5 ANOS DA INTERVENÇÃO FEDERAL NO RIO
No dia 12 de novembro do ano passado, a Polícia
Federal realizou uma ação para investigar uma possível fraude na compra sem
licitação de coletes balísticos para a PM, no apagar das luzes da intervenção
federal no Rio de Janeiro, que durou quase todo o ano de 2018. No mesmo dia, o
general Braga Netto, que chefiou aquela ação, divulgou nota dizendo que a
licitação cumpriu os requisitos legais e que, mesmo assim, ao final foi
anulada, não implicando em gastos para o erário. As suspeitas foram levantadas
depois que o governo americano, ao investigar a empresa CTU Security LCC por
participação no assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, avisou a PF
sobre negócios dessa empresa com o Gabinete de Intervenção. No Brasil, a
Operação Perfídia quer saber por que não houve licitação, e investiga indícios
de corrupção e organização criminosa, com participação de agentes públicos,
além de sobrepreço no valor de 4,64 milhões de reais. Para a juíza Caroline
Figueiredo, a suspensão da compra não afeta os supostos crimes envolvidos. O
general Braga Netto teve seu sigilo telefônico quebrado pela Justiça.¹
Neste artigo, procuramos mostrar como o Exército
construiu diligentemente uma imagem positiva da intervenção, como parte de seu
eterno esforço de apresentação dos militares como mais capacitados que os civis
para resolver problemas de todo tipo, no bojo da aguda crise política e do
envolvimento de generais na organização da campanha do candidato Jair Bolsonaro
e na derrubada da candidatura Lula. Em contraposição a essa visão
institucional, procuramos recuperar a crítica civil à intervenção militar de
2018.
Em seu depoimento ao pesquisador Celso Castro,
Villas Bôas revela que, em fevereiro de 2018, ao saber por seu primo Sergio
Etchegoyen, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e homem
forte do governo Temer, que deveria apresentar um nome para chefiar a
intervenção, não titubeou: “a alternativa mais adequada era, sem dúvidas, o
general Braga Netto, não só por ocupar o cargo de Comandante Militar do Leste,
mas, principalmente, por ser um oficial eclético, profundo conhecedor da
geografia do Rio de Janeiro e dos personagens que estariam envolvidos”.² No
final da intervenção, em dezembro do mesmo ano, o comandante do Exército
avaliou como bem-sucedido o desempenho do general: “o fato é que montou uma
equipe muito eficiente, tanto na repressão aos crimes como na administração dos
recursos, estabelecendo as bases de um trabalho que se mostrou impecável”.
Ironicamente, o próprio interventor destacou, em entrevista concedida entre o
primeiro e o segundo turnos das recentes eleições presidenciais, das quais
participou como candidato à vice na chapa de Jair Bolsonaro, a capacidade do
Exército em ensinar à Polícia Militar do Rio de Janeiro como fazer licitações.³
Na entrevista em questão, o general exala
autoconfiança e aparenta crer na vitória de Bolsonaro. Depois da derrota,
perdeu a fleuma. Numa conversa com alguns militantes, à saída do Palácio da
Alvorada, a 18 de novembro de 2022, ele se irritou com os jornalistas, que o
esperavam atrás de um portão de ferro, para uma entrevista e afirmou
bruscamente: “Não vou falar com a imprensa, não!”. E, em seguida: “Não!”. E
dirigiu-se rindo a seus partidários: “Estão inventando história!”. Em
contraste, deu atenção paternal aos bolsonaristas: “O presidente está bem. Não
tem problema nenhum”. A uma senhora enrolada na bandeira do Brasil, que
reclamava de estarem os bolsonaristas expostos à chuva e ao sol, à espera de
uma palavra do líder derrotado, Braga Netto explica: “Eu sei. Tem que dar um
tempo, tá bom? Eu não posso conversar.”⁴ Essas frases adquiriram novo
significado depois do 8 de janeiro.
O general é um caso privilegiado para analisar o
fenômeno que caracterizou fortemente o período que vai da adesão de generais à
candidatura de Bolsonaro, passando por sua ativa ação na campanha, até a
tumultuada participação no governo do ex-capitão do Exército, com elevados custos
à imagem das Forças Armadas, que se desdobram até hoje. Trata-se da particular
alquimia que transformou generais, brigadeiros e almirantes, antes vistos como
modelos de bom senso e profissionalismo, em amigos do príncipe, capazes de
fazer tudo aquilo que antes atribuíam aos políticos, sem a esperteza destes.
Desde Maquiavel, sabemos que a política é o território do real, do jogo de
forças, do esforço cotidiano para conquistar e manter o poder. Ela tem sua
própria lógica. O governo Bolsonaro, em particular, transmutou supostos
soldados profissionais em êmulos de um líder que nunca teve a virtú necessária
para a liderança política. Ao término do mandato, restava pouco da aura de
homens íntegros e desprendidos que os generais apresentavam em suas palestras,
sempre concluídas com um slide que, didaticamente, listava as qualidades que
distinguem os fardados dos paisanos. E sobravam investigações da Polícia
Federal.
