argentino e a moeda
americana. A inflação foi domada e houve um breve período de expansão
econômica. Mas o sistema era frágil, sem controle fiscal, e com o tempo o
cenário mudou. Uma alta de juros nos Estados Unidos tornou a geração de divisas
mais difícil para a Argentina. Com a economia paralisada e pouco competitiva, o
país passou a depender cada vez mais de financiamento externo, o que levou
muitos argentinos a enviar seus dólares para o exterior. Por sua vez, a fuga de
capitais resultaria na escassez da moeda americana, processo que, afinal,
tornaria a dolarização insustentável. No momento mais dramático, em 2001, a
Argentina teve protestos, saques e cinco presidentes em doze dias. Em 2002, já
com o peronista Eduardo Duhalde eleito, foi decretado o fim da paridade
cambial.
O Brasil também já flertou com a dolarização.
Lançado em 1994, o Plano Real estabeleceu, de início, a criação da Unidade Real
de Valor (URV), uma espécie de índice balizador entre cruzeiro e real, que
tinha paridade em dólar. A grande sacada foi a dupla indexação da economia para
conversão da inflação: enquanto a disparada de preços corroía o debilitado
cruzeiro, a URV pouco se alterava. Quando o real entrou em circulação, a
inflação do índice, que era baixíssima, foi adotada oficialmente, expurgando os
efeitos da inflação passada. O resto é história.
É consenso entre especialistas que a estabilidade
na Argentina, mesmo que conquistada por meio da dolarização de sua economia,
seria benéfica para o Brasil. Os argentinos são nossos terceiros parceiros
comerciais, atrás de americanos e chineses. No início de agosto, o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, sugeriu que a Argentina passasse a pagar pela compra
de produtos do Brasil em yuan, a moeda chinesa, em razão da escassez de
dólares. Com a economia dolarizada, entraves como esses seriam superados. Nação
de múltiplas faces, a Argentina merece destino melhor do que sugerem as crises
intermináveis. Para isso, como por aqui, terá de fazer reformas e controlar as
contas. Só assim seus lindos tangos talvez embalem momentos mais felizes.
Ø Os resquícios da guerra que
seguem no cotidiano da Colômbia
Ao entrar em um shopping center de Bogotá, é bem
provável que um segurança uniformizado peça para o cliente desligar o motor e
abrir as portas e o porta-malas para uma revista. Um cão farejador treinado
participa da ação. O objetivo é verificar se há uma bomba no veículo.
“Isso é necessário?”, perguntou a reportagem da BBC
News Mundo, serviço em espanhol da BBC, a um segurança do shopping Retiro, no
norte da capital colombiana, há poucos dias.
“Bem, você não se lembra que ali na frente (no
shopping Andino) a guerrilha plantou uma bomba há cinco anos que matou três
pessoas?”
A sociedade colombiana está em estado de alerta.
Não está claro se é devido a um trauma herdado de conflitos armados, que teve o
seu auge nos anos 1990, ou porque a guerra ainda continua de alguma forma, ou
porque a criminalidade tomou conta da sensação de segurança da sociedade. Ou se
é um pouco de todas essas coisas.
De qualquer forma, as medidas de segurança que
podem ser inusitadas em outros países da América do Sul, também assolados pela
criminalidade, não se limitam aos cães de guarda. Na Colômbia, é comum ser
inspecionado pelos cachorros ao entrar a pé em um shopping ou mesmo pela
polícia.
Também é comum ver soldados armados com fuzis
patrulhando ruas e rodovias. E a indústria da segurança privada, que inclui
escoltas, guardas e sistemas de monitoramento, é maior do que a polícia.
Hoje a Colômbia não é muito mais violenta do que
outros países da região.
Embora os homicídios tenham aumentado no ano
passado, o número de 26 mortes violentas por 100 mil habitantes – o principal
critério utilizado para medir a violência – não é superior ao do Equador ou do
México, e é inferior ao da Venezuela e de Honduras. No Brasil, essa taxa foi de
23,4 por grupo de 100 mil habitantes no ano passado.
Em Bogotá, o número de 12,8 homicídios por 100 mil
habitantes, semelhante ao de Medellín, é próximo ao do Uruguai ou do Panamá e
inferior ao da Guatemala e do próprio Brasil.
A Colômbia, então, deixou de ser um dos países mais
violentos da América Latina. A violência diminuiu principalmente nas grandes
cidades.
No entanto, na Colômbia é possível ver medidas que
refletem um sentimento forte de insegurança, marcado por uma história
traumática e, também, por uma enorme indústria de segurança particular.
·
‘A guerra acabou, mas o
crime não’
É difícil saber quais destas medidas são exclusivas
da Colômbia. A segurança pública é um problema em toda a América Latina e as
soluções têm sido, em geral, as mesmas.
Cães de guarda e antiexplosivos, que nos casos de
shopping centers vivem e dormem no mesmo prédio há anos, surgiram nas décadas de
80 e 90, quando as bombas dos traficantes de drogas, primeiro, e depois dos
guerrilheiros, tornaram-se relativamente comuns nas cidades.
Cães de guarda também são comuns no México.
Em 2019, naquele país, foi oficializada e
regulamentada a presença de soldados nas ruas para combater o crime. Na
Colômbia isso ocorreu na década de 1970, em meio a uma onda de decretos
presidenciais de emergência denominados “estado de sítio.”
Há também o exemplo da segurança privada, indústria
que tanto no México como na Colômbia representam 1,5% do PIB e são as maiores
da região, embora estes números não incluam a segurança privada informal, que
pode ser tão grande ou maior que o mercado regularizado.
