'Se não assinar,
vai morrer': a nebulosa história das esterilizações forçadas na Califórnia
Algo
crucial estava para acontecer, uma mudança profunda que a levaria a negar até o
próprio nome, mas ela ainda não sabia disso.
Seu
nome ainda era DeAnna Henderson na época, e ela estava na prisão, cumprindo uma
sentença de prisão perpétua por tentativa de homicídio.
Em
uma consulta médica de rotina, após realizar o exame de Papanicolau, o médico
informou que havia detectado "dois caroços com potencial para se tornar
câncer" e perguntou se ela queria retirá-los.
"Eu
disse a ele, é claro. Parecia uma questão de vida ou morte", disse a
californiana Moonlight Pulido, o nome que adotou, à BBC News Mundo, serviço em
espanhol da BBC.
"Fiquei
surpresa por ele não ter falado em fazer uma biópsia, mas também não tinha dinheiro
para pagar um médico para me dar uma segunda opinião", admite. Então ela
assinou o consentimento sem questionar e passou pelo procedimento.
Dias
depois, preocupada com o desconforto e o suor contínuo, uma enfermeira viu o
laudo médico dela e soube em que consistia realmente aquela operação:
"Fizeram uma histerectomia completa".
Seu
útero, colo do útero e outras partes de seu sistema reprodutivo foram
removidos. Ou seja, a esterilizaram.
"A
minha alma caiu no chão. Eu fiquei em choque."
Isso
aconteceu em 2005 na Prisão Feminina de Corona, parte do Departamento de
Correções e Reabilitação da Califórnia (CDCR). E casos como o de Pulido se
repetiram ao longo da década em pelo menos outros três centros do sistema
penitenciário estadual.
É
o mais recente episódio na história sombria de esterilizações forçadas da
Califórnia, um passado que o estado agora está tentando retificar oferecendo
indenização às vítimas.
• Para "melhorar" a população
"A
história de esterilizações contra a vontade ou sem o devido consentimento na
Califórnia é extensa e foi registrada em diferentes estágios", disse
Lorena García Zermeño à BBC.
Ela
é coordenadora de políticas e comunicação do California Latinas for
Reproductive Justice, um dos grupos que lutou durante anos para que o Estado
reconhecesse essa prática e aprovasse um programa de reparações.
A
primeira dessas fases é a histórica, relacionada à Lei da Eugenia que vigorou
na Califórnia entre 1909 e 1979, e cuja aplicação atingiu seu auge na década de
1930.
E
é que a eugenia, entendida como um suposto "melhoramento" das
características genéticas de uma população por meio da reprodução seletiva e da
esterilização, já era praticada nos Estados Unidos antes mesmo da Alemanha
nazista.
"No
século 20, dos 48 estados dos EUA - porque o Havaí e o Alasca ainda não eram -
32 tinham leis eugênicas que davam às autoridades médicas o poder de
esterilizar aqueles que consideravam 'débeis mentais' (mentalmente fracos) ou
com deficiência intelectual e aqueles diagnosticados com transtornos psiquiátricos",
explica Alex Stern.
Diretora
do Laboratório de Esterilização e Justiça Social da Universidade de Michigan,
Stern estudou profundamente esse capítulo sombrio da história americana.
"Essas
pessoas, que foram internadas em instituições estatais por seus familiares ou
após um boletim de ocorrência, passaram por exames para calcular sua idade
mental, seu quociente de inteligência, receberam uma pontuação e com base nisso
as autoridades decidiram se estavam 'aptas' ou não a reproduzir", continua.
Após
minuciosa revisão dos registros e dados do estado, a equipe de Stern estimou
que das 60 mil esterilizações realizadas nacionalmente sob as leis de eugenia,
20 mil ocorreram na Califórnia. Uma em três.
"Era
o Estado mais agressivo, e tinha a ver com o fato de as elites, que eram
principalmente WASPs (sigla usada para definir os brancos, anglo-saxões e
protestantes em inglês) e com muito poder no legislativo e as universidades,
eles tinham uma visão muito concreta de como queriam que fosse o estado",
diz Stern.