A imagem de Braga Netto como o bom interventor foi
construída em várias frentes. Matéria da BBC News Brasil publicada por ocasião
de sua nomeação como interventor afirmava que “o novo comandante provisório da
segurança pública no Rio é visto entre seus pares como um homem de ‘forte
liderança’ e ‘bem articulado’ (…), um militar rígido, mas que não compartilha o
pensamento ‘linha dura’ de outros generais como o chefe do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência, Sérgio Etchegoyen, ou Carlos Alberto
dos Santos Cruz, na reserva”.⁵
Aqui e ali, a imprensa abriu espaço para algumas
poucas vozes discordantes. Em carta aberta publicada pelo G1 à mesma época,
Frei Betto começa alertando o interventor: “General, o Rio precisa de
intervenção cívica, e não militar. O estado fluminense e a prefeitura carioca
estão acéfalos”. E continua: “O Exército brasileiro acumula uma história de
fracassos”, referindo-se ao genocídio cometido no Paraguai no século XIX, à
“matança desnecessária em Canudos” e à aceitação da tutela dos Estados Unidos
em 31 de março de 1964. “Não permita, general, que haja novo fracasso”, defendia
o religioso. “Não admita que seus soldados e oficiais sejam corrompidos, como
ocorre a tantos policiais e autoridades que engordam a conta bancária ao fazer
vista grossa para o crime organizado”, dizia o texto. E concluía: “Salve a
imagem do Exército, general (…) A democracia é sempre a melhor alternativa”.⁶ Frei Betto
pregou em vão.
Em entrevista coletiva no dia 27 de fevereiro de
2028, o interventor declarou que o Rio de Janeiro era um laboratório para o
Brasil. A afirmação encontrou resposta pronta de organizações da sociedade
civil. “A ‘intervenção federal’ – termo institucionalmente utilizado pelo
governo e reverberado pela grande mídia – é uma intervenção militar e nos
remete a um período histórico brasileiro marcado pelo cerceamento da liberdade
de ir e vir, bem como pela tortura, incluindo violência sexual e baseada em
gênero e raça”, disse o portal Promundo, que se colocava “veemente contra a
intervenção federal”. “Consideramos que o argumento da ‘guerra às drogas’, além
de populista, abre espaço para ações punitivas e políticas coercitivas que têm se
mostrado ferramentas eficientes apenas para a violação dos direitos humanos”. O
documento citava o fichamento de moradores das comunidades do Rio de Janeiro
por soldados do Exército.⁷
No final do ano, um artigo do Brasil de Fato, fazia
um balanço crítico da ação militar de 2018. O texto destacava o assassinato – e
era ilustrado por foto do velório – da vereadora Marielle Franco, executada
juntamente com seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. Ora, uma
das maiores qualidades da intervenção, na perspectiva do próprio interventor,
teria sido o controle da inteligência. Mas a investigação que culminou com a
prisão de dois criminosos foi conduzida por setores da polícia civil. Até hoje
não se sabe se a inteligência militar chegou ao mesmo resultado.⁸
Quase dois anos depois, em pleno governo Bolsonaro,
surgiram notícias de que o Tribunal de Contas da União (TCU) apurava
irregularidades no uso de 93 milhões de reais durante a operação das Forças
Armadas chefiada pelo ex-comandante do Leste. O foco das investigações era a
compra de blindados Lince K2, que se revelaram inadequados para operar nas
estreitas ruas das comunidades do Rio de Janeiro, além de gastos com reformas
em instalações do Exército e até compras de camarão e bacalhau, ao preço de 212
mil reais. A partir daí, a Rede Globo mostrou em várias ocasiões os carros de
combate enferrujando numa unidade da PM. No total, a intervenção custou 1,165
bilhão de reais aos cofres públicos. Na
avaliação dos auditores do TCU, os desvios de finalidade apontados em seu
relatório final, feriam a Constituição e configuravam “graves ilegalidades”.⁹
Foi a primeira revelação dos pecados da operação
elogiada como impecável pelo general Villas Bôas. Mais recentemente, já no
governo Lula, a Rede de Observatórios da Segurança e o CESEC (Centro de Estudos
de Segurança e Cidadania), que reúnem pesquisadores e entidades em oito estados
brasileiros, divulgou um documento com o título “Intervenção federal no Rio de
Janeiro cinco anos depois: uma análise das operações policiais na região
metropolitana do Rio de Janeiro entre 2018 e 2022”. Trata-se do resultado do
acompanhamento de 4411 operações policiais na cidade. O documento se inicia
assim:
“A partir da gestão dos militares, o projeto de
segurança pública para o Rio de Janeiro aprofundou suas bases no militarismo,
com a sempre presente falta de transparência e o excessivo gasto para manter a
máquina de moer gente girando. Nesses cinco anos, registramos mais de cem
chacinas em operações policiais, momentos em que a violência policial se
agudiza e apresenta sua mais cruel face.”
“Os moradores do Rio de Janeiro chegaram ao final
de 2018 com uma série de lembranças amargas após os dez meses de comando dos
militares à frente da Segurança Pública”, continua o texto, para afirmar
“chegamos ao final daquele ano concluindo que a Intervenção Federal era um
modelo para não se copiar”. Para o
CESEC, as eleições de 2018 foram marcadas de maneira profunda por essa
experiência de militarismo na segurança pública. E complementava: “nesses
quatro anos, embora os números de homicídios sigam caindo consistentemente, a
violência policial se aprofundou”. Ao fim e ao cabo, era possível afirmar que
as promessas alardeadas pelos interventores não foram cumpridas e que os
problemas se aprofundaram: “a Intervenção Federal de caráter militar – conclui
o relatório – seria apenas um prólogo para os anos de alta letalidade policial,
marcada pelas maiores chacinas policiais de toda a história do Rio”.
Não se sabe ainda se o general Braga Netto será
investigado pela PF. Por enquanto não é: somente foi atingido pela quebra de
seu sigilo telefônico. Mas o estrago já está feito. Sua imagem como interventor
ideal foi abalada pela revelação de suspeitas de corrupção na licitação de
produtos superfaturados, fornecidos por uma empresa estrangeira envolvida até
no assassinato de um presidente. Entre os militares, o chefe responde pelas
ações de seus comandados. Com a palavra, o interventor.
Fonte: Por João Roberto Martins Filho, no Le Monde
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