A indústria, em todo caso, conta com 800 empresas e
400 mil funcionários na Colômbia: seguranças, escoltas, motoristas,
treinadores. É um quarto dos funcionários da Polícia Nacional.
José Rivera é dirigente sindical da empresa Fortox,
uma das maiores do setor. Ex-militar, trabalha como segurança há 27 anos. Para
ele, as medidas são justificadas.
“A guerra acabou, mas o crime não, e o crime também
é prejudicial”, diz ele. “Não vejo problema em, por exemplo, ao entrar em um
prédio, a pessoa ter de passar por uma revista, com o documento de identidade e
registro”.
Na Colômbia é comum que para entrar em um prédio
seja necessário se registrar junto a um segurança - isso acontece em muitas
cidades do Brasil, também. O procedimento é comum em edifícios de escritórios,
universidades e edifícios residenciais.
Mas nada é mais difícil do que entrar como
visitante em condomínios residenciais fechados, fenômeno que o arquiteto e
urbanista Fernando de la Carrera considera o produto mais “transcendental desta
sociedade do medo”.
Eles cresceram em áreas ricas e pobres das cidades,
especialmente em Bogotá. E incluem diversas torres cercadas por bares, tudo
monitorado por câmeras em todas as esquinas. Esses locais são vigiados por
seguranças e cães de guarda e ocupam blocos inteiros.
Por volta de 40% dos 9 milhões de habitantes de
Bogotá vivem em um condomínio fechado. Só Ciudad Verde, bairro de condomínios
na zona sul, moram 200 mil pessoas - é uma cidade privada.
“O sucesso do modelo de condomínio fechado é
alimentado pelo medo. Seu crescimento coincide com o aumento da violência que
tomou conta do país a partir da década de 1980”, escreve De la Carrera em
Rejalópolis, um estudo que publicou com a Universidade dos Andes.
“O medo nos levou a sacrificar o espaço público e
as interações sociais e econômicas que ele gera”, afirma. “A segregação
espacial que motiva os complexos fechados aumenta o sentimento de medo, de
isolamento e fomenta mais do mesmo: desconfiança, insegurança, mais medo e mais
grades”, diz De la Carrera.
Mas medidas extremas de segurança não falam apenas
de um presente violento, mas também de um passado revivido cada vez que ocorre
um acontecimento violento. Ou seja, o passado é sentido no presente.
·
Acompanhantes e Toyotas
A Unidade de Proteção Nacional (UNP, na sigla em
espanhol) é a organização estatal responsável pela segurança dos colombianos em
risco de serem assassinados: funcionários públicos, congressistas, líderes
camponeses e uma longa lista de comunidades vulneráveis.
A entidade conta com cerca de 2 mil guarda-costas e
outros 8 mil terceirizados de empresas de segurança privada, além de caminhões
e armas.
Cerca de 10 mil guarda-costas no país é um número
semelhante ao que é relatado pelo Serviço de Proteção Federal, órgão semelhante
no México, um país com o dobro do tamanho da Colômbia.
“A segurança deveria ser a salvação do medo, mas na
realidade é um negócio”, diz Augusto Rodríguez, diretor da UNP. “E tem gente
que brinca com isso, que aumenta ou diminui o risco de acordo com o seu
interesse, porque o medo é o terreno fértil para a corrupção”.
Rodríguez acompanhou o presidente Gustavo Petro ao
longo de sua carreira: estiveram juntos na guerrilha, no Congresso e na
Prefeitura de Bogotá.
“Proteger a vida é a linha política central deste
governo”, afirma, para explicar por que alguém tão próximo do presidente
preside um cargo de segundo escalão.
Desde que assumiu o cargo, Rodríguez diz ter
encontrado diversos esquemas de corrupção no órgão: carros que não são usados mas utilizam cota de gasolina, veículos usados
para traficar drogas, esquemas de venda de armas legais a grupos ilegais e
desvios na estrutura salarial dos funcionários.
“Queremos destoyotizar a Colômbia”, diz,
referindo-se aos caminhões Toyota que chegaram ao país na década de 80 e eram
símbolo dos narcotraficantes – quase sempre blindados e brancos. Hoje, esses
veículos são um símbolo de status.
Rodríguez não acredita que as medidas de segurança
sejam exageradas, em geral. “A violência persiste porque persiste a
desigualdade, persistem os problemas fundiários (...) Muitos não precisam de
esquemas de segurança, têm mais um problema de mobilidade do que de segurança,
mas a maioria sim.”
Parece, em todo o caso, que existe uma discrepância
entre a realidade dos dados da violência, que hoje é menor do que antes, e as
medidas que os colombianos tomam para se protegerem, que só aumentam.
Para Luis Ignacio Ruiz, criminologista e psicólogo
social da Universidade Nacional, não existe “medo injustificado”.
“O medo do crime envolve muitas outras emoções que
não falam apenas de insegurança”, afirma. “Em vários estudos descobrimos que as
pessoas se declaram inseguras quando o seu medo, na realidade, é a pobreza, a
falta de educação ou a fome”.
“E também é preciso acrescentar que os números da
violência nunca estão completos, porque omitem uma série de crimes que não são
noticiados, além do fato de os meios de comunicação, que dão prioridade ao
crime, e agora as redes sociais, gerarem um efeito de repetição do evento violento”.
A maior parte do território colombiano já não está
em guerra. Mas lembrá-la não é apenas um exercício mental: tem implicações
materiais no presente.
E isso deixa os colombianos com medo.
Fonte: Veja/BBC News Mundo
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