Usando
técnicas estatísticas, sua equipe descobriu um padrão: a prática afetava
"desproporcionalmente" os latinos, principalmente as jovens latinas.
"Uma
latina que estava em uma instituição em (condados de) Sonoma ou Napa tinha 59%
mais chances de acabar esterilizada do que uma mulher branca", diz ela.
“E
é que em uma época de grande imigração, as elites queriam controlar a
reprodução das famílias latinas, as mais férteis, e administrar o futuro
biológico do estado”, enquanto promoviam programas para incentivar a reprodução
da classe média branca.
• Esterilizada aos 13
Uma
das que sofreram com esse procedimento no auge da Lei da Eugenia foi Mary
Franco.
Californiana
de pais mexicanos, ela foi esterilizada em 1934, quando tinha apenas 13 anos.
Ela
foi internada em uma instituição estadual chamada Pacific Colony, no que era
então Spadra, hoje a cidade de Pomona, localizada a cerca de 35 quilômetros a
leste de Los Angeles.
"Um
vizinho estava abusando dela, então sua família decidiu interná-la para não piorar
a situação e para proteger sua reputação, porque naquela época ninguém era
preso por algo assim", diz sua sobrinha-neta Stacy Cordova à BBC News
Mundo.
No
centro, depois de medir seu QI e submetê-la a uma série de testes, ela foi
rotulada como "débil mental por desvio sexual" e esterilizada,
explica Cordova, lendo diretamente o relatório médico original.
"Isso
a prejudicou muito. Ao longo da vida ela lamentou por não ter tido filhos e
claramente sofreu de depressão, embora nunca tenha sido diagnosticada",
diz ela.
A
história foi contada a ela por sua própria tia-avó em 1997, um ano antes de sua
morte. Mary Franco faleceu sem nunca saber que o caso dela não foi isolado.
"Parte
o meu coração pensar que ela sempre acreditou que o que aconteceu com ela aconteceu
porque ela era uma garota má", lamenta.
A
própria Cordova não sabia a dimensão do assunto até que em 2017, um dia
enquanto dirigia, ouviu o Dr. Stern falar no rádio. "Tive que sair da
rodovia e estacionar. Nunca ouvi falar daquele episódio tão feio e forte da
Califórnia."
Ela
entrou em contato com a pesquisadora e logo o Laboratório de Esterilização e
Justiça Social lhe enviou o histórico médico de sua tia-avó e os documentos que
autorizaram sua esterilização.
"Agora,
quando revejo os papéis, percebo que o assunto me toca em muitos níveis: como
mexicana-americana, porque aconteceu na minha família e a dividiu, e porque sou
professora de educação especial e se isso acontecesse hoje, meus alunos seriam
esterilizados", diz Cordova.
• 'Explosão demográfica'
Décadas
depois da esterilização de Franco, quando a eugenia já era uma ideologia
indissociável do Holocausto e muito criticada por sociólogos, antropólogos e
outros cientistas, a Califórnia ainda não havia se livrado dessas práticas.
De
fato, no limiar da revogação da Lei da Eugenia, entre 1968 e 1974, uma série de
mulheres foram submetidas, inconscientemente ou sob coação, a intervenções que
as impediriam de voltar a ter filhos.
Aconteceu
no Los Angeles-USC Medical Center, um hospital administrado pelo condado.
“Naquela época, a superpopulação era uma
preocupação muito grande”, diz Virginia Espino, historiadora especializada em
políticas de controle populacional e injustiça reprodutiva, que estudou o caso
em profundidade.
Em
1968 um livro intitulado The Population Bomb (A bomba populacional) e que
incluía frases como "a batalha para alimentar toda a humanidade está
perdida" ou "milhões de pessoas morrerão de fome", havia se
tornado um best-seller.
Em
1969, o presidente Richard Nixon, após alertar o Congresso de que no ano 2000
haveria mais 100 milhões de americanos, ordenou a formação de uma comissão para
estudar o "problema".
E
muitos hospitais públicos receberam centenas de milhares de dólares federais
para programas de planejamento familiar que incluíam esterilizações.
Mas
as coisas fugiram do controle em alguns estados, onde velhos preconceitos
racistas e elitistas foram reforçados por novas preocupações com a
superpopulação e a pobreza, e acabaram afetando mulheres pobres, especialmente
as não brancas.
No
caso de Los Angeles, a barreira do idioma e uma maternidade lotada foram
adicionadas à equação.
"O
que descobri com minhas pesquisas é que muitas pacientes que vieram para o
parto e não puderam ter um parto natural foram coagidas, encurraladas ou enganadas
a também desistir de sua fertilidade quando assinaram o consentimento para uma
cesariana", diz Espino.
"E
para algumas eles sequer explicaram o que estavam aceitando."
• 'Se você não assinar, vai morrer'
Foi
o caso de Melvina Hernández, que chegou ao Los Angeles-USC Medical Center com
23 anos e sem falar uma palavra em inglês.
Disseram
que ela precisava de uma cesariana de emergência, mas que ela precisava assinar
alguns papéis primeiro.
Ela
respondeu em espanhol que não, não podia porque o marido não estava no local.
"Se
você não assinar, vai morrer", disse a enfermeira, segurando um documento
em inglês.
“Então
ela pegou a minha mão e me fez assinar”, conta Hernández no documentário de
2015 “Chega de bebês”, coproduzido por Espino e dirigido por Renee Tajima-Peña.
A
criança nasceu saudável. Hernández só descobriria quatro anos depois que suas
trompas de Falópio, que ligam útero e ovário, haviam sido ligadas.
Em
1975, ela e outras nove mulheres entraram com uma ação coletiva contra o
hospital, argumentando que lhes fora negado o direito constitucional de ter
filhos.
Elas
fizeram isso representadas pela jovem advogada Antonia Hernández e apoiadas
pelo já poderoso movimento chicano, especialmente por mulheres ativistas, que
estava desenvolvendo sua própria identidade política e feminismo.
Apesar
das manifestações fora do hospital e da pressão da opinião pública, elas
perderam o julgamento. O juiz não pôde determinar responsabilidades.
"Não
conheço ninguém que tenha forçado o planejamento familiar a nenhum grupo em
particular... Acho que qualquer mulher merece o direito de decidir", disse
Edward J. Quilligan, diretor da ala de maternidade do centro médico, no
documentário.
No
entanto, foram aplicadas certas regulamentações para evitar que isso
acontecesse novamente, como a proibição de solicitar consentimento durante o
parto ou sob efeito de anestesia, além da determinação de que houvesse
formulários de consentimento também em espanhol.
E
em 2018, o Conselho de Supervisores do Condado de Los Angeles emitiu um pedido
formal de desculpas às vítimas dessas esterilizações.
"Eles
nos disseram que não ia acontecer, porque o hospital nunca reconheceu nenhuma
irregularidade. Mas aconteceu, e foi muito importante", diz Espino.
• A reparação
Apesar
de a Lei da Eugenia ter sido revogada décadas atrás, uma auditoria estadual
revelou que 144 mulheres encarceradas em quatro prisões da Califórnia foram
esterilizadas entre 2006 e 2010 com pouca ou nenhuma evidência de
aconselhamento ou tratamentos alternativos.
E
um estudo posterior identificou outras 100 vítimas no final dos anos 1990.
Mais
uma vez, os afetados eram predominantemente latinas e americanas negras.
Em
razão disso, a legislatura estadual aprovou uma lei em 2014 que proibia
esterilizações em prisões para fins contraceptivos.
Isso
deu impulso à luta de uma série de organizações que vinham exigindo justiça
sobre o tema há algum tempo.
Em
1º de janeiro de 2022, entrou em vigor um programa de reparação de US$ 4,5
milhões para as afetadas, o terceiro no país depois da Carolina do Norte (2013)
e da Virgínia (2015).
"A
Califórnia está empenhada em enfrentar esse capítulo sombrio de seu passado e
abordar o impacto que essa história vergonhosa tem sobre os californianos até
hoje", disse o governador Gavin Newson ao assinar a lei sobre o programa.
"Embora
nunca possamos reparar totalmente o que eles sofreram, o estado fará todo o
possível para garantir que as sobreviventes dessas esterilizações injustas
recebam uma compensação".
A
iniciativa, gerida pela Junta da Califórnia para Compensação de Vítimas, inclui
sobreviventes da era histórica e aquelas esterilizadas no sistema prisional
estadual.
Não
inclui, no entanto, as mulheres que perderam a fertilidade no Los Angeles-USC
Medical Center na década de 1970.
O
fato de terem ido ao hospital, administrado pelo município, por vontade própria
torna esses casos mais complicados, concordam as fontes consultadas para esta
reportagem.
Porém,
as fontes também concordam que essas mulheres precisam ser compensadas, mas
apontam que o programa atual é um bom ponto de partida sobre o tema.
• A busca por sobreviventes
Quando
a lei de compensação foi aprovada, no verão de 2021, as organizações estimavam
que havia 455 sobreviventes de esterilizações eugênicas e 244 entre aquelas que
passaram por isso na prisão.
"Mas
diante do que aconteceu nos outros estados que tinham esquemas semelhantes,
onde apenas 25% das afetadas elegíveis pediram indenização, projetamos que
apenas cerca de 157 pessoas acabariam recebendo o dinheiro", diz García
Zermeño, da California Latinas for Reproductive Justice.
Então
fizeram uma chamada de urgência para que as afetadas ainda vivas fossem
localizadas. "Cada ano que passa perdemos 100 do primeiro grupo por causa
da idade avançada."
Após
um ano de buscas, em janeiro de 2023, de 310 pedidos, o estado havia aprovado
51, rejeitado 103, descartado 3 como incompletos e outros 153 estavam em
andamento.
"Tentamos
encontrar o máximo de informações possível e, às vezes, apenas temos que
esperar que outros encontrem mais detalhes por conta própria", disse Lynda
Gledhill, diretora executiva do Conselho de Compensação de Vítimas da
Califórnia.
"Às
vezes, simplesmente não podemos verificar o que aconteceu."
"Tanto
dinheiro... mas tão pouco."
Depois
de ser solta em liberdade condicional em janeiro de 2022, ela contatou a
organização Coalizão da Califórnia para Prisioneiras Femininas e reivindicou a
sua indenização.
Depois
de aprovada, demorou cinco semanas até que ele recebesse os US$ 15.000 (cerca
de R$ 77 mil).
"Quando
o cheque chegou, tudo o que pude fazer foi sentar, segurá-lo e chorar",
lembra ela, com a voz embargada.
"Fiquei
muito tempo assim, observando o número. Nunca tive tanto dinheiro mas, por sua
vez, era tão pouco para o que me fizeram...".
E
levou anos até que ela pudesse falar sobre o tema com alguém. A experiência a
marcou profundamente.
"Sou
uma americana nativa - dos apaches do Novo México - e acreditamos que a Mãe
Terra deu às mulheres a capacidade de gerar vida. E esse presente foi roubado
de mim, sem minha permissão e sem mesmo meu conhecimento disso”, diz, ainda
revoltada.
Hoje
aos 41 anos e com um filho, ela diz que a privaram da possibilidade de
constituir uma nova família.
"Até
hoje, quando ando na rua ou vou às lojas e vejo mães com seus filhos, paro e
olho para eles. Nunca mais vou dar vida. É algo que continua me afetando
emocionalmente a cada dia."
Apesar
disso, ela tem aproveitado a sua liberdade e enfrenta o futuro com força e tem
um novo nome.
"DeAnna
(seu nome antigo) teve uma infância difícil, muito trauma pelo que viu, sentiu
e como foi tratada. Ela se sentia como se estivesse carregando uma mochila
muito grande", explica.
Ela
escolheu seu nome atual porque queria que fosse algo considerado nativo
americano. Ela sempre foi influenciada pela lua e "queria pertencer à
parte brilhante da vida", e adotou o sobrenome de solteira e sua mãe.
Moonlight
Pulido hoje tem planos, que podem incluir deixar a Califórnia e morar com o
filho no estado americano de Illinois.
E
também tem uma missão: "Quero dizer a todos aquelas que passaram pela
mesma coisa que eu que se manifestem, peçam uma indenização e, se rejeitarem,
tentem novamente. Não desistam".
Fonte:
BBC News Mundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário